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Penalizar ou consumir? Alternativas para a crise dos alimentos do mundo. Entrevista especial com Antonio Meirelles


“Não deveríamos penalizar esse acesso de parcelas da população a uma renda melhor e a um alimento melhor. É preciso ver formas de continuar garantindo isso”, afirma o professor da Unicamp Antonio Meirelles, em entrevista realizada por telefone à IHU On-Line, na qual analisou a relação da crise dos alimentos do mundo com a produção de biocombustíveis. Para ele, a crise se deve ao fato de que o padrão de consumo do mundo aumentou. No entanto, não podemos voltar atrás e por isso devemos pensar em alternativas para que as pessoas possam continuar consumindo alimentos melhores sem que isso prejudique o meio ambiente. “Eu, pessoalmente, penso que a tendência de você produzir não só alimentos, mas outros bens, como combustíveis, bens químicos, farmacêuticos de vias naturais, a partir de recursos naturais, é algo positivo”, disse ele.

Antonio Meirelles é graduado em Engenharia de Alimentos, pela Universidade Estadual de Campinas, onde também realizou o mestrado na mesma área. É doutor em Engenharia de Processos Térmicos, pela Technische Hochschule Merseburg, na Alemanha, e em Ciência Econômica pela Unicamp. Em 1995, obteve o título de Livre Docência também pela Unicamp, onde atualmente é professor e vice-coordenador de extensão da Faculdade de Engenharia de Alimentos. É autor de Moeda e produção: uma análise da polêmica pós-keynesiana sobre endogenia monetária (Campinas: Editora Mercado De Letras, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Produzimos quase um quilo de grãos por pessoa e por dia no Planeta. Quais são as razões da crise de alimentos?

Antonio Meirelles – Do meu ponto de vista, as razões mais importantes seriam: por um lado, vem havendo um crescimento muito grande de consumo de alimentos por países onde o consumo era tradicionalmente baixo, como a China e a Índia. Mesmo em outros países emergentes, como o Brasil, houve uma redistribuição de renda, o que tem ampliado muito a pressão sobre o mercado de alguns produtos alimentícios, tanto diretamente – em relação ao consumo de seres humanos mesmo – quanto indiretamente – em relação à produção de ração animal. Essa é a razão mais recente. Há uma razão mais de fundo, por outro lado, que é o fato de que a agricultura, nos países em desenvolvimento, tem sido muito desincentivada por conta das barreiras alfandegárias e dos subsídios agrícolas no mundo desenvolvido, reduzindo a remuneração dos bens agrícolas para quem quer exportar para esses países.

IHU On-Line – Como podemos pensar numa saída para essa crise?

Antonio Meirelles – Eu penso que seja preciso enfrentar essa crise com medidas imediatas para minimizar, de alguma forma, as conseqüências para a parcela mundial que está sofrendo mais com o problema dos alimentos, ou seja, medidas de assistência direta. A longo prazo, deveria existir uma postura de incentivar a expansão da produção agrícola, principalmente naqueles lugares onde há maiores disponibilidade de terras, como na América Latina e África e não nos Estados Unidos e países europeus, onde não há grandes áreas de terras disponíveis para agricultura. Apesar de toda dificuldade de exportação que o Brasil sofre – o país tem barreiras para exportar alguns produtos para os Estados Unidos e para a União Européia – em função da grande competitividade da sua agroindústria, ele conseguiu vencer as suas barreiras.

Essa não é a realidade de vários outros países, onde a estrutura empresarial não consegue superar as barreiras comerciais e, no entanto, dispõem de recursos naturais e disponibilidade de terra. Se houvesse investimentos, esses países poderiam expandir bastante a produção agrícola. Acredito que existe um limite de expansão da produção agrícola que inviabilize alimentar melhor a população mundial e produzir biocombustíveis. Esse é um problema de ordem econômica que vem dificultando a expansão da agricultura, seja pelo fato de existir essa barreira alfandegária ou mesmo de subsídios nos países desenvolvidos, seja pelo fato de que há distribuição de renda, o que é uma coisa positiva.

É positiva a posição do Brasil de redistribuir renda para as camadas mais pobres, fazendo com que esse grupo de pessoas tenham acesso a um consumo melhor, como é positivo países com taxa de crescimento grande, como China e Índia, melhorarem seu consumo de alimentos. Não deveríamos penalizar esse acesso de parcelas da população a uma renda melhor e a um alimento melhor. É preciso ver formas de continuar garantindo isso.

Biocombustíveis

Utilizar produtos alimentícios para produzir biocombustíveis pode trazer problemas, como no caso dos Estados Unidos em que a produção de álcool concorre com a produção de grãos, porque o biocombustível lá é produzido a partir de milho. No entanto, o etanol estadunidense é subsidiado, o que melhora a rentabilidade de quem está produzindo tanto biocombustível quanto milho. Isso pressiona o preço de outros grãos. Porém, esse não é o dilema do Brasil, que não tem problema de terra ou de concorrência entre alimentos e combustíveis. Eu, pessoalmente, penso que a tendência de você produzir não só alimentos, mas outros bens, como combustíveis, bens químicos, farmacêuticos de vias naturais, a partir de recursos naturais, é algo positivo.

Há algo que aumentará as chances de sobrevivência da humanidade que dependerá cada vez menos de recursos não renováveis, como o petróleo. Essa é uma tendência positiva, do meu ponto de vista, o que não significa que ela não possa gerar problemas, mas precisamos ser capazes de resolver essas situações. O Brasil pode ser, ao longo dos próximos anos, o grande produtor de alimentos no mundo, assim como de combustíveis. Temos terra e tecnologia para isso. Se tivermos mais espaço para exportar, em função da queda de barreiras alfandegárias, isso será muito positivo para nossa economia e para a vida da população em geral.

IHU On-Line – É possível pensar hoje num modelo agroecológico que incentive a agricultura camponesa, assim como no fim da monocultura, dos latifúndios e dos modelos insustentáveis de produção?

Antonio Meirelles – Hoje, é possível encontrarmos mais de uma solução para essas coisas. Para algumas culturas, eu penso que é difícil que elas não sejam monoculturas ou produzidas em grande escala. É muito difícil plantarmos cana e soja em outro tipo de sistema não seja em grande escala. Em função dessa necessidade, precisamos criar esquemas de cooperativas, porque do contrário não é possível concorrer com grandes empresas. Agora, existe um espaço para a pequena produção agrícola na produção de alimentos para consumo no mercado interno do Brasil. Hoje, existe toda uma demanda para produtos orgânicos, onde não há agrotóxicos. Precisamos ser um pouco pragmáticos para lidar com isto. Existe espaço para que você tenha mais de uma solução na economia brasileira e ganharíamos se conseguíssemos conviver com essa diversidade. Não é preciso criar um conflito insolúvel entre essas alternativas de produção agrícola. É uma coisa positiva do mundo moderno pessoas diferentes convivendo juntas.

IHU On-Line – Os biocombustíveis foram apresentados com uma das soluções para o aquecimento global e outros problemas ambientais. No entanto, um questionamento sobre sua eficácia cresceu bastante. Por quê?

Antonio Meirelles – Existe um problema nessa questão dos biocombustíveis, que é o fato que ela envolve um conjunto muito grande de interesses. Temos interesses de empresários do setor de combustíveis e de todo setor que está envolvido com essa questão dos biocombustíveis, que são pessoas com poder econômico razoáveis. Por outro lado, há um setor petrolífero que tradicionalmente tem muito poder econômico e interfere em vários lugares do mundo. Há ainda o movimento ambientalista que possui outras opiniões. Existe um conjunto muito grande de interesses e essa discussão acaba turvando, porque as pessoas brigam muito por seus interesses e às vezes não esclarecem os pontos.

Quem critica muito os biocombustíveis deveria sustentar como meta apresentar uma alternativa também. Porque se a alternativa ao etanol e biodiesel é continuar usando gasolina e diesel de petróleo, do ponto de vista ambiental, essa alternativa é muito ruim. A planta que você produz etanol, no mínimo, capta gás carbônico. O petróleo só gera gás carbônico. Eu, pessoalmente, acredito que os biocombustíveis minimizam o problema ambiental, mas não vão resolver o problema. A avaliação de qual é a dose desse impacto depende da consideração de vários pontos, como o uso de defensivos agrícolas e fertilizantes, que às vezes vêm da indústria petroquímica. O Brasil produz, principalmente, o etanol de cana, cujo qual retém uma quantidade de gás carbônico muito expressivo, o que já não é o caso de etanol de milho. É impossível eles não serem melhores do que o petróleo.

IHU On-Line – A expansão da agricultura familiar pode ser uma forma de conter essa crise alimentícia?

Antonio Meirelles – Sem dúvida. A tendência de uma parcela da agricultura brasileira é ficar muito exportadora, ampliando o espaço para a agricultura familiar no país fornecer para o mercado interno, que é uma área que já possui tradição de produção agrícola. Acredito que pode ser associada aos biocombustíveis também. A agricultura tem esse grande espaço, porque é mais dinâmica, se adapta mais às modificações de mercado, mesmo que gere um custo maior.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a atuação do presidente Lula em relação à crise dos alimentos, ao potencial energético brasileiro e ao desenvolvimento dos bicombustíveis?

Antonio Meirelles – Acredito que o governo federal tem incentivado bastante essa perspectiva, pelo menos no que se refere às manifestações públicas. Vemos hoje uma tentativa de incentivar a pesquisa nessa área. Isso é positivo. Entramos numa fase de diminuir a dependência da economia em relação a recursos não renováveis e cada vez mais começar a produzir bens a partir de recursos renováveis. Esse cenário já é uma realidade para os alimentos, mas não é uma realidade para energia e bens em geral.

A tendência é que a experiência da área de alimentos se propague para o resto, para a produção de várias coisas a partir de recursos renováveis. O Brasil é um exemplo nessa área. A experiência do etanol é muito positiva, apesar dos problemas, porque o resultado final é muito positivo em termos de desenvolvimento, de aprendizado tecnológico, de criar uma capacidade empresarial. O Brasil possui disponibilidade de terra, tem experiência na produção agrícola e pode aproveitar muito bem essa oportunidade tanto para produzir alimentos quanto biocombustíveis. A minha sensação é de que há uma aposta que o governo está fazendo e deve continuar fazendo.

IHU On-Line – O vegetarianismo pode ser considerado uma solução para o problema dos alimentos no mundo?

Antonio Meirelles – Eu não sei. Eu gosto de carne (risos)! Eu acredito que temos de conviver com essa diversidade. O problema é que a alimentação depende de hábitos também, ou seja, ela não é apenas nutricional, mas também cultural. Então, é algo que não pode ser muito imposto. A soja é um alimento rico em proteínas, por exemplo, mas não é algo que possa ser imposto com facilidade. A alimentação está muito ligada à decisão pessoal, e a vantagem da nossa sociedade moderna é podermos conviver com as diferenças de opções das pessoas.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 14/08/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]