Recordar ou esquecer? A Lei de Anistia em discussão. Entrevista com seis especialistas
Décadas depois a Ditadura Militar ainda gera polêmica e divergência. Um pacto, em 1979, entre os militares de plantão e algumas lideranças políticas, possibilitou a Lei de Anistia. Depois disso veio a Constituição de 1988. Diferentemente de outros países da América Latina, no Brasil, nenhum torturador, respaldado pela Lei de Anistia, foi punido. Tarso Genro, ministro da Justiça e Paulo Vannucchi, secretário de Direitos Humanos,levantaram, recentemente, uma questão candente.
Para discutir a questão, a IHU On-Line propõe o debate a seguir. Com base nas perguntas enviadas pela nossa equipe, professores do curso de Direito, de Filosofia e Ciências Sociais da Unisinos comentam a proposta do ministro Tarso Genro, favorável à punição dos torturadores que atuaram durante o Regime Militar.
A todos os professores entrevistados abaixo foram encaminhadas as seguintes perguntas:
IHU On-Line – A Lei da Anistia pode ser reavaliada e modificada, juridicamente? O senhor concorda com a proposta do ministro Tarso Genro, favorável à punição de torturadores que atuaram no Regime Militar? Em que aspectos essa medida é positiva ou negativa para a história do país?
IHU On-Line – Em que medida a Lei da Anistia comprometeu os direitos humanos, no país?
IHU On-Line – Tortura pode ser considerada um crime político?
IHU On-Line – Quais são as implicações de abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto de vista democrático e político é melhor recordar ou esquecer esse assunto?
Confira os depoimentos concedidos por e-mail à IHU On-Line.
Alfredo Culleton é graduado em Filosofia, pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijui), mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professor do PPG em Filosofia e do PPG em Direito da Unisinos
Eis o depoimento:
“As conjunturas políticas algumas vezes exigem que se concorde em assinar, ou acatar, uma Lei de Anistia, mas, antes de qualquer lei positiva, há uma lei natural, que podemos chamar de direito humano fundamental, cujo fundamento último é uma razão crítica, a qual nenhuma lei positiva pode suprimir. Por isso, determinados atentados contra a vida humana são considerados como imprescritíveis, isto é, que não prescrevem nunca. Este tipo de crime clama por justiça por si só. Não são as pessoas que gritam, é a própria injustiça que grita nos homens, e nem o tempo nem a omissão conseguem abafar esse clamor. A saúde cívica de uma nação depende de dar ouvidos a este clamor, de aceitar a dor, de enxergar a ferida e tratá-la; afogar esse grito, negar, esquecer vira sintoma dos muitos aos quais estamos quase acostumados como a corrupção, a violência e o sentimento de insegurança.”
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Lenio Streck é mestre e doutor em Direito, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e pós-doutor, pela Universidade de Lisboa. Docente do curso de Direito da Unisinos, ele é membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica.
Eis o depoimento.
“O ministro Tarso Genro sustentou a necessidade de reavaliar a aplicação da Lei da Anistia para aqueles que agiram por excesso de mandato. Esses, portanto, não cometeram crimes políticos. Nisso se enquadra, obviamente, a tortura, que sempre é violadora da Lei, da Constituição e dos tratados internacionais. Nem o regime de exceção avalizava legalmente a tortura. Mas, pergunto e respondo, é possível punir, ainda hoje, esses torturadores?
Penso que sim. Tortura é crime imprescritível. Mesmo que a Constituição apenas tenha tornado a tortura imprescritível em 1988, portanto, depois da Lei de Anistia, os tratados internacionais dos quais o Brasil era signatário colocavam-na como crime contra os direitos humanos e imprescritíveis.
Esse foi o caso da Argentina, em que a Suprema Corte julgou inconstitucional a Lei da Obediência Devida, que anistiara os militares que praticaram tortura. Mas essa é uma questão complexa, que demanda uma longa entrevista, para evitar mal-entendidos, principalmente na comunidade jurídica, em face do princípio da reserva legal, para citar apenas esse ponto de extrema controvérsia.
A Lei de Anistia comprometeu os direitos humanos quando permitiu aplicação tabula rasa, não separando o joio do trigo. Na verdade, em muitos casos, ficamos com o joio.
Os arquivos da ditadura devem ser abertos. Trata-se de um direito fundamental da nação. Ela precisa saber o que aconteceu.”
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Castor Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia e Teologia, pela Universidade de Comillas, mestre em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Universidad de Deusto, Espanha. Ruiz é docente do PPG em Filosofia da Unisinos.
Eis o depoimento.
“Em primeiro lugar, gostaria destacar alguns princípios filosóficos deste debate. O principal deles é que o esquecimento da barbárie perpetrada no passado promove a sua reprodução no futuro. Só a memória das violências cometidas pode evitar que elas se repitam no futuro. Um segundo pressuposto é que o esquecimento submete às vítimas a uma dupla injustiça: elas sofreram a barbárie da tortura e agora se pretende apagar seu sofrimento através do esquecimento. Só a memória detalhada de cada vítima, de seu sofrimento, do horror cometido contra ela pode ajudar reparar, em parte, a barbárie e injustiça que sofreram. Esquecer significa negar as vítimas e seu sofrimento; o esquecimento as condena a uma segunda morte, a morte da história, e uma segunda injustiça: a injustiça do olvido.
Antes de falar de anistia, haveria que diferenciar entre os conceitos de esquecimento e perdão. Só se pode perdoar se há memória viva do acontecido. Quando se esquece não se perdoa, simplesmente se ignora a responsabilidade do torturador e a dor da vítima. O perdão, necessário em muitos casos, só pode acontecer como evento político se a memória da barbárie e o sofrimento das vítimas são rememorados como ato do presente. A anistia não pode ser esquecimento, ela poderá vir a existir como ato político do perdão, porém e só uma vez que se restabeleça a memória de todo o acontecido com as vítimas e as responsabilidades dos torturadores.
O tribunal de Nüremberg, ante a barbárie nazista, teve de inovar uma categoria jurídica: os crimes contra a humanidade. Há consenso filosófico, jurídico e político de que os crimes contra a humanidade não prescrevem no tempo nem sua responsabilidade fica restrita a um país. Se a tortura sistemática, em grande escala, praticada por aparatos do Estado, não fosse considerada um crime contra a humanidade, o que mais poderia ser considerado? A tortura, mais do que um crime político, deve ser conceituada como crime contra a humanidade, por isso sua responsabilidade não prescreve.
No que se refere à abertura dos arquivos da ditadura, dois pontos estão em questão: a justiça das vítimas; e evitar que no presente e futuro venham se repetir os atos de tortura como estratégia de controle biopolítico. Para tanto, se requerem duas medidas: trazer à memória o detalhe dos fatos acontecidos para fazer justiça às vítimas, e responsabilizar judicialmente aos torturadores pelo que fizeram. Após a sentença judicial, se poderá falar em anistia como perdão da pena ditada pelo tribunal. Porém, é necessário que esse julgamento aconteça para que a impunidade não perpetue a barbárie entre nós.”
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Sólon Eduardo Annes Viola é doutor em História, pela Unisinos, onde, atualmente, é professor de História da Educação e de Direitos Humanos e Democracia na América Latina. O pesquisador também participa da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e é membro do Comitê Brasileiro de Educação em Direitos Humanos.
Eis o depoimento.
“A Lei de Anistia foi um produto da transição do autoritarismo para a democracia. De certa forma, um acordo político entre a oposição (respaldada fortemente pelo movimento social) e o poder militar. A exigência dos governos da época foi de uma anistia ampla e geral, o que pressupunha não só a reconciliação nacional, mas o encobertamento dos crimes, no caso específico o crime da tortura, tido em tratados internacionais como um crime hediondo, cometidos pelo Estado contra seus cidadãos. O que se está discutindo desde as manifestações do ministro da justiça é a possibilidade de investigação, e eventual punição, destes crimes e não a revisão da Lei da Anistia. Ainda sobre os torturadores, mesmo nos Atos institucionais não se pode encontrar nenhuma autorização expressa a tal prática, embora a eliminação do habeas corpus possa ser um indicador de sua utilização pelos aparatos repressivos, militares ou civis.
Deve se investigar, e é disto que fala o ministro Tarso Genro. Há provas evidentes de práticas de tortura e assassinatos de opositores do regime militar. A experiência internacional não apresenta casos de anistia a torturadores e a autoridades responsáveis por estas práticas de investigação e de destruição da integridade física e psíquica dos que a ela foram submetidos. As experiências internacionais demonstram que, nos países em que os responsáveis pelas práticas de tortura foram julgados e condenados, o índice de violência diminuiu significativamente. Especialmente a violência originada do Estado e exercida por seus agentes em nome da sociedade. A impunidade dos torturadores de uma época estimula a manutenção destas práticas ao longo do tempo.
A experiência internacional, basta aqui recuperar a memória dos tribunais de Nürenberg e de Haia, consideram a tortura um crime hediondo, a Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, referenda os tratados internacionais. A tortura, mais do que um primitivo de investigação, sempre teve como objetivo eliminar a consciência das sociedades e substituí-la pelo medo. Não por acaso, ela está presente na história humana quando as forças autoritárias negam a democracia e a soberania dos povos e das nações.
A Anistia é a construção do entendimento entre as diferentes correntes de pensamento de uma sociedade. No caso brasileiro, foi mais uma mediação um acerto pragmático do que uma reconciliação nacional. Quando, por exigência dos governos militares, a anistia se fez “ampla e geral”, foram incluídos na lei não só opositores do Regime Militar, mas criminosos que atuaram em nome do Estado e, portanto, de toda a sociedade, fora dos limites da lei, mesmo da lei de exceção. Os Direitos Humanos não existem para defender a impunidade; pelo contrário, seus pressupostos exigem o cumprimento de normas que garantam a justiça para todos, e aqueles que cometem crimes devem ser responsabilizados pelos atos que cometem.
Um país precisa encontrar-se com seu passado. Revisitá-lo, apreender com ele é a única forma de nunca mais cometer os mesmos erros. Já tardamos além do desejável para abrir os arquivos da ditadura. Encobrir a História não é esquecê-la; é permitir que os erros se repitam indefinidamente. Não se trata aqui de condenar as forças sociais que exorbitaram em suas ações, mas de percorrer caminhos que coloquem a justiça como ponto de partida das relações políticas e sociais. O esquecimento não só elimina o passado, mas impede a sociedade de se libertar do medo e de constituir a democracia como forma de regulação da vida política e econômica.”
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José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito, pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação e da Graduação em Direito na Unisinos, avaliador do Ensino Superior pela SESu/INEP e conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Eis o depoimento.
“Não se trata de se modificar ou de se reavaliar a Lei de Anistia de 1979. Trata-se apenas, a meu ver, de interpretá-la de modo mais coerente e correto (o que envolve sua análise pelo filtro da Constituição de 1988 e da Lei de Anistia de 2002). Torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados realizados por agentes do governo ditatorial não são crimes políticos (as leis em vigor na ditadura militar consideravam criminosas essas condutas), mas sim ‘crimes contra a humanidade’, o que é assente na ordem jurídica internacional desde o Tribunal de Nüremberg, em 1945. O Brasil pertence à Organização das Nações Unidas (que se ergueu exatamente a partir de Nüremberg) e ratificou tanto a Declaração da ONU quanto, mais adiante, em 1952, a Convenção das Nações Unidas sobre Prevenção e Repressão do Genocídio e, em 1957, as Convenções de Genebra de 1949. Em todos esses tratados, o chamado ‘direito humanitário’ aparece com grande força, assim como a noção dos ‘crimes contra a humanidade’.
A imprescritibilidade de tais crimes é da sua própria essência, é inerente à sua tipificação, princípios e contexto histórico, restando hoje explicitamente reconhecida por diferentes normas nacionais e tratados internacionais, dos quais o mais recente é o Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil inclusive. Além disso, os crimes de desaparecimento forçado constituem crime permanente, não havendo sequer que se cogitar de sua prescrição até que sua elucidação se complete. Assim, sou favorável, sim, à tese do ministro Tarso Genro e considero levianas e injustas as acusações que são feitas a ele de ser movido por interesses particulares e eleitorais.
Considero o ministro Tarso Genro um verdadeiro democrata e o parabenizo pela sua coragem em assumir publicamente este debate. Na minha opinião, a Lei de Anistia de 1979 não foi ampla, geral e irrestrita. Se ela propiciou o retorno de muitos exilados e a libertação dos presos políticos (o que no contexto da época já foi um feito memorável e importante), ela também serviu, política e historicamente, para garantir a impunidade dos agentes do governo, pois prevaleceu até hoje a tese de que os crimes contra a humanidade cometidos por tais agentes estavam inseridos na duvidosa expressão ‘crimes conexos’, contida na lei de 1979, e que, portanto, os seus autores também estariam anistiados. Este fato alimenta uma cultura de violência e impunidade, que é muito forte hoje em nosso país. Muitas pessoas, por exemplo, acham que é perfeitamente normal que o Estado torture e mate em sua ação policial. Basta ver, por exemplo, o que acontece hoje contra os jovens pobres e negros da periferia carioca.
Em função disso, eu pergunto: que direito têm as Forças Armadas de manterem inacessíveis à sociedade brasileira documentos que contribuem para elucidar a sua própria história? As Forças Armadas, na verdade, temem que a sua imagem junto à opinião pública fique seriamente abalada e que, é claro, se consubstanciem provas sólidas contra pessoas que integraram e integram os seus quadros, muitas delas vivas até hoje. Mas é um direito do povo brasileiro saber o que aconteceu, é o ‘Direito à memória e à verdade’. Como vamos esquecer aquilo que nem sequer foi conhecido? Como vamos superar um problema que não foi enfrentado? Como vamos anistiar quem nem sequer foi acusado e julgado (ao contrário do que aconteceu com os militantes políticos que resistiram a um governo ilegítimo e inconstitucional)? Esquecer o que está pendente não é superar e pacificar, mas sim recalcar o que há de pior do que se tenta fugir. Nossa sociedade violenta e desrespeitadora dos direitos humanos está aí para comprovar isto. Esta história não tem dono, e é direito, especialmente dos mais jovens, conhecê-la.”
(www.ecodebate.com.br) entrevistas publicadas pelo IHU On-line, 11/08/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[EcoDebate, 13/08/2008]