Programa de cisternas no Semi-árido atrasa, mas alivia seca
Cisterna em construção
Família com cisterna
Fotos: ASA, Articulação no Semi-Árido Brasileiro
Sob o sol impiedoso do Cariri paraibano, algumas poças d’água resistem na estrada de terra batida, herança da chuva que caiu na noite anterior. Historicamente castigada pela seca, a região vive os últimos dias do cenário verde propiciado pela bonança das águas. Do início de maio até dezembro, período da estiagem, a população local terá de colocar em prática a conhecida arte da austeridade hídrica, tarefa que ficou um pouco mais simples nos últimos anos para a minoria que possui cisternas em suas casas. Para os demais, a repetição do drama secular se avizinha.
A reportagem é de Murillo Camarotto e publicada pelo jornal Valor, 19-04-2011.
Não é o caso do vaqueiro José Severino Antonio, nascido e criado em Juazeirinho, a 215 quilômetros de João Pessoa. Aos 63 anos, o velho sertanejo tinha nos olhos o brilho de um garoto enquanto observava a escavação de sua segunda cisterna, que servirá para a agricultura. A primeira, dedicada exclusivamente à “água de beber”, chegou em janeiro, pondo fim a décadas de martírio. “Tomar uma aguinha limpa é bom demais”, celebrou ele, enquanto a mulher lhe servia um copo generoso.
Antes da cisterna, Severino tinha que tomar água do barreiro, como é chamado o reservatório feito a partir da simples escavação de um buraco na terra. Não bastasse a péssima qualidade da água, os barreiros costumam secar nos períodos de estiagem mais acentuada. Quando isso acontecia, ele andava 12 quilômetros até um açude, onde tinha de pedir permissão para pegar a água, que ficava em um terreno particular. Apesar dos avanços observados nos últimos anos, ainda é essa a realidade de uma grande parcela do Semiárido brasileiro.
O Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC) foi criado em 2003 com a meta de cumprir em cinco anos a tarefa que lhe dá o nome. No entanto, entrou em 2011 com pouco mais de 350 mil equipamentos instalados e sem perspectivas de conclusão. Gestora do projeto, a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) aponta a morosidade dos repasses federais como o principal entrave. Já o Ministério do Desenvolvimento Social, maior -financiador do projeto, se isenta da responsabilidade.
Além da simples construção das cisternas, o programa está inserido em outro mais amplo, voltado à “formação e mobilização para convivência com o semi-árido”, que tem entre suas premissas mais importantes o acompanhamento e a orientação das famílias que já contam com a cisterna, o que nem sempre acontece.
Visitada pelo Valor em 2007, a dona de casa Miriam Cavalcante Ferreira, de 53 anos, aguardava na época a instalação de uma cisterna na casa do filho, o que ocorreu no ano seguinte. Apesar de se dizer satisfeita com o programa, ela garantiu desconhecer qualquer programa de acompanhamento das famílias, o que pôde ser percebido pelo estado de degradação de seu sítio, que chocou até mesmo os colaboradores da ASA, habituados às mazelas locais.
Além da falta de cuidado com a água da cisterna, exposta à presença de animais, o quintal apresentava mais de cem fraldas descartáveis usadas por todos os lados, atrativo para um batalhão de moscas. “Há falhas no acompanhamento posterior, como o cuidado com a água, por exemplo. Você não consegue mudar a mentalidade das pessoas só com uma palestra”, admitiu José Walterlandio Cardoso, coordenador do Patac, uma das oito organizações que trabalham com a ASA na Paraíba.
A situação, felizmente, contrasta com a de outros beneficiados pelo programa, caso de Maria de Lourdes Eusébio Luiz, de 61 anos, que voltou a viver no Cariri depois de quatro décadas trabalhando como empregada doméstica, no Rio de Janeiro. Assim como muitos nordestinos otimistas com o crescimento econômico da região, ela fez o caminho de volta em 2006, influenciada pela cisterna que o pai havia recebido anos antes. “Aqui era péssimo de viver. Eu tinha que ir pra cacimba de madrugada procurar água”, recorda.
Há um ano e meio, Maria de Lourdes foi contemplada com uma cisterna “calçadão”, modelo voltado à produção agrícola e que faz parte de outro programa da ASA, chamado de “segunda água” ou “P1+2”. O nome “calçadão” remete ao sistema de coleta da cisterna, que recebe a água da chuva que cai sobre uma placa de concreto de 200 metros quadrados e escorre até o reservatório, que tem capacidade para 52 mil litros. A cisterna tradicional, que acumula água vinda das calhas das residências, comporta 16 mil litros.
Com a abundância, Maria de Lourdes é atualmente a agricultora mais festejada da comunidade Sussuarana, em Juazeirinho. Nos fundos da casa onde mora sozinha, ela cultiva mais de 30 variedades de frutas e hortaliças, inclusive de tipos estranhos à região, como alho-poró e aipo. A produção é vendida e também doada para a vizinhança, uma comunidade que demonstra um invejável modelo de cooperação mútua.
Em oito anos, o programa de cisternas recebeu pouco mais de R$ 593 milhões, dos quais R$ 503,5 milhões com origem nos cofres públicos. O restante veio de parcerias com a iniciativa privada, sobretudo com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), e com entidades internacionais de fomento. Os repasses federais são feitos anualmente, mediante o cumprimento das metas de construção de cisternas e a consequente renovação da parceria entre o ministério e a ASA.
A entidade, porém, reclama da demora nas renovações. “Parar um programa desse tamanho implica parar uma ação gigantesca e um conjunto de atores e pessoas. Quando o maior apoiador para, se arrefece todo o processo”, avalia o coordenador do programa de um milhão de cisternas, Jean Carlos de Andrade. “Nossa capacidade de execução é maior do que a disponibilização dos recursos”, diz.
O projeto atua hoje em 1.076 dos 1.133 municípios do Semiárido, beneficiando pouco mais de 1,6 milhão de pessoas. Outras 3,4 milhões, contudo, ainda estão na fila. Apesar do grande atraso em sua universalização, o P1MC tem apresentado bons resultados nas regiões aonde chegou. Pesquisas realizadas desde 2007 mostram melhorias na redução de doenças, no aumento da frequência escolar e na renda das famílias.
O Ministério do Desenvolvimento Social, por sua vez, se isenta da culpa pelo atraso na construção das cisternas. “Na nossa visão, a burocracia para os repasses não prejudicou o andamento do programa. O governo tem toda a burocracia, mas isso faz parte da execução orçamentária”, defende-se a secretária de Segurança Alimentar e Nutricional do ministério, Maya Takagi. “Além disso, a meta de 1 milhão de cisternas não é nossa. Nunca dissemos que íamos fazer”, afirma.
Alheio aos argumentos, José Aurélio dos Santos, que aparenta mais do que seus 40 anos, faz cerca de 20 viagens diárias ao barreiro próximo de sua casa, em Juazeirinho. Ele ainda não foi contemplado com a cisterna e sequer sabe da existência do P1MC. Para evitar os queixumes da mulher grávida por causa do gosto ruim da água do barreiro, improvisou uma calha para capturar algo mais cristalino no período chuvoso. Sem emprego fixo, alimenta seis pessoas com R$ 167 mensais que recebe do Bolsa Família. Como em quase todo o Semiárido, o maior sonho é tirar da terra o próprio sustento.
(Ecodebate, 21/04/2011) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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