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Artigo

Carta aberta: A invisibilidade do Cerrado na política ambiental, por Carlos Walter Porto-Gonçalves


Definitivamente, senhor ministro, o Cerrado não pode continuar sendo vítima da ignorância interessada e de uma visão primeiro-mundista de meio ambiente

[Brasil de Fato] Não é fácil assumir um Ministério do Meio Ambiente num país como o nosso, com o patrimônio de recursos naturais e diversidade cultural que temos, mas sob o domínio de uma mentalidade desenvolvimentista que ainda pensa o presente e o futuro com o passado fordista. Desde Fernando Collor de Mello que esse Ministério vem sendo ocupado por eminentes ambientalistas reconhecidos internacionalmente como o saudoso José Lutzemberger e, recentemente, por Marina Silva e, agora, por V. Sa. Tudo indica que nossas elites políticas compreenderam bem o fato de o Brasil ser importante ecologicamente para o planeta e que isso nos coloca sob os holofotes internacionais daí as nomeações de personalidades tão respeitadas por sua militância no campo.

No caso da Ministra Marina Silva esse fato se mostrou evidente, pois foi a primeira ministra a ser nomeada no 1° governo Lula da Silva, inclusive com sua nomeação feita isoladamente, quando o Presidente recém-eleito se encontrava em viagem ao exterior, e contra uma norma que ele mesmo estabelecera de que só revelaria seu Ministério todo junto. Vimos como, apesar de todos os esforços da ex-ministra, ela foi derrotada em todas as questões ambientais de fundo. Um dos principais efeitos da visão ambiental de nossas elites, pautada no que o primeiro mundo quer, tem sido, entre outras coisas, a amazonização da nossa política ambiental. Com toda a riqueza cultural e ecológica da Amazônia foi preciso muita luta, e mortes, para que se impusesse ao 1° Mundo a visão de que na floresta tem gente e que não era só um ecossistema, como até então nos viam. Foi preciso o brado “Não há defesa da floresta sem os povos da floresta”, povos tão bem liderados por Chico Mendes e Ailton Krenak, para que se firmasse uma visão própria da questão ambiental enquanto socioambiental diferente da visão eurocêntrica hegemônica que separa natureza e sociedade. Essa amazonização da política ambiental brasileira por essa visão estrangeira de nós mesmos é pobre, posto que não dá conta da diversidade de nossos biomas e da complexidade da questão ambiental em nosso país e, por isso mesmo, não consegue conter nem mesmo a expansão devastadora sobre a própria região-foco da política ambiental. Afinal, é um erro pensar a política para a Amazônia dissociada da política geral do país.

Em plenos anos 1970, senhor ministro, quando as estradas começavam a rasgar o coração da Amazônia, um dos maiores cientistas naturais do país, Mario Guimarães Ferri, afirmava que a ocupação racional dos Cerrados era fundamental para a preservação da Amazônia. Deixemos de lado, por enquanto, o que se considera uso racional que, quase sempre, ignora outras racionalidades que não a razão técnico-científica. Já se vão quase 40 anos e não só a Amazônia sofreu a maior devastação de toda a sua história como os Cerrados foram praticamente arrasados sem que tenhamos conseguido demonstrar o crime que se cometeu posto que, nos Cerrados, se desenvolveu a verdadeira menina dos olhos do modelo de ocupação com base nos latifúndios empresariais monocultores que, há 500 anos, mata e desmata RACIONALMENTE e que se reveste com o pomposo nome de agribusiness (assim mesmo, Senhor Ministro, em inglês, que é como se autodenomina a Associação Brasileira de Agribusiness que, assim, de brasileira tem somente o prenome, mas não o sobrenome, aquele que nos dá a origem).

O Cerrado, senhor ministro, é o único dos biomas brasileiros que faz limite com todos os outros biomas e, por isso, mantém áreas de tensão ecológicas que têm uma elevada complexidade, inclusive por sua megabiodiversidade, e onde o conhecimento pormenorizado advindo de uma longa vivência, como a dos camponeses, quilombolas e povos originários, se torna particularmente importante e, por isso, esses povos devem se tornar patrimônio do país (e da humanidade) pela relevante contribuição que têm para qualquer política ambiental para o país pelos Cerrados.

Guimarães Rosa, Senhor Ministro, por sua refinada criatividade e capacidade de escuta foi capaz de ouvir a cultura desses povos e nos deu uma obra – Grande Sertão: Veredas – que, no próprio título, mostra a profunda compreensão das paisagens dos Cerrados, suas enormes e vastas chapadas onde o “coração vive à larga”, como o gado solto, – os Grandes Sertões – e os fundos de vales onde os povos fazem suas “agri-culturas”, – as Veredas. Pois é, Senhor Ministro, as chapadas, onde os pequenos agricultores encontravam limitações para a agricultura não só pela menor fertilidade dos solos, mas sobretudo pela dificuldade de obtenção de água, é, para os agronegociantes um verdadeiro paraíso posto que captam água com seus pivôs centrais e, sendo as chapadas áreas extensas e planas, é muito menor o gasto com energia, o que não é qualquer coisa para uma prática agrícola energívora, como a desses latifúndios empresariais monocultores para exportação do agribusiness. Essas águas que são aspergidas por um sistema de irrigação que desperdiça a maior parte da água que capta é a água que, cada dia mais, Senhor Ministro, falta no fundo do vale onde se faz agricultura camponesa.

Assim, o camponês que sempre fez uso múltiplo das múltiplas paisagens do Cerrado – o fundo do vale, a encosta e a chapada – se vê agora encurralado posto que perde a chapada e se vê sem água. Essas chapadas, Senhor Ministro, tal como os fundos de pasto no Nordeste, são áreas tradicionalmente de uso comum, e é daí que vem o nome de Gerais, isto é, terra que pertence a todos, geral. A expropriação dessas extensas áreas comuns são os atuais enclousures. Guimarães Rosa foi quem, melhor do que ninguém, soube transcriar a riqueza cultural desses povos ao afirmar que os gerais são “uma caixa d`água” e com isso, mais do que os cientistas, iluminou a leitura de nossa geografia aos nos fazer ver que os nossos rios nascem nos Cerrados – o São Francisco, o Jaguaribe, o Parnaíba, o Tocantins, o Araguaia, o Xingu, o Madeira, os formadores do Paraguai (o Pantanal), o Paranaíba, o Grande, o Rio Doce. Temos uma legislação, Senhor Ministro, que protege as encostas em qualquer bioma, menos nos cerrados, onde mais do que em qualquer outro domínio geomorfológico, as chapadas se constituem em lugar privilegiado de recarga hídrica, daí termos tantos rios, a nossa “caixa d´água”. Enfim, se a água é uma riqueza com que a humanidade cada vez mais terá que se preocupar, os Cerrados devem, necessariamente, se tornar de maior interesse na nossa política ambiental, não bastasse sua enorme diversidade biológica já assinalada.

E qual o legado, senhor ministro, que se tem de política ambiental para o Cerrado? Antes de tudo, prevalece uma visão de primeiro mundo da nossa política ambiental e que atua em perfeita consonância com os interesses devastadores, pois privilegia a criação de Unidades de Conservação de uso restrito a técnicos e cientistas e deixa intacto todo o modelo anti-social e anti-ecológico em curso nos cerrados. Assim, ignora a perspectiva socioambiental, como sugere a Carta de Imperatriz dos Povos do Cerrado, que diz “que não há defesa dos Cerrados sem os povos do Cerrados”. Essa visão estreita que vem imperando, Senhor Ministro, mais beneficia certas ONG’s que obtém recursos para áreas restritas de preservação que, como vemos, mas as beneficiam enquanto ONG’s do que ao bioma e seus povos. Nessa visão, o modelo de ocupação dos Cerrados é completamente ignorado e é essa região, Senhor Ministro, que para espanto de todos, inclusive meu, é a região onde estão os maiores índices de violência no campo brasileiro, como vêm registrando as entidades que lutam por paz e justiça no campo e pela reforma agrária. É na região dos Cerrados, Senhor Ministro, que está a maior parte das estradas e das hidrelétricas que servem ao agribusiness e à exportação de commoditties minerais, assim como a maior parte das obras que estão para serem construídas no PAC.

Definitivamente, senhor ministro, o Cerrado não pode continuar sendo vítima da ignorância interessada e de uma visão primeiro-mundista de meio ambiente que continua separando natureza e sociedade e, assim, mais que solução, é parte do problema. Se a maior parte das obras do PAC está no Cerrado há recursos do Fundo de Compensação Ambiental que devem servir aos Cerrados e seus povos, para o que se necessita uma Secretaria do Cerrado forte dentro do Ministério dirigida por alguém que tenha uma clara compreensão da dinâmica sócioespacial que sobre ele se desenvolve e que esteja à altura da riqueza dos Cerrados e de seus povos! Para que não tenhamos daqui a 40 anos que vê-lo ainda mais devastado assim como a Amazônia! E que o uso racional dos cerrados não prescinda da racionalidade de seus povos, como até aqui vem se desperdiçando essa rica experiência!

Carlos Walter Porto-Gonçalves é doutor em Geografia e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – e do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira.

Originalmente publicado pela Agência Brasil de Fato

[EcoDebate] 08/08/2008