O risco do petróleo em águas profundas, artigo de Norman Gall
[O Estado de S.Paulo] “Quando perfuramos abaixo do sal, entramos no reino do desconhecido”, disse Peter Szatmari, um geólogo de origem húngara que trabalha no Cenpes, o centro de pesquisa da Petrobrás. “Estamos encontrando algo inteiramente novo abaixo do oceano, como quando Colombo estava descobrindo um novo continente.”
O que Szatmari e outros na Petrobrás viram abaixo do sal foi uma nova fronteira na descoberta de petróleo, uma das últimas neste planeta. O reino do desconhecido envolve problemas de geologia, tecnologia, logística, segurança, finanças, política, recursos humanos, governança corporativa e estratégias de desenvolvimento econômico que ainda precisam ser resolvidos no momento em que o Brasil agarra as oportunidades de uma nova era. Nesta série de artigos e numa conferência na sequência, o Estado tratará dessas questões.
Em 2006, a Petrobrás e suas parceiras privadas (British Gás, Repsol da Espanha e Galp de Portugal) perfuraram a 7 mil metros abaixo da superfície do Atlântico Sul, penetrando antigos sedimentos situados abaixo de camadas de sal com mais de 2 mil metros de espessura, para encontrar os restos fossilizados de micróbios verdes que viveram há 130 milhões de anos, quando os dinossauros ainda circulavam pelo interior continental do Brasil. Presos embaixo de volumosas estruturas salinas, esses fósseis de micróbios foram transformados por calor, pressão e tempo no campo de Tupi, depois renomeado Lula, uma das maiores descobertas de petróleo e gás das últimas décadas. Ao todo, foram anunciadas até agora as descobertas de 10 campos gigantes nas águas profundas da Bacia de Santos.
As dimensões dessas formações geológicas são imensas. “Na Bacia de Santos, a crosta continental se estende por 700 quilômetros offshore na região do Platô de São Paulo”, uma elevação vulcânica submersa, disseram geólogos da Petrobrás na Offshore Technology Conference em Houston. “A separação final entre a América do Sul e a África não foi simétrica – a zona de crosta continental estendida é mais larga ao longo da costa brasileira que ao longo da costa africana. Usando novas estratégias em sete anos de trabalho, perseguindo procedimentos inovadores, ajustada para os desafios geológicos da área, a Petrobrás obteve um tremendo sucesso exploratório e uma província de petróleo de classe mundial foi encontrada.”
Carlos Tadeu Fraga, veterano de 30 anos da Petrobrás, que já chefiou a exploração offshore da empresa antes de se tornar diretor do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello (Cenpes), disse-me que a área de águas profundas com camadas enormes de sal retendo micróbios fossilizados, “é quase igual à área de bacias sedimentares na parte dos Estados Unidos do Golfo do México”, que nos últimos anos respondeu por um terço da produção americana de petróleo.
As águas profundas como uma nova fronteira do petróleo aumentaram de importância como fonte de metade das descobertas de petróleo e gás adicionadas às reservas mundiais desde 2006. Segundo analistas, a produção mundial em águas profundas deve dobrar para 12,2 milhões de barris diários (BD) entre 2010 e 2017, principalmente no novo “Triângulo Dourado” de Brasil, Golfo do México e África Ocidental, mas também na Austrália e na Indonésia.
A euforia do pré-sal gerou na classe política a ilusão de recursos ilimitados no horizonte. Ao propor uma legislação para criar um novo arcabouço institucional para gerir essas descobertas, ministros do gabinete de Lula disseram que eles prometem “riscos de exploração extremamente baixos e grande lucratividade”. A presidente Dilma Rousseff supervisionou a elaboração do novo arcabouço legal quando presidia o conselho diretor da Petrobrás. Um debate furioso no Congresso sobre o novo regime institucional se centrou quase inteiramente na distribuição de royalties entre Estados e municípios, negligenciando os desafios técnicos e de governança dos trabalhos em águas profundas.
Em seu discurso de posse, Dilma chamou as descobertas no pré-sal de “nosso passaporte para o futuro”, mas advertiu contra “o gasto apressado, que reserva às futuras gerações apenas as dívidas e a desesperança”. No entanto, o novo regime de partilha da produção fortalece um capitalismo de Estado politicamente protegido com amplos poderes discricionários e pouca transparência. O novo regime obriga a Petrobrás a se tornar a operadora, com uma participação mínima de 30%, de todos os blocos de exploração nas áreas de águas profundas “estratégicas” que abarcam 149 mil quilômetros quadrados, uma obrigação que sobrecarregaria as capacidades humana, financeira e técnica já pressionadas da Petrobrás. Todas as decisões operacionais, incluindo contratação de pessoal, fornecedores e empreiteiros, seriam sujeitas ao veto de nomeados políticos de uma nova estatal, a Petro-Sal Petróleo, criada para supervisionar essas operações.
A Petrobrás pretende dobrar sua produção de petróleo e gás para 5,4 bilhões de barris diários de petróleo equivalentes (BDOE) até 2020, com investimentos iguais a um décimo da formação bruta de capital fixo do Brasil. Incluindo gastos de capital de fornecedores da Petrobrás, esse esforço conjunto envolveria investimentos totais de US$ 624 bilhões a US$ 824 bilhões em 2011-14. O governo captou mais de R$ 207 bilhões (US$ 121 bilhões) para emprestar a taxas pesadamente subsidiadas ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), boa parte dos quais foram emprestados para a Petrobrás e seus fornecedores.
O presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, advertiu para o “estrangulamento em áreas críticas” da cadeia de suprimentos. “Uma delas é a das sondas de perfuração. Uma sonda demora três ou quatro meses para perfurar um poço através de 2 mil metros de água. Um superpetroleiro convertido, conhecido como FPSO (Floating Production and Storage Offloading), que se torna o centro de distribuição de um sistema de produção, usa 15 ou 20 poços. Assim, com uma sonda leva-se quatro anos para se criar um sistema de produção. As sondas são críticas e o Brasil não as produz. Também carecemos de sistemas submarinos, tubulações para conectar o leito do oceano à superfície. Hoje temos toda a capacidade de produção mundial contratada e precisamos mais. Precisamos avançar na área de geradores de eletricidade flutuantes. Estamos falando de quantidades gigantescas de equipamentos. Cada sistema produz de 100 mil BD a 180 mil BD. Portanto, se quisermos atingir nossas metas de produção até 2020, precisamos de 41 desses sistemas. Cada sistema custa cerca de US$ 3 bilhões.
Para operar, cada um precisa de uma média de cinco navios de apoio. Estamos falando, portanto, de 200 navios de apoio de diferentes tipos (rebocadores, manejadores de âncoras, extintores de incêndio, etc.).”
As dificuldades da exploração e produção de petróleo em águas profundas foram dramatizadas em abril de 2010 pela explosão no poço de Macondo da BP no Golfo do México, um acidente com muitas ramificações políticas, econômicas e ecológicas, incluindo custos adicionais de seguro e crédito para operações em águas profundas. Afundou a sonda Deepwater Horizon, que custou US$ 560 milhões para construir.
Era um gigante semissubmersível, dinamicamente posicionada por enormes propulsores, uma potência da frota da Transocean, o maior empreiteiro de perfuração do mundo, que opera 11 sondas no Golfo do México e outras 11 offshore no Brasil. O desastre, matando 11 pessoas, resultou de falhas mecânicas e humanas, incluindo a negligência de protocolos de manutenção.
Desastres na escala da Deepwater Horizon são raros, mas quase desastres são comuns. Nos meses que antecederam o desastre do Macondo, uma explosão em águas australianas despejou petróleo no Mar de Timor durante semanas. No Golfo do México, numa plataforma da Noble, com uma frota mundial de 71 sondas, um poço descontrolado deslocou uma peça de duas toneladas de equipamento no convés, provocando uma correria de trabalhadores em busca de proteção.
Em um vazamento de gás numa plataforma de produção em águas norueguesas do Mar do Norte, faltou uma faísca para provocar um desastre como o de Macondo. Em 2009, na parte americana do Golfo do México, houve 28 importantes vazamentos de petróleo e de gás e episódios de trabalhadores perdendo o controle de poços, um aumento de dois terços em relação a 2006. No Mar do Norte britânico, houve 85 incidentes sérios no ano passado, um aumento de 39% sobre 2009. Na Noruega, 37 desses casos em 2009, 48% acima de 2008. Na Austrália, 23 quase explosões na primeira metade de 2010, o dobro do verificado em 2009. Os dados de acidentes fornecidos pelos governos desses quatro países apareceram numa pesquisa do Wall Street Journal, para a qual as autoridades brasileiras se recusaram a contribuir.
O Wall Street Journal também pesquisou as rotinas de trabalho dos 55 inspetores do governo americano que verificam equipamentos e procedimentos de segurança nas 3.500 plataformas e sondas no Golfo do México, descobrindo que “esses inspetores são dominados pela indústria, solapados por seus próprios superiores e não conseguem dar conta do serviço pela simples carga numérica das instalações offshore que inspecionam… São principalmente ex-trabalhadores em campos de petróleo com pouca educação formal, que não se submetem a testes de certificação. Eles quase não têm experiência direta no campo especializado de perfuração em águas profundas.”
O último inspetor a visitar a Deepwater Horizon da BP passou apenas duas horas na plataforma três semanas antes da explosão fatal.
A Petrobrás sofreu quatro acidentes offshore importantes nas últimas décadas, com muitas mortes e a perda em 2001 da plataforma P36, na época a maior do mundo, na Bacia de Campos. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) sofre uma severa falta de pessoal. Seus técnicos se queixam de procedimentos frouxos de segurança.
Em 2010, o sindicato dos petroleiros forçou a suspensão das operações nas Plataformas 33 e 35 na Bacia de Campos por condições inseguras. As plataformas de produção offshore são comunidades transitórias e poliglotas, onde os operadores vivem duas semanas por mês e trabalham em turnos de 12 horas, com empregados estrangeiros de prestadoras de serviços subindo a bordo para realizações tarefas específicas por períodos breves. Em algumas plataformas, contêineres de aço são usados como dormitórios para trabalhadores temporários. “Os empreiteiros carecem de pessoas qualificadas para tarefas especializadas. Há uma rotatividade acelerada e muitos trabalhadores asiáticos fazendo esses serviços”, disse um inspetor da ANP. “A ANP tem apenas 20 engenheiros para inspecionar 184 sondas e plataformas de produção na Bacia de Campos.”
A explosão e afundamento da plataforma Deepwater Horizon ocorreu a 120 quilômetros da costa do Golfo do México, a metade da distância do complexo Lula/Tupi da costa brasileira. Se um acidente parecido ocorrer assim longe da costa, nem a Petrobrás, nem a Marinha brasileira, nem empresas de serviço privadas têm capacidade para montar uma operação que se aproxime da escala do esforço de emergência que ocorreu no Golfo do México, mobilizando 30 mil pessoas, 7 mil navios e 100 aviões. As descobertas na Bacia de Santos estão fora do alcance dos helicópteros que atualmente dão apoio às operações offshore da Petrobrás.
Gabrielli dizia a Claúdia Schuffner, do jornal Valor Econômico: “O setor não desenvolveu nem a tecnologia nem os equipamentos para uma resposta rápida e adequada a um acidente dessas proporções”, acrescentando que “barreiras de contenção não funcionam adequadamente, a perfuração de poços de alívio alternativos é muito demorada e as tecnologias de coleta do petróleo são insuficientes. Precisamos melhorar a capacidade de mobilização fora da companhia, das Forças Armadas, dos governos estaduais e municipais e da defesa civil”.
No caso de um grande acidente offshore, a Petrobrás sofreria enorme perda de capital que significaria uma perda do grau de investimento na classificação do crédito e também o do BNDES e do risco soberano do Brasil.
Depois do acidente da BP no Golfo do México, a corretora internacional Marsh reportou “aumentos extremos” nos prêmios de seguro no Golfo, com “até o dobro” para renovações de apólices, apesar da avidez de seguradoras para investir grandes reservas de dinheiro. Tom Bolt, do Lloyd”s de Londres, reportou que as seguradoras de projetos mundiais de energia offshore perderam dinheiro em oito dos últimos 10 anos.
Isso confirma a vocação da indústria petrolífera para altos riscos e altos ganhos. A prospecção de petróleo em águas profundas prosseguirá. Resta saber quanto risco será tolerado e contido./ TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 01/02/2011
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