Poderosos interesses não permitem efetivo estudo da Amazônia, Gabriel Brito e Valéria Nader
[Correio da Cidadania] Com o planeta cada vez mais mergulhado na crise sobre como tratar as questões ambientais, não é difícil imaginar que os olhos, não só de governos, como também de grandes parcelas da sociedade internacional, se dirijam crescentemente ao território brasileiro e seu ecossistema, dotado de riquezas praticamente inigualáveis.
Mediante esse quadro, pouco, ou nada, impede que empresas estrangeiras se apoderem de grandes fatias de nosso território. Ao Brasil não caberá, portanto, o direito de protelar amplos debates na dita esfera, sob pena de degradar ainda mais suas áreas ou ver sua soberania verdadeiramente em risco.
Somente nos últimos meses, três discussões de grande relevância agitaram os militantes da causa ambiental e os defensores do desenvolvimento a qualquer custo: o lobby pela redução da área de reserva ambiental de 80% para 50% em propriedade privada; a MP 422, alardeada como a MP de incentivo à grilagem, por aumentar de 500 para 1500 hectares o limite de áreas que podem ser legalizadas sem qualquer licitação; e a privatização da floresta amazônica, que já teve 96 mil hectares de suas áreas vendidas (na Flona Jamari-RO) e corre o risco de ver outros mais de 200 milhões de hectares de terras públicas cercadas ilegalmente passarem pelo mesmo processo. O Serviço Florestal Brasileiro acaba de anunciar, por exemplo, um novo projeto de concessão, que permite que empresas privadas explorem trechos da floresta nacional Saracá-Taquera, nos municípios de Faro e Oriximiná, no estado do Pará.
Obviamente, este não é um tema de interesse exclusivo das partes citadas, mas sim de toda a sociedade, verdadeiros donos do patrimônio natural da nação. Com gigantes áreas ainda devolutas, está claro que no Brasil a política de defesa do meio ambiente sofre muitos entraves e tem muito por desenvolver-se.
A ausência de estudos e mapeamentos da Amazônia
Para o geógrafo Aziz Ab’saber, que desenvolveu estudo que mapeia a Amazônia em sub-regiões, é urgente a necessidade de se fatiar suas regiões, a fim de se estudar cada uma delas mais profundamente e compreendê-las melhor. “Só quando for feito o zoneamento de cada célula espacial, como defini essas sub-regiões, é que vão aparecer as diferenças sub-regionais de cada uma delas. A parte científica e técnica é a mais importante: fazer um detalhamento de cada célula-espacial em termos de seu desenvolvimento internalizado”.
O professor emérito da USP ainda prossegue em suas advertências. “O conhecimento dessas realidades regionais, tanto em pequenas como em grandes cidades, é muito importante para identificar os problemas de vários setores”. Ou seja, para Aziz, somente uma conhecimento a fundo da Amazônia pode levar a que se efetivem políticas eficientes de proteção ambiental e das populações locais.
Porém, fatos como a retirada do único artigo da famigerada MP 422 que podia oferecer algum controle sobre a grilagem, que condicionava a regularização fundiária de propriedades na Amazônia Legal ao zoneamento ecológico-econômico dos estados, mostram a cara de um país fortemente vulnerável a pressões dos maiores beneficiários econômicos da destruição ambiental. Interesses de grandes transnacionais na área seguem prevalecendo sobre o maior rigor na concessão e legalização de terras, apesar dos discursos de efeito do ministro Carlos Minc.
Em artigo publicado na página da Radioagência NP, assim com em diversas de suas falas a este Correio, o também geógrafo Ariovaldo Umbelino recapitula momentos da história do país que marcaram a luta da elite pela propriedade privada e define que “a elite brasileira raramente botou a mão no bolso para comprar a terra. Ela sempre criou instrumentos legais para se apropriar gratuitamente de vastas extensões de terras no Brasil. É por isso que o capitalismo no Brasil tem o caráter rentista”. Lembrança muito bem vinda para realçar a compreensão da nova dimensão dos interesses que estão em questão.
“Quando o Lula assumiu a presidência, imaginei ser preciso organizar uma reunião em Brasília com técnicos, cientistas e políticos mais sensíveis sobre as questões da Amazônia, trabalhando para aprofundar conhecimentos em cada uma de suas regiões. Poderiam ser organizadas equipes de trabalho para cuidar de cada célula espacial, que depois se reuniriam e discutiriam o que foi encontrado em cada região. Seria fundamental essa visão dos problemas. É um tema muito importante em termos de conhecimento e da possibilidade de se fazer um planejamento para a região”, afirma Ab’saber, explicando como o governo poderia se direcionar na gestão da Amazônia.
Os dados trazidos por Umbelino no artigo supracitado reforçam a importância desse planejamento que nunca saiu no papel. Segundo o geógrafo, “na atualidade, mais de 212 milhões de hectares de terras públicas, devolutas ou não, estão fora dos registros do Incra, dos Institutos de Terras estaduais e dos Cartórios de Registro de Imóveis. Ou seja, estão cercadas, mas não existem para o Estado.Foi por isso que os grileiros sempre atuaram politicamente para impedir que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras devolutas sob suas jurisdições. E aí está a razão pela qual são contra a reforma agrária”.
O zoneamento defendido por Aziz também já foi citado pela ex-ministra Marina da Silva como fundamental, e até mesmo pelo diretor do Plano Amazônia Sustentável, ministro Mangabeira Unger. Sendo assim, por que não é levado adiante pelo governo de forma mais decidida e objetiva?
A luta pela apropriação de riquezas
Sem deixar de lado os já numerosos embates internos, há no cenário internacional uma temerária escalada na luta pela apropriação de riquezas naturais, como petróleo, gás, minérios e água. Somos já alvo de potências (nacionais e empresariais) na luta pelo controle de tantos e imprescindíveis recursos, não nos iludamos. A reativação da Quarta Frota norte-americana e o grande número de empresas transnacionais que já operam em nosso território são no mínimo sintomáticos de gordos olhos sobre nossa nação.
A criação de uma Guarda Florestal, sugestão do ministro Minc, é apenas parte de eventuais medidas que podem se tornar necessárias. No entanto, proposições destinadas a atender ao interesse geral da sociedade brasileira têm perdido constantemente as quedas de braço com o agronegócio e as madeireiras. Grilagem legitimada pelo governo e venda de pedaços da floresta é o que temos visto se concretizar de fato.
O bioma amazônico, ocupante de praticamente 60% do nosso território, é peça fundamental para que tenhamos o tão propalado desenvolvimento sustentável, em sua acepção honesta. Conhecê-lo e cuidar dele em sua totalidade são obrigações inadiáveis de quem pretende crescer sem perder sua soberania, que certamente não está ameaçada por conta dos índios, como chegou a se apavorar o general Heleno.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania
[EcoDebate, 15/08/2008]