História e meio ambiente: questões para um debate atual e urgente, artigo de Valdemir José Sonda
Nas últimas décadas do século passado, a temática ambiental começou a ser debatida com mais intensidade em todo o Planeta, tendo em vista as profundas alterações proporcionadas pelo modelo econômico de desenvolvimento insustentável que leva o nome de capitalismo. Um dos marcos políticos deste debate, envolvendo governos, organismos internacionais, organizações não-governamentais, movimentos populares, comunidades indígenas, estudantes, cientistas, entre outros, tomou corpo com a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro. Mais conhecida como ECO, 92, entre os dias 03 a 14 de junho, teve a participação de delegações de 175 países.
Como desdobramento deste evento, nos anos seguintes, mais precisamente em 1997, intelectuais, cientistas, filósofos, teólogos, escritores, ativistas das causas ambientais, dos direitos humanos, se envolveram, nos quatro cantos do planeta, dando forma àquele que talvez seja um dos documentos mais amplos e necessários do nosso tempo, que vem a ser a Carta da Terra. Organizada em quatro grandes eixos, assim está resumida: a – Respeitar e cuidar da comunidade de vida; b – Integridade ecológica; c – Justiça social e econômica; d – Democracia não violência e paz. Tais eixos estão pautados na ciência contemporânea, no direito ambiental, na sabedoria das grandes tradições filosóficas e religiosas do mundo, etc.
Em suma, a Carta da Terra, lançada no Palácio da Paz em Haya no dia 29 de junho de 2000, faz uma profunda critica ao modelo de desenvolvimento em voga, cujas mudanças climáticas, a destruição avassaladora de florestas milenares, a degradação dos rios e mananciais, a produção do lixo doméstico, industrial, dos dejetos urbanos e rurais, a gestação da fome e da miséria, a dizimação da biodiversidade, a utilização indiscriminada de agrotóxicos no meio agrícola, entre tantas outras práticas, são sintomas claros de um modelo de civilização insustentável que sempre esteve pautado não no respeito às demais e variadas espécies de vida, mas preponderantemente no lucro sobre todas as coisas. Desafiando a humanidade a gestar e desenvolver a visão de um modo de vida sustentável em nível local, regional e global, sob pena de inviabilizarmos a continuidade da vida no Planeta às futuras gerações, o documento faz um chamamento à construção de novas práticas sócio-ambientais includentes, responsáveis e prudentes em beneficio da maioria da humanidade.
Na opinião do teólogo, pensador contemporâneo e ecologista Leonardo Boff que foi um dos co-organizadores do documento, juntamente com Paulo Freire, Gorbatchev, Fritjof Capra, Vandana Schiwa, e inúmeras outras personalidades, afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, teve o mérito de dizer “todos os homens” têm direitos e o defeito de pensar ‘só nos homens’. Os indígenas, os escravos e as mulheres tiveram de lutar para serem incluídos em ‘todos os homens’. Assim, hoje em dia, também a natureza precisa ser incluída como portadora de direitos, ou seja, enquanto mais um membro da sociedade ampliada. Nesse sentido, a Carta da Terra é um avanço em relação à Declaração Universal dos Direitos do Homem, pois amplia o conceito de cidadania política e social, para o conceito de ecocidadania, não excluindo a natureza, entre outros grupos marginalizados, como portadores de direitos.
Assim sendo, na relação entre História e Meio Ambiente, podemos trazer à tona, duas revoluções. Por volta dos anos 60 do século XX, enquanto os camponeses, estudantes, operários e intelectuais cubanos construíam linda e corajosamente a Revolução Cubana, os Estados Unidos da América do Norte, inventaram a dita Revolução Verde: um pacote tecnológico e ideológico que prometia acabar com a fome no mundo, a partir da implementação de uma agricultura técnica e comercial. A agricultura, até então camponesa, por exemplo, começou a ser tratada como coisa atrasada, anacrônica, improdutiva: coisa de jecas, índios, quilombolas, ribeirinhos e colonos sem inteligência. O incentivo ao desflorestamento, a aquisição de máquinas pesadas nas atividades agropecuárias, a utilização de insumos e venenos, os empréstimos bancários acabaram por se tornar regra, na mesma medida que a monocultura da soja, do milho e do trigo aumentavam o terreno a ser plantada, a cultura tradicional da agricultura nacional, o feijão, o arroz, por exemplo, diminuíam de espaço.
Tamanhas transformações, juntamente com a industrialização do “Brasil Ame-o ou Deixe-o” dos anos 70, ocasionaram, entre outras coisas, o inchaço de nossos centros urbanos, a favelização das médias e grandes cidades brasileiras, desestruturando demograficamente várias regiões, provocando ainda mais desequilíbrios ecológicos, através da ocupação desordenada de habitações em meio a terrenos impróprios, sem as condições infraestruturais que a dignidade humana merecem. Tanto isto é verdade, que de cada 100 brasileiros do período, 70 viviam no campo e 30 na cidade. Nos anos 90, de cada 100, 70 estavam nas cidades e 30 no campo, de acordo com dados do IBGE.
Nestes últimos 50 anos, desde os tempos da Ligas Camponesas e nos últimos 21 anos, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e demais setores progressistas e democráticos da sociedade brasileira, a Reforma Agrária radical é um dos mais fortes brados nacionais, capaz de permitir a volta do homem do campo para o campo. Assim, o ajuntamento de milhares de explorados, excluídos e desesperançados dando vida aos acampamentos feitos de lonas pretas, apontando para as cercas da exclusão do latifúndio retrogrado, mesquinho, violento e antiecológico, estão transformando, com sacrifício e organização, algumas regiões brasileiras.
Diante do atual contexto sócio-econômico e político, o imperialismo norte-americano tenta, e muitas vezes consegue, infelizmente, enfiar goela abaixo no sentido norte-sul, mais uma “revolução”, no bojo da biotecnologia, em que os Organismos Geneticamente Modificados, os tais de transgênicos, são apontados como a salvação da lavoura.
Dessa forma, existem, hoje em dia, nitidamente, dois projetos de vida: o calcado com base no capitalismo: no pensamento, na ação, na produção e na comercialização através da agricultura convencional, a partir da grande propriedade agroexportadora; o calcado com base na solidariedade, na cooperação, na estrutura familiar, de tradição camponesa, indígena, negra e popular, a partir da pequena e média propriedade. O primeiro continua postulando o adubo químico, o inseticida, o herbicida, o fungicida, a exportação, as sementes geneticamente modificadas na monocultura da soja, da cana, dos cítricos, do feijão e do arroz. O segundo projeto, no espírito da Carta da Terra, busca recuperar o conhecimento milenar e tradicional das comunidades indígenas, dos quilombolas, dos caiçaras e seringueiros, do sertanejo, da agricultura familiar, a fim de produzir para a mesa do povo brasileiro o pão, o feijão, o arroz, a soja orgânica, as frutas, numa relação de profundo respeito com o Meio Ambiente.
Existem nestas duas modalidades projetos políticos distintos, pois a soberania de um povo é preservada a começar pelo direito a soberania alimentar contra os abutres do agronegócios consorciados com os interesses das 10 maiores empresas multinacionais do setor: Monsanto, Bunge, Cargill, Syngenta, ADM, Basf, Bayer, Norvartis + Adventis, Nestlé e Danone, que também estão de olhos aguçados em nosso patrimônio hídrico. Para finalizar, Leonardo Boff, nos diz o seguinte: “toda injustiça social é uma injustiça ecológica contra o ser humano, contra as águas poluídas, contra os solos envenenados, contra o ar empesteado”.
O autor é professor do Curso de História da UNIOESTE. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
* Artigo socializado pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e publicado pelo EcoDebate, 28/10/2010
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