Entre o vestir e o calçar, onde está Deus? artigo de Frei Gilvander Luís Moreira
Frei Gilvander Luís Moreira
Pistas para uma pedagogia de luta por transformação socioambiental, inspirada nos trabalhadores que militam nos mundos da produção de calçado e de vestuário.
(Artigo publicado no livro O VESTIR E O CALÇAR – perspectivas da relação saúde e trabalho, José Reginaldo Inácio e Celso Amorim Salim (org.), Ed. Crisálida, Belo Horizonte, 2010, pp. 439-459.)
Gilvander Luís Moreira[1]
Resumo
O artigo “Entre o vestir e o calçar, onde está Deus?”, a partir da Pesquisa sobre acidente de trabalho em setor calçadista e de vestuário, realizada pela FUNDACENTRO/SESI, analisa a realidade dos trabalhadores e lança pistas para uma pedagogia de luta por transformação socioambiental, inspirada nos trabalhadores que militam nos mundos da produção de calçado e vestuário.
Além da perspectiva ecológica, consideramos a relevância da fé na vida dos trabalhadores, sabendo que fé, em si mesma, é algo ambíguo, pode libertar ou oprimir. No fundo, não basta ter fé. Depende de que tipo de fé se cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé se deve ter. Dois aspectos fundamentais foram considerados ao longo da reflexão:
a) a ideia de incorporarmos a fé libertadora como um instrumento que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às condições que degradem o ambiente de trabalho, a saúde e a segurança do/a trabalhador/a. Aqui se trata de ter a fé de Jesus de Nazaré e não apenas ter fé em Jesus;
b) e, em sentido inverso, a fé ingênua, se manipulada, pode ser alienante e levar trabalhadores a aceitarem a condição de explorados como uma missão e até merecimento, e são fatores propulsores a quadros de degradação das condições de saúde e segurança que podem gerar e manter doenças e acidentes no trabalho, além de crucificar ainda mais o meio ambiente.
1- Iniciando a conversa
A pergunta do título deste texto – “Entre o vestir e o calçar, onde está Deus?” – brotou espontaneamente em mim após a leitura dos relatórios da “Pesquisa sobre acidente de trabalho em setor calçadista e de vestuário, realizada pela FUNDACENTRO/SESI”. Para início de reflexão, apresento, abaixo, uma síntese de alguns “dados” que me chamaram a atenção durante a leitura da Pesquisa e a partir dos quais pretendo “responder” à pergunta/título deste artigo.
2 – Ponto de partida: Fatores estressantes
A Pesquisa chega a uma conclusão eloquente:
“Os trabalhadores dos setores calçadista e de vestuário, por vários motivos, são trabalhadores afeitos às atividades investigadas nas áreas previamente selecionadas e estão sujeitos a elevado número de fatores adversos e estressantes, tornando-os frequentemente expostos à ocorrência de acidentes do trabalho. (grifo nosso) Isso sem desconsiderar questões proeminentes dos espaços extramuros, que acabam adicionando novos elementos aos riscos intrínsecos de seu processo de trabalho, como a violência, o trânsito e outros problemas urbanos.”
A Pesquisa, publicada em agosto de 2007, foi realizada com base em dados de 2002 a 2004. Aqui já constatamos uma defasagem significativa, pois é muito provável que a realidade de agora, ano 2010, seja diferente. Pela intensificação do trabalho e por causa do desemprego estrutural, é provável que os acidentes de trabalho em 2010 sejam maiores do que os verificados no triênio 2002 a 2004.
O que é legalmente considerado acidente de trabalho?
Segundo a Lei Acidentária nº 8.213, de 1991, acidente do trabalho é todo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, “provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda ou a redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho” (Art. 19). Também seriam acidentes do trabalho, “outras entidades mórbidas”[2], como, por exemplo, as doenças profissionais, os acidentes ligados ao trabalho, embora este não seja a única causa capaz de contribuir para a morte ou a lesão do trabalhador” – no caso, do trabalhador segurado – assim como “todos os acidentes ocorridos no local de trabalho decorrentes de atos intencionais ou não de terceiros ou companheiros de trabalho; os desabamentos; as inundações; os incêndios e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior; as doenças provenientes de contaminação acidental no exercício da atividade; os acidentes, ainda que ocorridos fora do horário ou local de trabalho, na execução de ordem da empresa, mesmo para estudos ou realização de serviços externos; no percurso da residência para o local de trabalho, ou deste para aquela”. (Art. 20 e 21).
No entanto, para que o acidente – ou doença – seja qualificado como acidente do trabalho é fundamental a sua caracterização pela perícia médica do INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social -, responsável pelo reconhecimento técnico do nexo causal entre o acidente e a lesão, a doença e o trabalho ou a causa mortis e o acidente. Aqui está uma grande restrição, pois é provável que muitos acidentes de trabalho não entrem nas estatísticas, porque o trabalhador acaba por não fazer a perícia médica junto ao INSS, pelo excesso de burocracia e, muitas vezes, por falta de tempo hábil para ir até ao médico do INSS.
Por sua vez, os “acidentes do trabalho registrados”, de acordo com o AEAT[3], seriam tão somente aqueles “cujas comunicações são protocolizadas e caracterizadas administrativa e tecnicamente. Essas informações são obtidas a partir da tabulação das Comunicações de Acidentes do Trabalho – CATs -, cadastradas nas unidades de atendimento da Previdência Social, e mediante a Internet, segundo o tipo de acidente”, a ser qualificado e classificado em uma das categorias discriminadas em lei.
A pesquisa teve como base as Comunicações de Acidente do Trabalho às agências do INSS com foco se concentrando nas Micro e Pequenas Empresas – MPE -, referentes aos casos liquidados de acidentes e doenças do trabalho no período de 2002 a 2004.
São consideradas microempresas aquelas com até 19 empregados na indústria e até 9 empregados no comércio e no setor de serviços. De outro lado, as pequenas empresas são definidas como sendo aquelas que possuem, na indústria, de 20 a 99 empregados e, no comércio e serviço, de 10 a 49 empregados.
Qual foi a abrangência da Pesquisa?
“Entre trabalhadores do setor calçadista foram levantadas informações sobre 1978 registros de acidentes do trabalho nas modalidades típico, trajeto e doença do trabalho, relativas ao período 2002 a 2004. Esses registros reportam-se, com exceção do polo de Franca, em São Paulo, aos polos calçadistas de Nova Serrana, em Minas Gerais; São João Batista, em Santa Catarina; Novo Hamburgo e Sapiranga, no Rio Grande do Sul; Fortaleza, no Ceará; Birigui, no Estado de São Paulo.
Todas as unidades que mantinham em seus respectivos arquivos os registros dos acidentes de trabalho das áreas selecionadas foram visitadas, no total de treze Agências, assim distribuídas: oito Agências em Fortaleza, CE, uma em Nova Serrana, MG, uma em São João Batista, SC, uma em Novo Hamburgo, RS, uma em Sapiranga, RS e, finalmente, uma em Birigui, SP. Especificamente, as informações relativas aos municípios de Nova Serrana e São João Batista encontravam-se centralizadas nas Agências do INSS dos municípios de Bom Despacho, MG e Tijucas, SC, respectivamente.[4]
As Micro e Pequenas Empresas representam 30% do total de estabelecimentos do setor de calçados. Os estabelecimentos com maior número de vínculos em tais empresas estão nos estados do Rio Grande do Sul (41,36%), São Paulo (28,50%) e Minas Gerais (15,62%) e se destacam nos municípios de Franca, SP, Nova Serrana, MG e Novo Hamburgo, RS.”
Se os acidentes de trabalho do polo calçadista de Franca tivessem sido acrescentados à pesquisa, é óbvio que a quantidade aumentaria significativamente, pois Franca é um dos principais polos calçadistas do Brasil.
Diz a Pesquisa: “Nota-se uma importante concentração dos acidentes na faixa etária entre 16 a 34 anos, equivalendo a 70,1% do total.” Isso induz a concluirmos que os trabalhadores do setor de calçados são predominantemente jovens. Por que não há um número maior de trabalhadores acima dos 34 anos? Será porque a intensificação do trabalho exige maior agilidade física e mental, o que leva as micro e pequenas empresas do setor a contratarem prioritariamente jovens?
Qual a região do corpo mais atingida nos acidentes verificados? “O “ferimento do punho e da mão[5]”, que teve uma participação sobre o total de 30,2% (TAB. 7). Enfim, apenas os traumatismos envolvendo a mão, como parte específica do corpo atingida, fizeram-se presentes em 70,2% dos acidentes de trabalho levantados junto às indústrias de calçados nas áreas selecionadas.
Quais as máquinas que mais causaram acidentes no ramo de calçados? Foram basicamente quatro: prensa, injetora, balancim de corte e costura. (TAB. 13)
Os dados da Pesquisa, à primeira vista, tendem a focalizar o/a trabalhador/a como se fosse uma “máquina” viva mostrando que “peças” dela foram afetadas. Cumpre não perder de vista que, por trás da frieza dos dados estatísticos, sempre há muita dor, muito drama, desespero, muito sofrimento. Há seres humanos, dignidade humana sendo afetada, famílias envolvidas e afetadas direta e indiretamente.
3 – A partir de onde refletir
Como participante e assessor de lutas por transformação socioambiental e como alguém que acredita que um mistério de Amor – o Deus da vida – envolve a vida de todos os seres humanos, minerais, animais e vegetais, tentaremos propor elementos que subsidiem a construção de uma Espiritualidade da Transformação socioambiental nos mundos do trabalho e do capital nos setores calçadista e de vestuário. A Pesquisa feita pela FUNDACENTRO/SESI revela o submundo dos que suam para oferecer vestimenta e calçar o povo, seja no Brasil ou no exterior.
Já presenciamos comentários/conversas entre trabalhadores admitindo que as condições de vida que levavam eram prova de que Deus zelava por eles e de que a situação do ambiente de trabalho e o salário tratavam-se, na verdade, de uma prova dessa condição.
Além da perspectiva ecológica, é imprescindível considerarmos a relevância da fé na vida dos trabalhadores. Sabemos muito bem que fé, em si mesma, é algo ambíguo, pode libertar ou oprimir. No fundo, não basta ter fé. Depende de que tipo de fé se cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé se deve ter. Dois aspectos são fundamentais:
a) a ideia de incorporarmos a fé libertadora como um instrumento que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às condições que degradem o ambiente de trabalho, a saúde e a segurança do/a trabalhador/a. Aqui se trata de ter a fé de Jesus de Nazaré e não apenas ter fé em Jesus;
b) e, em sentido inverso, a fé ingênua, se manipulada, pode ser alienante e levar trabalhadores a aceitarem a condição de explorados como uma missão e até merecimento, e são fatores propulsores a quadros de degradação das condições de saúde e segurança que podem gerar e manter doenças e acidentes no trabalho, além de crucificar ainda mais o meio ambiente.
Diante de condições de trabalho que geram tantos “acidentes”[6] (isso é eufemismo?) perguntamos “Onde está Deus entre o vestir e o calçar?”
Tentaremos esboçar neste texto elementos de uma espiritualidade libertadora, um facho de luz que talvez possa contribuir para superarmos (se não, pelo menos diminuir consideravelmente) as estatísticas dramáticas que escondem muita dor e sofrimento para milhares de pessoas. Não podemos ficar olhando somente nos dados da pesquisa, que são importantes, mas também podem esconder realidades profundas que devem ser reveladas. Ao levantarmos o olhar, atônitos, perplexos e confusos, perguntamos: Que está acontecendo? O que fazer?
A hora é perigosa. O capital gradativamente está aprofundando a exploração dos trabalhadores, forçando-os a trabalhar no limite e serem sacrificados no altar do deus capital/ o ídolo mercado. As oficinas micro e pequenas, além das médias e grandes, de produção de calçado e vestuário, não são, de forma disfarçada, altares dedicados ao deus capital-mercado, que exigem o sacrifício de uns – os acidentados – com ferroadas que liberam sangue instantaneamente e a maioria dos trabalhadores lentamente sendo sacrificados? Que deus está por trás dos motores das fábricas que sacrificam tantos trabalhadores, derramando lágrimas e enlutando famílias? Quantos por cento dos trabalhadores dos setores calçadista e de vestuário se pudessem escolher, optariam por outro tipo de trabalho? Quantos estão ali por vocação? Quantos estão ali porque são forçados a aceitar o emprego que apareceu para garantir o sustento da família? Essas perguntas derivam de um olhar teológico-pastoral que considera os trabalhadores, acima de tudo, como seres humanos, portadores da luz e da força divinas. O Deus que quer vida para todos (e para tudo) não aceita a redução das pessoas a meras máquinas que produzem mercadoria. O sonho de Javé, o Deus solidário e libertado, é
“criar um novo céu e uma nova terra. Aí não haverá mais choro ou clamor. Aí não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a completar seus dias, pois será ainda jovem quem morrer com cem anos… Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos poderão usufruir o que suas mãos fabricarem. Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé, juntamente com seus filhos… O lobo e o cordeiro pastarão juntos.” (na Bíblia, Isaías 65,19b-25a).
O modelo de Economia vigente na sociedade brasileira e na maior parte do mundo atual, o chamado capitalismo neoliberal, ou o chamem como quiserem, tem afundado o mundo em uma desigualdade social cada dia mais escandalosa e é responsável por uma imensa destruição ecológica que, se continuar neste caminho, vai destruir o planeta Terra e inviabilizar a vida sobre a Terra, nossa única casa comum. Todos sabemos que, etimologicamente, o termo Economia tem o mesmo prefixo de Ecologia. O prefixo “eco” vem do grego “oikos” e quer dizer “casa”. No sentido mais profundo, Economia significa a norma de administração da casa (oikos) comum, para que todos possam viver dignamente. Hoje, a Economia neoliberal é justamente o contrário disso. Ao invés de cuidar da casa (o planeta Terra), a destrói. Por isso, não existe possibilidade de uma Ética Ecológica e Solidária dentro desse universo de um mercado excludente e de uma Economia competitiva.
Eis uma grande novidade: uma tendência a dar unidade às lutas por transformação social com as lutas por preservação ambiental, também sob inspiração de uma espiritualidade libertadora. Está em construção a inseparabilidade das lutas em defesa da ecologia e das lutas em prol dos direitos sociais. Essa unidade está sendo construída, graças, muitas vezes, a uma espiritualidade libertadora. Logo, para construirmos segurança e saúde nos mundos do Capital e do Trabalho dos setores calçadista e de vestuário, é indispensável compromisso com a luta por construção de uma sociedade sustentável, o que passa necessariamente por resgate não apenas de um meio ambiente saudável e equilibrado, mas também de um ambiente inteiro saudável e equilibrado. Aqui a dimensão espiritual de toda pessoa humana, especificamente dos trabalhadores, não pode ser ignorada e muito menos desprezada. Urge cultivar a dimensão espiritual também. É necessária transformação socio-ambiental-religiosa e espiritual, o que implica viver o verdadeiro e mais profundo sentido de religião e passa por uma espiritualidade libertadora. É óbvio que não defendemos a importância de qualquer tipo de fé nas lutas sociais e por sustentabilidade. Repetimos, uma fé ingênua por alienar as pessoas e transformá-las em pessoas resignadas e conformadas diante de tanto sofrimento. Percebemos a importância vital de uma fé libertadora que ajuda a criar consciência crítica e criadora, a fazer análise da conjuntura com mais lucidez, percebendo as causas mais profundas dos sofrimentos que se abatem sobre grande parte dos trabalhadores/trabalhadoras.
4 – Deus está nos trabalhadores em movimento
A dura realidade dos trabalhadores dos setores calçadista e de vestuário preocupa sindicatos e sindicalistas idôneos; tanto é que realizaram a pesquisa sobre acidentes de trabalho, encaminharam a elaboração de um livro que subsidiará lutas concretas pela superação das dores e sofrimentos causados nesses setores. Buscarão saúde, segurança e paz neste mundo do trabalho. A luta de sindicatos e sindicalistas idôneos por transformação socioambiental faz-nos lembrar uma luta narrada na Bíblia, a luta do movimento das parteiras que, ao combinarem ternura e coragem, iniciaram o processo de libertação dos pobres escravizados pelo império dos faraós do Egito, há uns 32 séculos.
As mulheres parteiras do Egito – a Bíblia registra os nomes de duas: Séfora e Fuá (Êxodo 1,8-22) -, diante de uma Medida Provisória (= Decreto-Lei) do faraó que visava fazer controle de natalidade e para isto mandava matar, no momento do nascimento, as crianças do sexo masculino, organizaram-se e fizeram greve, desobediência civil e religiosa. Elas eram animadas por duas forças: pelo amor à vida, pois eram parteiras, e pelo temor de Deus, cujo nome é Javé, presença libertadora no meio do povo. “Não vamos respeitar uma lei autoritária do império dos faraós. O Deus da vida quer respeito à pessoa e não concorda com a matança de crianças e com nenhuma opressão”, diziam em seus corações as Mulheres do “sistema de saúde” do imperialismo egípcio. Diz a Bíblia: “Deus estava com as parteiras. O povo se tornou numeroso e muito poderoso (Êxodo 1,20), isto é, crescia em quantidade e em qualidade. As parteiras fizeram também desobediência religiosa, porque o faraó dizia que ele era o representante de Deus na terra. Diante de uma lei de morte, as parteiras descobriram que o faraó era um farsante que não podia representar Deus entre elas. Os movimentos sociais populares, entre os quais está o sindicalismo combativo, são legítimos herdeiros do Movimento das parteiras do Egito. O mesmo Deus que impulsionou as parteiras está com militantes que se comovem com o sofrimento impingido a tantos trabalhadores, fervem o sangue de indignação, organizam lutas concretas e as põem em prática, muitas vezes sofrendo a perseguição que sempre se abate sobre os profetas. Ontem, as parteiras lutavam contra o império dos faraós; hoje, militantes populares lutam contra o império do capital que insiste em sacrificar nos seus altares muitas vidas.
O clamor que sobe aos céus, diante da enorme quantidade de “acidentes” de trabalho nos setores de calçado e de vestuário – dentro de um modelo econômico capitalista neoliberal com uma gula sem fim por lucro, com intensificação do trabalho (metas escorchantes, produção cada vez mais acelerada) – lembra o povo pedindo ao rei Roboão, filho do rei Salomão, que diminuísse o peso que o rei tinha colocado nas costas do povo. O rei Roboão, desprezando o conselho sensato dos mais experientes, seguiu a opinião de um grupo de jovens que tinha sido criado junto com ele no palácio e respondeu: “Onde meu pai batia com cordas, eu bato com corrente de ferro. O meu dedo mínimo é mais pesado que a bunda do meu pai! Meu pai castigou vocês com açoites, e eu açoitarei vocês com escorpiões!” (Cf. na Bíblia, 1o livro de Reis 12,1-16). Resultado: diante da estupidez do rei, o povo se revoltou e se separou da monarquia de Judá. Assim iniciou a primeira de uma série de cisões que aconteceriam na nação de Israel com consequências que perduram até hoje. Hoje, ainda, a mesma terra é disputada por judeus e palestinos à custa de muito sangue. Todo aumento de opressão gera rebeliões que podem se transformar em lutas libertárias ou gerar mais consequências dramáticas para o povo. Toda injustiça clama por uma luta para se conquistar justiça.
Qual o papel da preservação ambiental e de uma espiritualidade libertadora na luta por saúde e segurança no mundo do trabalho? Pensemos um pouco a partir da Bíblia, onde se diz logo no seu início que “o Espírito de Deus paira sobre as águas”. (Gênesis 1,2) Água é fonte e meio de vida, patrimônio da humanidade. Não pode continuar sendo tratada como mercadoria. No texto bíblico acima referido, água é símbolo da realidade. Tudo que existe, em última instância, é água transformada. “Paira sobre as águas” significa “choca, aquece toda realidade, infunde força e energia de vida”. Um hálito de vida, de força, de energia vital, permeia, envolve e perpassa todas as criaturas, sendo a água uma das rainhas entre as criaturas. Logo, sem preservação das nascentes e dos cursos d’água impossível diminuir os acidentes de trabalho.
O pseudodesenvolvimento humano, o tão badalado crescimento econômico, só para uma minoria e não para todos, está colocando em risco a harmonia e convivência da multiplicidade de seres vivos na natureza.
5 – E agora, Deus? – Por uma espiritualidade libertadora nas lutas de transformação
Um olhar a partir da fé no Deus da vida, seja Javé para os judeus e cristãos ou Alá para os muçulmanos, ou seja lá que nome receba, é fundamental para a implementação de transformação socioambiental no mundo do trabalho de quem produz calçado e vestuário. Uma postura de reverência e de encantamento, um silêncio que nos faz entrar em sintonia com o mistério que envolve lutas tão complexas, pode ser decisivo na efetivação das transformações socioambientais e, especificamente, conquista de saúde, segurança e paz no mundo do trabalho dos setores calçadista e de vestuário, entre tantos outros. Não basta garantir leis trabalhistas. Não são suficientes projetos políticos compensadores. Uma espiritualidade libertadora é vital nessas lutas, pois o Deus que salva gratuitamente, por amor, é o mesmo Deus que cria todos e tudo no processo de evolução, liberta os oprimidos, preserva a biodiversidade e respeita a imensa diversidade de culturas. Mas Deus salva em nós, através de nós. É a luz divina brilhando no humano e em toda biodiversidade que guia os processos libertários. A mística bíblica recupera a unidade perdida entre ser humano e natureza, o que é imprescindível para termos êxito nas lutas por transformação.
A biodiversidade se funda na experiência trinitária de Deus, a melhor comunidade aberta à diversidade. A riqueza e a exuberância da natureza se baseiam em uma multiplicidade de formas de vidas que se interagem gerando uma grande sinfonia. O capitalismo é antitrinitário, não admite o diferente, o plural e a democracia real. Jesus Cristo propõe e testemunha a construção do reino de Deus não só para as pessoas, mas também para todas os seres vivos e bens naturais. A utopia anunciada pelo profeta Isaías – “um novo céu e uma nova terra” – contempla uma profunda transformação socioambiental e é impulsionada por uma espiritualidade libertadora. Novas relações entre o ser humano e todos os seres vivos, novas estruturas e novas relações entre Capital e Trabalho. É preciso superar o antropocentrismo e o capitalismo, que são irmãos opressores de toda a biodiversidade. O ser humano “endeusado” e capitalista, como rei da criação, está sendo o maior depredador de tudo e opressor da maioria do povo.
A mãe da biodiversidade é a água. No princípio era a água; e a água se fez “carne”: criaturas todas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos mais. Somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria … Deus cria a partir das águas. Só podemos ser cocriadores a partir das águas. Quem não defende, respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas não pode ser criativo. Estará jogando no time dos assassinos da nossa mãe, irmã e nosso próprio ser: a água.
Uma espiritualidade libertadora que inspira e move lutas por direitos humanos, enfim por transformação socioambiental passa por diversos elementos, entre os quais destacamos:
1. compreender a experiência do povo da Bíblia;
2. dizer e revelar a verdade;
3. atuar ao lado dos trabalhadores e não só lutar por eles;
4. evitar os eufemismos;
5. “naturalizar” o ser humano e “divinizar” o meio ambiente;
6. “dar nomes aos bois”;
7. optar pelos pobres com visão holística;
8. não abrir mão da profecia;
9. ter a coragem de não mistificar mediações e instituições;
10. libertar-se do discurso religioso tradicional;
11. ser corpo pessoal, social, ecológico e espiritual;
12. resgatar o sentido original de religião;
13. perceber que toda crise é fértil também.
A seguir, apresentaremos para concluir a abordagem do nosso tema – entre o vestir e o calçar, onde está Deus? – uma pequena reflexão sobre esses treze pontos na esperança de que possamos perceber onde está o Deus da Vida entre o vestir e o calçar; que ídolo (deus falso) move um mercado que exige tantos sacrificados nos altares da produção de calçado e vestuário; e que atitudes e posturas de vida devemos assumir para contribuirmos para que os trabalhadores dos setores de calçado e de vestuário possam ter mais vida e liberdade.
5.1 – Experiência bíblica
O povo da Bíblia, fruto do encontro ecumênico de inúmeros povos e classes de oprimidos, nasceu de “tribos” que viviam em uma região semiárida, ou mesmo no deserto. No Oriente Médio, o viver está mais ligado às fontes de água, que são raras, do que apenas à terra no sentido de território.
A água está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da terra prometida etc. Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou cisternas. “Não dá para se fazer reforma agrária no seco”, repete a todo instante o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Poderíamos dizer também: “Não dá para conquistar saúde, segurança e paz no mundo do trabalho dos trabalhadores dos setores calçadista e de vestuário, sem preservação ambiental, sem uma sociedade sustentável”. Na Bíblia há uma associação da água com a Palavra de Deus. Ao povo, Deus deu água de beber de um rochedo, e durante quarenta anos, lhe garantiu o pão de cada dia e a água para beber.
Segundo o relato bíblico de Gênesis 2,1-10.15, a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. Para povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica. Um dia, a falta da água gerou a seca e a fome em toda a região de Canaã. Os hebreus foram obrigados a migrar para o Egito (Gênesis 47). Lá se multiplicaram e foram oprimidos pelo império dos faraós (Êxodo 1). Os hebreus escravos gritaram a Deus e este veio libertá-los, conduzindo-os da escravidão para a terra da liberdade, passando pelo Mar Vermelho que se abriu em duas partes deixando-os passar, em meio às águas, a pé enxuto (Êxodo 14). Fato semelhante aconteceu quando, mais tarde, conduzidos por Josué, o povo constituído no deserto atravessou o rio Jordão, a pé enxuto, para entrar na posse da terra de Canaã (na Bíblia, livro de Josué 3-4). É claro que o relatado neste parágrafo é a superfície do texto. Os relatos bíblicos não são história no sentido de descrição de fatos acontecidos, mas são teologias, querem passar uma mensagem: animar o povo na caminhada de libertação. Não querem dizer exatamente como foi que aconteceu, mas revelar que Deus estava presente nas brechas da história, onde o povo, organizado e com uma fé libertadora, fez história. Combateu o bom combate e fez a diferença.
A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços de água. “Todo deserto contém um poço escondido”, disse o Pequeno Príncipe. Em uma região árida, cada fonte, cada olho d’água, cada poço, é quase um milagre. Toda fonte é sinal forte da bênção divina, um presente de seu amor. As fontes fazem parte da promessa de Deus para o seu povo: “O Senhor teu Deus te fará entrar em um bom país, uma terra cheia de torrentes, de fontes e de águas subterrâneas que jorram na planície e na montanha...” (na Bíblia, Deuteronômio 8,7-8). Quais e onde estão os poços misteriosos e escondidos no “deserto” do chão/povo brasileiro e, especificamente, no mundo do trabalho dos trabalhadores dos setores de calçados e vestuário? Feliz quem descobrir quais são e onde estão esses “poços misteriosos e escondidos”; e beber dessa fonte partilhando com os colegas de classe!
Como profetizas, as águas consolam os cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça. Os rios fervem o sangue de indignação contra cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam “o sangue da Terra” como se fossem privadas receptoras de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!
5.2 – Revelar a verdade
Para continuar o processo de transformação socioambiental, movido por uma espiritualidade libertadora, em curso ora no Brasil e no mundo, urge dizer a verdade, o que implica assumir o risco de morrer por causa da verdade dita e defendida. A verdade consola quem está sendo ferido e injustiçado, mas dói como uma espada no coração de quem está arquitetando esquemas de exploração. Dizer a verdade é puxar o tapete de quem está andando a cavalo nos trabalhadores e no ambiente inteiro. Doar a vida pela verdade, eis um desafio nobre a ser abraçado. Não apenas dizer a verdade, mas ter a grandeza de, se preciso for, doar a vida pelo próximo – todas as criaturas, filhos e filhas de Deus.
É óbvio que se formos perguntar aos patrões quais as causas de um número elevado de acidentes no trabalho, eles, provavelmente, dirão “a culpa é dos trabalhadores; são distraídos, mal preparados tecnicamente. Trazem para a oficina muitos problemas que deveriam ser resolvidos lá fora. Reclamam muito e produzem pouco…” Cantilena desse tipo não pode mais seduzir nem trabalhador e nem sindicalista sério e idôneo. As causas dos acidentes são complexas e múltiplas. Encontrar a verdade mais profunda sobre as causas de tantos acidentes é imprescindível para se encaminharem lutas concretas que resultem em mais bem-estar do povo trabalhador.
Estamos em uma sociedade da mentira disfarçada de verdade. Precisamos superar a noção de verdade formal que vem da filosofia clássica. Verdade não é apenas adequação do conceito ao objeto. Se digo que pedra é pedra é verdade formal, mas se digo que pedra é pão é mentira, mas, como testemunhou Jesus de Nazaré, pedras podem ser transformadas em pão, ou vice-versa. Nem tudo que reluz é ouro. Verdade, conforme nos ensinam as comunidades do Evangelho de João, é o que liberta. “A verdade vos libertará”, trombeteiam aos quatro ventos as comunidades do Evangelho de João (Jo 8,32).
Dom Oscar Romero, no dia 22 de abril de 1979, profetizava: “Carregar a capacidade da verdade é sofrer o tormento interior que sofriam os profetas. Porque é muito mais fácil pregar a mentira, calar a verdade […], para ter poder. Que tentação mais horrível para a Igreja!” Podemos acrescentar: Semear a mentira! Que tentação horrível para tantos sindicatos e sindicalistas, para tantos trabalhadores que optam por salvar somente a própria pele, muitas vezes, comprometendo a vida de tantos colegas!
Revelar a verdade implica um processo que inclui diversas ações integradas e bem articuladas:
a) Informar. A despeito da avalanche de informações que são jogadas em cima das pessoas atualmente, vivemos em uma sociedade da desinformação. Ou seja, informação não significa comunicação. Temos propaganda demais, informação de menos. Grande parte das notícias está dentro da lógica da mídia vassala e cúmplice do sistema neoliberal que usa os meios de comunicação para criar opinião pública sobre assuntos que interessam à elite serem tratados da forma como beneficia o status quo capitalista. Logo, lutar pela democratização da comunicação é algo imprescindível para que a verdade dos fatos aflore. Enquanto não fizermos uma reforma agrária no ar não teremos reforma agrária na terra e nem conseguiremos superar as graves injustiças que esfolam os empobrecidos, excluídos e crucifica a natureza.
b) Buscar as principais informações para subsidiar as lutas concretas é fundamental. Não bastam boas intenções e um objetivo sublime. É preciso estar municiado de informações verdadeiras e reais sobre o que se está questionando. Exemplo: Em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa de Minas Gerais – ALMG -, que investigava as ações da mineradora Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), hoje VALE (do Rio Doce), em Minas, iniciamos o nosso depoimento mostrando fotos da Estação Ecológica de Fechos (em Nova Lima, MG), um verdadeiro santuário, uma dádiva de Deus e da Criação. Denunciamos a MBR/VALE também por ter invadido a Estação Ecológica de Fechos. A empresa fez, sem nenhuma autorização, (se pedisse, não conseguiria, pois é vedado por lei ambiental), na Estação Ecológica, duas pequenas estradas, arrancou vegetação nativa e abriu grandes feridas na terra. As fotos exibidas durante o meu depoimento mostraram imagens da Estação Ecológica de Fechos antes da invasão da MBR, e depois, com cortes de árvores, caminhos abertos na terra e restos de terra no local. Apresentamos também cópia de um Boletim de Ocorrência (B.O) feito na ocasião a pedido da geóloga da COPASA, Valéria Caldas Barbosa. No documento, a Polícia Militar constatou intervenção em uma área de 2 mil m², próxima ao curso d´água, sem autorização de órgão ambiental. No B.O, consta que a responsabilidade da intervenção foi assinada pelo engenheiro ambiental da MBR, Carlos Eduardo Leite. “A MBR invadiu uma área de preservação ambiental de acesso muito restrito. Até cientistas para entrarem lá precisam da autorização prévia. Isso é crime ou não?”, questionamos diante dos deputados mineiros na CPI da mineradora MBR/VALE.
Na mesma linha está a Pesquisa sobre acidentes de trabalho nos setores calçadista e de vestuário, realizada pela FUNDACENTRO/SESI, a pedido de sindicatos de trabalhadores, que contribuiu muito para revelar verdades que muitas vezes estavam abafadas por notícias oficiais. Os vários artigos que integram este livro também, sem dúvida nenhuma, revelarão muitas informações que precisam vir à luz do dia. Urge revelar que calçado não é só calçado e que vestuário não é só vestuário. Por trás de calçado e vestuário pode estar muito sangue derramado e muita injustiça perpetrada em nome do deus capital.
c) Participar dos Movimentos Sociais Populares. Hoje, há dois movimentos em luta. Os movimentos sociais populares lutam pela transformação socioambiental. O movimento da elite brasileira insiste em manter o sistema capitalista, causa maior das mazelas que desolam os pobres e destrói a biodiversidade.
d) Coerência com projeto defendido. É imprescindível hoje a encarnação da ética e da honestidade, o que passa pela coerência entre discurso feito e prática vivenciada. Coerência entre grandes lutas e testemunho pessoal. Coerência não deve ser apenas coerência ética. Se fosse, a pessoa militante cristã deveria defender sempre os mesmos projetos ao longo de toda a sua história. A coerência deve ser também política, espiritual e dinâmica. Muitas vezes para ser coerente temos que mudar, pois a realidade é dinâmica.
e) Ser líder democrático, popular e ecumênico. Não dá mais para perder o cheiro dos pobres que lutam de forma organizada. É preciso conviver, partilhar as agruras e as lutas, o dia a dia dos pobres. Isso é antídoto e vacina que evitam cooptação ou traição dos projetos populares.
f) Mudança estrutural. Na grande parte dos dois mil anos de história do cristianismo, um jeito de viver a religião é lutar pela transformação pessoal, através de exortação à conversão pessoal. Mas, já no início do terceiro milênio, concluímos que a maioria das pessoas continuam mais desfiguradas que transfiguradas. Desconfiamos que houve um equívoco ao ignorar o seguinte princípio: se o problema é estrutural, a solução não pode ser só pessoal. Para problema estrutural, solução estrutural. Para problema pessoal, solução pessoal. Para problema pessoal e estrutural, mudança estrutural e pessoal. Não podemos também ficar amarrados no dualismo estrutura X pessoa, como cachorro correndo atrás do próprio rabo. É falso o dilema: mudar primeiro a pessoa para obtermos mudança estrutural ou transformar as estruturas para conseguirmos mudança pessoal. O grande e saudoso profeta dom Hélder Câmara, no filme “O Santo Rebelde” diz alto e em bom som: “Há estruturas externas e estruturas internas. O mais difícil de mudar são as estruturas internas.” A luta socioambiental indica que as duas lutas são uma só luta ou uma estimula a outra, são duas faces da mesma moeda, não podem ser separadas. Gandhi nos alerta: “Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo”. Devemos acrescentar: “mas não pare em você mesmo/a. Envolva-se gradativamente nas lutas por mudanças no mundo.”
5.3 – Atuar com os pobres e não para os pobres
Para que aconteça transformação social com dimensão ecológica e espiritual não basta trabalhar para os pobres, os trabalhadores. É imprescindível atuar com os pobres de forma que se tornem protagonistas das lutas. Como exemplo, podemos citar a atuação do MST e da ASMARE (Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis) de Belo Horizonte. Os líderes do MST têm força e são respeitados, porque há um grande movimento popular que os respalda e do qual eles são porta-vozes. “A força vem da luta coletiva”, diz os Sem Terra do MST. Os catadores de papelão, em Belo Horizonte e em tantas cidades do Brasil, eram como ossos ressequidos conforme descrito na Bíblia, no livro do profeta Ezequiel (Ez 37,1-14), mas foi só alguém começar a uni-los e colocá-los em relação, pouco a pouco irrompeu uma força espiritual que transformou os marginalizados em protagonistas da ASMARE, uma grande Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis que faz um trabalho libertador em Belo Horizonte, com mais de 350 famílias, e já irradiando sua ação e exemplo para dezenas de cidades mineiras e do Brasil. Além de limpar e cuidar da cidade, estão se construindo. Quem conhece de perto as famílias participantes da ASMARE sente o quanto uma espiritualidade libertadora os acompanha na organização e execução de um grande trabalho de transformação socioambiental. “Adão e Eva tinham a missão de cuidar do paraíso. Sonhamos e lutamos para transformar a cidade em um paraíso bom de se viver. Jesus se preocupava com a saúde das pessoas. Ao limpar a cidade, nós queremos contribuir para que as pessoas tenham mais saúde”, arremata dona Geralda, uma das coordenadoras da ASMARE.
No meio dos trabalhadores das micro, pequenas e médias empresas dos setores de calçado e vestuário não pode ser diferente. Lutar ao lado dos trabalhadores que suam a camisa para calçar e vestir o povo brasileiro, eis uma cláusula necessária para se obter êxito na grande empreitada que é conquistar saúde, segurança e paz no mundo da produção do calçado e do vestuário.
5.4 – Não à linguagem eufemística
Atenção à linguagem! Cuidado com os eufemismos, discursos generalistas e inconsequentes. Entre as várias violências cometidas hoje está a vulgarização da linguagem e a prática de eufemismo que servem mais para colocar esparadrapo em cima de ferida ou panos quentes em questões que precisam ser enfrentadas sem tergiversação.
A linguagem mais libertadora das iniciativas libertárias é, muitas vezes e de forma sutil, cooptada pelos “funcionários” do sistema neoliberal. Muita gente fala em comunidade, em participação, em cidadania, em direitos humanos, em respeito ao meio ambiente, em desenvolvimento sustentável, em ecumenismo, mas, preto no branco, esvazia-se o sentido libertário dessas categorias. Por exemplo, as empresas mineradoras estufam o peito e adoram dizer que estão fazendo desenvolvimento sustentável, mas, na prática, estão colocando verniz em um projeto altamente depredador.
A expressão “desenvolvimento sustentável” é uma contradição em si. Ou é desenvolvimento ou é sustentável, pois “desenvolvimento” está na linha do progresso econômico, crescimento tecnológico, domínio da natureza, sugar ao máximo os bens naturais. Isso se contrapõe a “sustentável”, algo que passa por preservação, convivência harmônica entre os diferentes, biodiversidade, ecossistema, bioma.
As empresas eucaliptadoras, eufemisticamente chamadas de empresas reflorestadoras, falam em “floresta de eucalipto” o que é outra contradição, pois floresta implica a existência de uma imensa variedade de plantas, uma rica biodiversidade. A monocultura de eucalipto constitui sim em um deserto verde, pois só existe eucalipto. O resto é dizimado.
Quais são os eufemismos mais usados no mundo da produção de calçado e de vestuário? É imprescindível identificá-los e desmascarar quem adora usá-los, pois existem em todos os setores da vida social e obedecem aos interesses do status quo, escondem verdades. Com a palavra quem está com a mão na massa na produção de calçados e vestuário.
5.5 – “Naturalização” do ser humano e “divinização” do meio ambiente
Encantamento, reverência, respeito e compromisso com todas as criaturas. Eis uma mística que potencializa as lutas por transformação socioambiental que podem alavancar melhorias na qualidade de vida dos trabalhadores que calçam e vestem tanta gente, e mobiliam tantos lares.
Antigamente, muitas culturas estavam ligadas ao culto da natureza, vista como divina. Hoje, redescobrimos na terra, na água e em todo ser vivo, um sinal da presença do mistério amoroso que envolve o universo. O amor que faz do universo uma comunidade de vida. Que se denomine Deus ou não, esta energia amorosa nos chama a sermos nós mesmos sementes e criaturas fecundas dessa amorização do planeta Terra. Cada vez mais as pessoas que seguem algum caminho religioso sabem que a religião só vale a pena se ajudar a humanidade a viver o processo de amorização. Foi o que viveu Lao-Tsé, Buda, Moisés, Jesus de Nazaré, Maomé e todos os homens e mulheres de espiritualidade libertadora.
O documento ecumênico “Os pobres possuirão a Terra”, assinado por muitos bispos e pastores de diversas Igrejas cristãs, afirma: “Toda forma de vida e todos os seres vivos possuem um valor intrínseco de bondade e têm direito ao respeito”[7].
Eis um desafio que está colocado para a humanidade: criar uma relação de convivência e cuidado consigo mesma, uns com os outros e com a natureza – a terra, a água e todo ser vivo -, a partir de uma consciência de pertença e interdependência. É hora de cultivarmos encantamento, reverência, respeito e compromisso com todas as criaturas.
Existe uma ética ecológica quando superamos a relação de dono e proprietário da terra, dos animais e das plantas para a relação de que somos gerentes e zeladores da comunidade de vida a que pertencemos como membros.
5.6 – “Dar nomes aos bois” é necessário
Presas por limites pessoais, comprometidas com pessoas ligadas ao sistema opressor-depredador, incoerentes, amarradas, desejando “agradar gregos e troianos”, muitas pessoas que lutam por transformação socioambiental não querem chamar para cima de si antipatia, incompreensões e perseguições. Assim se comportando, restringem em muito a radicalidade de muitas lutas, pois muitos optam por “não dar nomes aos bois”. Por exemplo, critica-se a monocultura do eucalipto, mas não se diz que as responsáveis maiores são a multinacional Aracruz Celulose e as eucaliptadoras PLANTAR, FLORESTAMINAS, CENIBRA etc. É óbvio que não se deve dar “nomes aos bois” a todo o momento, a qualquer grupo e de qualquer maneira. Luta contra o poder dominação não se faz apenas com palavras, discursos, conselhos e oração. É preciso causar desordem, desobediência civil, pois o sistema opressor-depredador se funda na ordem e na segurança somente para uma minoria.
Dar nomes aos bois é condição imprescindível para fazer avançar o processo de transformação socioambiental, inclusive no mundo do trabalho, e vivenciar o sentido primeiro de religião. O desafio é profetizar de forma correta, para as pessoas certas e na hora certa. E ser profeta diante de tantos abusos contra a natureza não é das tarefas mais difíceis. Basta lembrar Nelson Rodrigues que dizia: “Gênio, santo ou profeta é aquele que enxerga o óbvio”.
5.7 – Opção pelos pobres com visão holística
Não dá mais para continuar apostando na opção pelos pobres como se fez na primeira fase da Teologia da Libertação, quando se primava pela transformação social, o que implicaria superar o capitalismo e construir uma sociedade socialista. Opção pelos pobres era basicamente opção de classe, pois se tinha o pobre econômico como o pobre por excelência. Hoje a opção pelos pobres precisa ser radicalizada incluindo uma visão holística, pois estamos diante de pobre no plural: o desempregado, um pobre econômico; a mulher, uma pobre diante do machismo e do patriarcalismo; o negro, um pobre diante do racismo; as pessoas portadoras de deficiência, pobres diante de uma sociedade da estética e da aparência; a Terra, uma pobre agredida pelo agronegócio (monoculturas, mineração, uso abusivo de agrotóxicos); a água, uma pobre diante de um sistema de produção que não a considera como fonte de vida, mas como mercadoria; os trabalhadores dos setores de calçado e de vestuário, pobres diante de seus patrões e da infernal parafernália de produção acelerada que impõe o slogan “produzir, produzir, produzir …” cada vez mais, com o menor custo e na maior velocidade para saciar o deus mercado que devora mercadorias e tritura tantas vidas humanas. São tantos pobres! Ter a grandeza de articular lutas que incluam todos e resgate a dignidade de todos é o que pode garantir transformação socioambiental e religiosa.
5.8 – Não abrir mão da profecia
Tenho ouvido muito de pessoas sensíveis e sonhadoras: “Não abra mão da profecia.” Esta nos traz esperança, dá sentido ao (con)viver e fortalece a utopia de que estamos construindo um outro mundo que, transformado e transfigurado, será um santuário do reino de Deus. Porém importa profetizar no sentido mais profundo e não à Nostradamus. A palavra ‘profeta’ vem do grego pro, que significa em lugar de; feta vem de fèmi, que significa falar. Profeta ou profetisa é alguém que não fala em nome próprio, mas em nome do outro que o enviou. Profeta é porta-voz de Deus, fala em nome de Deus. Profetizar é proferir uma palavra que fere a realidade, consolando os aflitos e incomodando os acomodados. A missão profética exige uma união muito íntima com Deus para poder ser seu porta-voz e transmitir a sua palavra. Não dá para se ter união íntima com Deus sem convivência profunda com todas as criaturas, reconhecendo-as como “imagem e semelhança de Deus”, a partir dos pobres, os preferidos de Deus. A missão profética pode brotar da experiência de Deus, e pode gerar uma nova maneira de conviver com todas as criaturas, admitindo-as como filhas e filhos de Deus.
Pertencemos a uma única comunidade de vida. Vivemos em uma única casa comum, o planeta Terra. Fazemos parte, interagimos, existimos em rede. Ninguém está isolado. Todos dependemos uns dos outros. Ninguém é autosuficiente. “Eu sou feliz é na comunidade”, diz a sabedoria popular com uma fé simples e intuitiva. “Eu sou apenas um pedaço de pessoa. Pessoa é a comunidade. Quero ser inteiro. Por isso não abro mão de participar da comunidade” dizia um camponês das Comunidades Eclesiais de Base do Ceará. A vida em comunidade torna-se profética, torna-se porta-voz da Boa Nova de Deus que Jesus testemunhou. Torna-se anúncio de esperança para os pobres, oprimidos e todas as criaturas vitimadas. Em comunidades e em movimentos sociais populares, em sindicatos autênticos, denunciamos a injustiça de sistemas e pessoas opressoras e depredadoras. Enfim, o profeta ou a profetisa ouve os sussurros (cochichos) de Deus no meio das relações que se estabelecem entre as pessoas e com todas as criaturas na busca por mais vida e liberdade para todos e tudo. E pelo seu jeito de ser e agir, comunica os apelos ouvidos, o que gera fraternidade.
É hora de ouvir o apelo profético da música Meu País, de Zezé di Camargo e Luciano, que diz assim: “Aqui não falta sol / Aqui não falta chuva / A terra faz brotar qualquer semente / Se a mão de Deus / Protege e molha o nosso chão / Por que será que tá faltando pão? / Se a natureza nunca reclamou da gente / Do corte do machado, a foice, o fogo ardente / Se nessa terra tudo que se planta dá / Que é que há, meu país? / O que é que há? / Tem alguém levando lucro / Tem alguém colhendo o fruto / Sem saber o que é plantar / Tá faltando consciência / Tá sobrando paciência / Tá faltando alguém gritar / Feito um trem desgovernado / Quem trabalha tá ferrado / Nas mãos de quem só engana / Feito mal que não tem cura / Estão levando à loucura /O país que a gente ama …”
5.9 – Ter a coragem de não mistificar mediações e instituições
Se o Partido dos Trabalhadores e os sindicatos de trabalhadores foram (ou ainda são em parte) uma mediação, não está assegurado que continuarão sendo por muito tempo. É preciso abraçar as mesmas causas de outras posições e em novas trincheiras. É preciso deixar parte da agenda pessoal para o acidental e urgente. Não ser totalmente programado.
“Se transforma ficando na “instituição” ou saindo?” perguntava padre Toninho. Depende. Ficar onde e como? Sair para onde e continuar como? Jesus e o apóstolo Paulo (e seus discípulos e discípulas) nasceram na sinagoga, mas saíram e assumiram outros areópagos. O debate que está se iniciando entre os que continuam acreditando em instituições que foram libertadoras e os que preferem criar outras instituições, após um tempo de hostilização interna, será muito frutífero e poderá contribuir na implementação de transformações socioambientais e especificamente em melhorias para os trabalhadores que calçam e vestem o povo e mobiliam milhões de casas, no Brasil e no exterior.
5.10 – Libertar-se do discurso religioso tradicional
Desvencilhar-se das grades do linguajar grego-ocidental profundamente dualista, eis outro desafio. Transformar nas dimensões social, ambiental e religiosa exige libertar-se do discurso (e da prática) religioso tradicional, pois este condiciona em muito nossa visão e acaba por desviar a atenção de muitos assuntos que são cruciais. Quando focalizamos as expressões religiosas, corremos o risco de não ver outras expressões religiosas que não são consideradas como tais. Se ficarmos observando só o sagrado, corremos o risco de não ver a sacralidade presente no profano. Aliás, o profano é o que há de mais sagrado. O Deus da vida está entre o vestir e o calçar. Está lá consolando o trabalhador esfolado. Está lá denunciando violências e desrespeito aos direitos humanos. Enfim, está lá questionando e desmascarando o deus capital/mercado que, como vampiro, vive à custa de muito sangue. Mas o Deus da vida não se faz presente de forma mágica, nem de cima para baixo. O Deus da vida está lá ao redor da prensa, da injetora, do balancim de corte e costura, em face humana, suando, batalhando, alegrando-se, às vezes, angustiado e … sendo solidário com os colegas na luta por dias melhores.
Se olharmos apenas a superficialidade das lutas sociais e ecológicas, teremos mais dificuldade de perceber a presença de uma espiritualidade libertadora que inspira e alimenta tantas lutas. No mais profundo de cada militante socioambiental, no interior de um trabalhador altruísta, de um sindicalista ético, está também uma nova forma de experimentar a relação com Deus, o mistério de amor que nos envolve. Às vezes, é nominado; às vezes, não.
5.11 – Somos corpo pessoal, social, ecológico e espiritual
Nosso corpo pessoal é um universo composto de uma infinidade de órgãos, células, átomos, partículas subatômicas etc. Quando em harmonia, os órgãos do corpo humano estão todos tecendo relações de complementariedade, cooperação, corresponsabilidade e gratuidade. A Criação compõe um corpo infinitamente diverso e plural, onde a biodiversidade se constrói com relações de cooperação e complementariedade. Os seres humanos compõem o corpo social. Para contribuirmos no processo de transformação socioambiental e espiritual faz muito bem inspirarmo-nos também na teia da vida vivida nos corpos pessoal, social e ecológico. Há um fio vital e invisível, que tudo liga. A isso chamamos dimensão espiritual da vida.
5.12 – O que deve ser Religião?
Transformação socioambiental e religiosa exige desvencilhar também da noção de religião como instituição histórica com dogmas, doutrinas, ritos e regras a serem seguidas. Redescobrir o sentido mais profundo de religião é imprescindível. Por isso faz bem prestar atenção na etimologia da palavra religião. Segundo sua etimologia, no seu sentido mais profundo, Religião (que vem do latim) é re-ligare; re-légere; re-elígere:
5.12.1 – Religião verdadeira nos re-liga (re-ligare):
a) com Deus, nossa fonte primeira – o mistério de amor maior e inefável, que nos envolve, nos permeia, nos perpassa e nos liga a todos e a tudo (Sl 138);
b) com o outro (o próximo) – prioritariamente com marginalizados e excluídos, ajudando-nos a estabelecer vínculos efetivos, afetivos e de comunicação para que possamos viver e conviver;
c) com a natureza / toda a Criação – a mãe terra, a irmã água, o irmão sol, o irmão oxigênio, plantas, animais etc: a Religião nos integra na grande comunidade da vida.
d) Com nós mesmos – com o nosso Eu Profundo, no seu sentido mais genuíno, a Religião nos guia até o mais profundo de nós mesmos, nossos medos e sonhos, nossas forças e fraquezas; por ela transborda o imenso e belo potencial de vida existente em nós e no nosso entorno: beleza, força e energia vital.
5.12.2 – Religião verdadeira nos ensina a re-ler (re-légere):
– ler de novo, interpretar, com senso crítico e criativo, a realidade do que somos e a que nos envolve. Reavaliar o sentido que damos à vida, nossas posturas, acertos e desacertos. Em nossa caverna global, sob a batuta da mídia, funciona, a todo vapor, a indústria do senso comum, do entretenimento fútil e da desinformação. Notícias sem valor para uma vida de mais qualidade nos anestesiam e nos intoxicam. Os grandes meios de comunicação supervalorizam o negativo, o exótico, as tragédias de apelo sensacionalista, fomentando a cegueira e a paralisia social. É preciso reler, “reinterpretar”, não se acostumar, não banalizar, não ser ingênuos/as. É preciso desconfiar de muitas coisas que nos são apresentadas. É preciso discernir. “Como é que vocês não sabem interpretar o tempo presente?” (Evangelho de Lucas 12,56).
5.12.3 – Religião verdadeira é também eleger de novo (re-elígere):
– escolher melhor, fazer opções libertadoras e éticas diante dos desafios que se colocam para nós.
Cultivar um tipo de religião, no sentido original, é um grande desafio, também porque vivemos tempos de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de demônios por todos os lados, de gritaria de deuses, de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação, de moralismos, de religiões sem Deus, de salvações sem escatologia, de cristianismos light, de libertações que não vão muito além da autoestima.
Enfim, uma espiritualidade libertadora inclui o resgate do sentido original de religião, inspira e anima as lutas por transformação socioambiental que, por sua vez, questionam as espiritualidades tradicionais e tradicionalistas e reclamam a vivência de espiritualidade libertadora.
5.13 – A crise é fértil
Diante das graves estatísticas de “acidentes” de trabalho nos setores de produção de calçado e vestuário, diante do tsunami de injustiças sociais e de devastação ecológica em progressão geométrica sentimos, muitas vezes, uma grande impotência. Parece que estamos caminhando para um apocalipse da vida sobre nossa única casa comum, o planeta Água, erroneamente chamado de planeta Terra. Mas a fina flor da experiência bíblica indica-nos que os momentos de crise são profundamente férteis. “O deserto é fértil”, dizia dom Hélder Câmara. Há potencialidades que precisam ser desenvolvidas.
É fundamental reconhecer que estamos participando de processos, de uma caminhada constituída de uma infinidade de passos, que devem ser articulados entre si. Se ficarmos contemplando apenas o tamanho e a pretensa força do Golias, não perceberemos a força e a grandeza presentes no pequeno Davi. Os trabalhadores dos setores de calçado e de vestuário, se isolados, são fracos, mas se unidos e organizados, em comissões ou em sindicatos autênticos, podem derrubar muitos Golias e revelar a força e a luz do pequeno Davi que existe em cada um/a de nós. O sistema opressor e depredador é um gigante, mas tem pés de barro. A história demonstra que, quando menos se esperam, guinadas são dadas e os ventos começam a soprar em outra direção.
Enfim, esperamos ter contribuído para se perceber “onde está Deus entre o vestir e o calçar” e lançar pistas para uma pedagogia para luta de transformação socioambiental também no mundo do trabalho, nos setores calçadista e de vestuário.
Gilvander Luís Moreira, frei carmelita (da Ordem do Carmo)
Comunidade Carmelitana Edith Stein
Rua Iracema Souza Pinto, 695 – bairro Planalto
CEP: 31720-510 – BELO HORIZONTE – MG
E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
www.twitter.com/gilvander.org.br
[1] Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma; professor de Exegese e Teologia Bíblica do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos e Introdução ao Novo Testamento, no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte, MG, e no Seminário São José, da Arquidiocese de Mariana, MG; assessor de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs -, Comissão Pastoral da Terra – CPT -, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST -, Via Campesina, Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI – e Serviço de Animação Bíblica – SAB. E-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis
[2] Em complemento, o Anexo II do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048, de maio de 1999, classifica os “aspectos mórbidos” relacionadas às condições de trabalho, segundo as definições constantes no Art. 20 da Lei nº 8.213 sobre “doença profissional” e “doença do trabalho”.
[3] Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho: AEAT 2000.Brasília: MTE/MPAS, 2002, p.13 (Subseção A –
acidentes do trabalho registrados).
[4] Infelizmente, por falta de autorização formal competente e em tempo hábil, não foi possível pesquisar o pólo
calçadista de Franca, em São Paulo.
[5] Fratura, traumatismo superficial, Queimadura e corrosão, Lesão por esmagamento, Amputação traumática …
[6] Coloco entre aspas – “acidentes” – porque se buscarmos as causas mais profundas dos acidentes, possivelmente, descobriremos que não são acidentes no estrito sentido do termo, mas são “crimes anunciados” por condições materiais e psicológicas a que os trabalhadores são submetidos que acidentes são previsíveis, tragédia anunciada.
[7] – BISPOS E PASTORES SINODAIS DO BRASIL, “Os Pobres possuirão a Terra”, Ed. CEBI, Ed. Sinodal, Ed. Paulinas, 2006, número 82, p. 45.
EcoDebate, 14/09/2010
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