Franceses são ‘vítimas’ do progresso, artigo de Maurício Gomide Martins
[EcoDebate] Temos visto nas últimas semanas um forte movimento de contestação na França. 70% dos franceses se insurgem contra o projeto, já transformado em lei, do governo Nicolas Sarkozy de reforma da lei previdenciária do país, pelo qual aumenta em 2 anos o limite de idade para aposentadoria. Pelo visto, apenas 30% dos franceses possuem o bom senso de enxergar a obviedade.
Registramos que essa elevação é bastante suave ante o limite adotado por outros países da Europa, notadamente a Alemanha e Suécia. O que acontece na França é repetição das reações de mesma natureza ocorridas em outras comunidades, mas com menos repercussão na mídia. Os fatos na França têm tido mais ressonância mundial porque esse país tem a tradição de ser berço irradiador de mudanças sociais, tanto em atitudes revolucionárias quanto em idéias.
Enxergamos esses acontecimentos como uma faceta – uma amostra de aviso –, de uma lógica conseqüência do progresso ganancioso que impera na atual civilização materialista e antropocentrista. Para alguns, essa observação parecerá um pouco exagerada, ou sem fundamento, ou extravagante. Adiante, aduziremos melhores explicações.
Sob as razões culturais individualistas do modernismo tecnológico, os que protestam nada fazem do que defenderem seus benefícios, representados pela obtenção de bens e confortos supérfluos, isto é, manutenção das aspirações de ócio, conforto, e remuneração vinda do governo, justificados como prêmio por estarem vivendo mais. Querem viver a vida no aqui e agora. Seus projetos de vida não incluem as gerações humanas vindouras e muito menos a biodiversidade. Na cabeça da modernidade não há espaço para elas. Tudo gira sob a visão imediatista do ego personalíssimo, do inconsciente individualista do “après nous, le délouge”, sedimentada nas mentes moldadas pela “cultura” dirigida, orientada pela mídia peçonhenta e destruidora da espiritualidade.
O governo francês está agindo corretamente, pois sua visão alcança as gerações futuras que ficam comprometidas pela deformidade da pirâmide etária, onde a tendência é inverter-se. A causa é o progresso tecnológico-científico que, dando livre curso ao instinto de preservação da espécie, fornece assistência médica ao macróbio de tal forma que o leva a sustentar uma vida improdutiva e inútil na média de 80 anos nos países mais desenvolvidos. Chega-se ao ponto de ligar um moribundo a máquinas que desempenham as funções orgânicas essenciais. É célebre o caso da competentíssima equipe médica espanhola, mantendo o general Franco ligado a tantas máquinas operatrizes que o corpo funcionava, mas não tinha vida. Depois de muito tempo nessa situação, a família decidiu que fossem desligadas as máquinas. Hoje, fala-se em transplantes, órgãos artificiais, enxertos, células-tronco, clones, vacinas para combater diversos agentes da morte. A medicina age na busca ingente da eternidade para o corpo. Enquanto isso, relega-se o cultivo dos valores espirituais, o sublime gestor da vida.
Não há vantagens individuais sem a contrapartida de um custo social doloroso. Os benefícios de rapidez, conforto e ociosidade, propiciados pela tecnologia não são de graça. Alguém paga com suor e sangue. Quando não é a própria humanidade, é o planeta em seus recursos limitados. A interferência tecnológica no prolongamento da vida humana é parte dos outros milhares de procedimentos contrários aos processos e objetivos da Natureza.
Toda ação produz um efeito. Isso é lei natural. Não se prolonga a vida humana impunemente. Não se opõe à Natureza sem uma fatura elevada. Esse aspecto deveria servir de lição aos amantes do desenvolvimento, progresso e crescimento a qualquer preço. O apego a bens materiais (o corpo senil passa a ser um bem material) com os artifícios empregados pela medicina, procura retirar da Natureza o privilégio pela determinação do prazo de vida de um indivíduo. Isso tem custo, tem conseqüências diretas e indiretas.
Há, nos Estados Unidos, pessoas ricas que pagam caro a determinadas empresas para preservarem congelados seus cadáveres a fim de que, no futuro, sejam retornados à vida, caso a ciência descubra um meio de ressuscitá-los. Isso se assemelha muito à incapacidade de aceitação da morte pelos antigos faraós egípcios.
No Brasil existe o mesmo problema. A previdência, cada vez mais incapacitada, oferece um déficit mensal crescente e em valores expressivos. Nenhuma medida corretiva é tomada. Como é próprio da ineficiência governamental brasileira, espera-se o caldeirão explodir para depois tomar alguma correção. Previdência significa ver antes. O mais é imprevidência
O governo francês declarou que, no futuro, os jovens de hoje agradecerão as medidas acautelatórias de agora. Palavras de um governo competente, realista e responsável.
As conseqüências ambientais – aí incluída a visão social –, resultantes da perversão às normas da Natureza, são dores e sofrimentos.
Maurício Gomide Martins, 82 anos, ambientalista e articulista do EcoDebate, residente em Belo Horizonte(MG), depois de aposentado como auditor do Banco do Brasil, já escreveu três livros. Um de crônicas chamado “Crônicas Ezkizitaz”, onde perfila questões diversas sob uma óptica filosófica. O outro, intitulado “Nas Pegadas da Vida”, é um ensaio que constrói uma conjectura sobre a identidade da Vida. E o último, chamado “Agora ou Nunca Mais”, sob o gênero “romance de tese”, onde aborda a questão ambiental sob uma visão extremamente real e indica o único caminho a seguir para a salvação da humanidade.
EcoDebate, 27/10/2010
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Caro Maurício,
Difícil contrapor seus argumentos sobre a questão francesa da ampliação da idade para aposentadoria. É verdade estamos vivendo mais; é verdade queremos conforto; é verdade queremos ócio e; é verdade consumimos bens supérfluos.
Entretanto, gostaria de chamar a atenção para lembrar que não se trata de ser gigolô de governo ou por a mão no dinheiro do governo – pagamos durante trinta e cinco anos quantia significativa de nossos proventos e queremos receber o prometido rendimento – afinal o Sr. deve estar recebendo este direito a mais de vinte anos.
Outro ponto que me parece importante é que não se trata de ócio mas de um merecido direito de fazer o que bem entender com seu tempo – durante trinta e cinco anos fomos escravos de horários, sem tempo para dedicar a saúde física, mental e espiritual – o que desejamos justamente gosar.
Discutir este tema abre o leque de outras possibilidades mais justas. Por exemplo sou defensor de que deveríamos trabalhar seis horas diárias para que tivéssemos tempo para os cuidados da boa qualidade de vida. As máquinas podem ser mais produtivas pois basta trocar peças ou comprar outra para substituição. Trocar algumas partes de nosso corpo para ampliar a longevidade para quê? – ficar mais anos trancafiados sem ver o dia ou a noite pois estamos esgotados?
A sua percepção pode estar de acordo com este sistema que critica,que é materialista e capitalista. Mas difere do ponto de vista social e espiritualista.
Quando afirma que nossa Previdência é imprevidente, concordo. Mas, antes de pensar em ampliar nossa idade de aposentadoria, vamos corrigir erros graves que podem perfeitamente melhorar este equilíbrio.
Primeiramente, vamos reduzir salários e previlégios de parlamentares e governantes – já daria uma boa equilibrada nos gastos; vamos combater de forma séria a corrupção – todos os déficites seriam reduzidos – todos os fundos de pensão e previdência são saqueados pelos governantes que os repassam para as grandes empresas.
Só isto já seria suficiente para ficarmos tranquilos com as aposentadorias no Brasil.
O Sr. sabe bem que o dinheiro público é colocado nas mãos de banqueiros e grandes corporações e é deles o grande rombo que está causando desespero na França e em todo mundo.
Mas é mais fácil cobrar mais esta conta de quem pagou por muitos anos e teve suas aplicações previdenciárias roubadas e mal administradas.
Afinal, os governantes tem as armas para nos conter.
Desculpe mas discordo da vossa percepção.
Talvez vossa sa se alinhe ao FHC que chamou abertamente de vagabundos os aposentados no Brasil.
As raposas estão com as galinhas faz tempo.
Estimado Paulo Ramos,
Alguns esclarecimentos devem ser prestados ao digno comentarista sobre o enfoque que fizemos a respeito das conseqüências surgidas pela audácia dos humanos de viverem além do programado, propiciada pelo progresso da medicina em seus diversos ramos.
Nossa digressão se fundamentou na lógica de causa e efeito, sob o ponto de vista da Natureza. Para isso, desprezamos inteiramente o instinto antropocentrismo que cega a quem deseja fazer uma análise imparcial sobre um fato ligado ao desrespeito às leis naturais.
Em nossa abordagem, não consideramos nem podíamos considerar as situações de caráter social ou pessoal. Isso toldaria nossa percepção das razões alheias num foco específico. A Natureza não reconhece as normas humanas, aí incluídas justiça, ética, caridade, direitos, benefícios.
Entendemos que, ajustados os ângulos de visão do assunto, conforme acima exposto, poderá o distinto manifestante reler o modesto artigo, ocasião em que terá condições de melhor perceber o seu verdadeiro significado. O isolamento do antropocentrismo liberta nossa mente, propiciando-nos condição para conhecer outras razões.
Agradecemos sua presença e manifestação neste campo de idéias.