Bancada ruralista se articula para tentar derrubar a adesão brasileira à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas
Às vésperas da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o destino da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, outra polêmica que opõe índios e brancos ganha força no Congresso. Parlamentares da bancada ruralista se articulam para tentar derrubar a adesão brasileira à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. A reportagem é de Bernardo Mello Franco e publicada pelo jornal O Globo, 17-08-2008.
O governo assinou o documento da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro passado, com outros 157 países, mas até hoje não o submeteu a votação na Câmara e no Senado. A rejeição ao texto tem respaldo dos militares e reúne políticos da oposição e da bancada governista, a maioria de estados da Amazônia.
Os ruralistas alegam que o documento ameaça a soberania nacional, por assegurar aos indígenas o direito à autodeterminação e à autonomia política, além de não ter validade jurídica, já que não passou por votação no Congresso. O Itamaraty sustenta que, por ser declaração, e não tratado, o texto não precisa ser ratificado pelos parlamentares para entrar em vigor.
Irritados com a justificativa, integrantes da Comissão de Relações Exteriores do Senado apresentaram na semana passada um requerimento que convoca o ministro Celso Amorim para se explicar sobre o assunto.
— O governo não pode assinar um texto dessa dimensão sem enviá-lo ao Congresso. A declaração pode permitir até a criação de nações autônomas — afirma a senadora Marisa Serrano (PSDB-MS).
Segundo a Constituição, só o Congresso pode decidir sobre “tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. Como a declaração não foi homologada, os ruralistas ameaçam buscar meios jurídicos para suspender seus efeitos. Em junho, questionado sobre o assunto na Câmara, Amorim disse que o texto tinha efeito mais simbólico do que prático:
— As declarações das Nações Unidas são recomendações. Não quero diminuir, com isso, sua força política, moral. Não vem ao Congresso porque não é um tratado.
A explicação não convenceu o presidente da comissão de Relações Exteriores do Senado, Heráclito Fortes (DEM-PI), e surpreendeu até aliados do movimento indígena, como a senadora Fátima Cleide (PT-RO). Ela atribui a oposição ao documento à reação de fazendeiros contra a demarcação de reservas.
Apesar de esperar dificuldades, ela diz apoiar a discussão do texto na Câmara e no Senado.
— Até onde sei, tem que passar pelo Congresso. Mas o ministro não diria isso à toa — afirmou a petista, que usou sua cota na gráfica do Senado para imprimir seis mil cartilhas com o texto da declaração.
Parecer do Senado é arma contra adesão à declaração da ONU
Embalado pelo discurso nacionalista de defesa da Amazônia, o movimento contrário à Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas ganhou nova arma no Congresso. Um parecer técnico da consultoria legislativa do Senado sustenta que a adesão brasileira ao texto da Organização das Nações Unidas (ONU) pode significar um sinal verde para a criação de nações indígenas independentes em território nacional. “A declaração traz sérios compromissos e disposições que podem ser interpretadas como a possibilidade de criação de verdadeiras nações indígenas independentes, com governos autônomos”, diz o estudo 2.631/2008, que circula por gabinetes do Senado.
O parecer reproduz críticas dos militares à política indigenista do governo e cita um estudo do jurista Francisco Rezek, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e chanceler do governo Fernando Collor, que vê na adesão brasileira ao acordo uma brecha para que povos indígenas questionem a autonomia do Estado sobre as reservas.
“A aprovação da declaração da ONU pelo Congresso Nacional trará graves problemas à soberania brasileira”, conclui o estudo.
Líder indígena critica argumentos contrários à carta
A declaração afirma, em seu artigo 4o que os povos indígenas, “no exercício do seu direito à livre determinação, têm direito à autonomia ou autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais”. Já o artigo 46, o último do documento, afirma que nenhuma das cláusulas anteriores “autoriza ou fomenta ação alguma encaminhada a quebrantar ou afetar, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos ou independentes”. Para os representantes dos índios, os ruralistas omitem a ressalva intencionalmente ao atacar o texto da ONU.
O líder indígena Marcos Apurinã, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), afirma que a carta defende direitos humanos e critica os argumentos nacionalistas usados contra o documento.
— Isso é pura discriminação. Os povos indígenas são os verdadeiros defensores da biodiversidade e das fronteiras da Amazônia. Nós somos brasileiros. Atentar contra o território nacional seria trair a nós mesmos — afirma.
Enquanto a polêmica corre, os índios se mobilizam para formular um novo texto para o Estatuto dos Povos Indígenas, que está parado na Câmara há 14 anos. O estudo para uma nova lei brasileira foi discutido semana passada em um seminário que reuniu dezenas de líderes em Brasília.
[EcoDebate, 18/08/2008]