Um olhar sobre a conjuntura indigenista em 2010, artigo de Roberto Antonio Liebgott
Quando foi editado o decreto presidencial 7056, no dia 28 de dezembro de 2009, apresentando mudanças na estrutura do órgão indigenista – Funai – se instalou um ambiente de extrema desconfiança quanto às reais motivações que levaram a sua edição. Uma das razões para isso foi a falta de consulta aos povos indígenas, como prevê a Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, uma norma internacional ratificada pelo Brasil e, portanto, com força de lei, devendo então ser respeitada.
O referido decreto desencadeou uma onda de mobilizações e protestos de povos e organizações indígenas em várias regiões do país e em âmbito nacional. O sentimento, expressado através dos discursos das lideranças e dos atos de protestos, era de indignação pela forma com que o governo apresentou sua desastrosa tentativa de reestruturação da Funai. Embora houvesse consenso acerca da necessidade de mudanças no órgão indigenista, a edição do decreto, na calada da noite, evidenciou uma atitude prepotente do poder público ao negar, aos povos indígenas, a possibilidade do diálogo, do debate e da consulta sobre temas e questões que lhes dizem respeito. Neste contexto, as entidades que apóiam as lutas indígenas também manifestaram surpresa e inquietações. E vale dizer que nem mesmo os funcionários da Funai tinham conhecimento da reestruturação decretada e, com isso, também manifestaram às comunidades e povos indígenas suas inquietações e críticas, ampliando o espectro de descontentamento.
Neste contexto, vale ressaltar que a Comissão Nacional da Política Indigenista (CNPI) foi desrespeitada, uma vez que ela surgiu para ser espaço de diálogo, de consulta e de assessoria ao governo, em assuntos que afetam diretamente os povos indígenas e, em relação ao decreto de reestruturação da Funai, sequer foi informada.
Apesar de toda a repercussão negativa em torno do decreto, até hoje os dirigentes do órgão indigenista não conseguiram justificar as mudanças pretendidas, ou simplesmente não quiseram fazê-lo. E não são poucas as conseqüências práticas desde a sua edição, podendo-se ressaltar as seguintes:
– em razão da falta de abertura para o diálogo com os povos indígenas, instalaram-se sérias dúvidas quanto à seriedade das medidas pretendidas e suas reais intenções;
– paralisaram-se, desde então, alguns serviços que estavam sendo executados nas regiões onde estão estruturadas as ADRs, de modo especial as ações de proteção, fiscalização e acompanhamento cotidiano das demandas das comunidades e povos indígenas;
– também estão paralisados os procedimentos de demarcação de terras, e alguns dos GTs que realizam trabalhos de campo seguem em ritmo lento por conta das incertezas;
– observa-se que alguns setores que fazem oposição aos direitos constitucionais indígenas sentem-se fortalecidos e exercem intensa pressão sobre os poderes públicos com o intuito de limitar ainda mais o alcance destes direitos;
– intensifica-se o processo de criminalização de lideranças indígenas que lutam pela demarcação das terras e, um exemplo evidente disso é a perseguição desencadeada pelo Poder Judiciário e pela Polícia Federal aos líderes do Povo Tupinambá, mantendo presos o cacique Babau, seu irmão Gil e sua irmã Glicéria, com filho de três meses, ferindo os princípios da inocência, da legalidade, da ampla defesa e do contraditório. Vale ressaltar que a prisão de Glicéria Tupinambá se deu quando ela retornava ao estado da Bahia, depois de uma audiência especial da CNPI com o presidente da República;
A partir das manifestações e dos protestos, o presidente da Funai se comprometeu, em reunião da CNPI, a discutir com os povos indígenas o Regimento Interno que trata do funcionamento do órgão indigenista, e que necessita também ser adequado a nova estrutura. Mas, até o momento, se tem notícias de que apenas uma oficina foi realizada no estado do Maranhão.
Além dos fatos relativos à reestruturação da Funai, os povos indígenas também enfrentam grandes problemas com a política de assistência em saúde, esta de responsabilidade do Ministério da Saúde e, paradoxalmente, sob a gestão da Fundação Nacional de Saúde.
Embora o presidente da República tenha anunciado a criação da Secretaria de Atenção Especial à Saúde Indígena, através da Medida Provisória 483/2010, ela efetivamente não foi constituída. A MP apenas abre possibilidades, no âmbito do Ministério da Saúde, para que se crie uma nova secretaria, não estabelecendo que se trata especificamente da saúde indígena. Na oportunidade, o presidente da República prometeu que regulamentaria o funcionamento da Secretaria através de decreto. Passados mais de 90 dias, o decreto não foi editado e o Governo Federal só conseguiu aprovar a MP esta semana na Câmara dos Deputados, dependendo ainda de aprovação do Senado Federal.
Neste olhar sobre a conjuntura não se pode deixar de observar que as demandas judiciais contra procedimentos de demarcações de terras, que estão em curso ou até em fase de conclusão, são cada vez mais expressivas. E raras têm sido as decisões que acolhem, de maneira favorável, os direitos e interesses indígenas. Normalmente as decisões têm um caráter liminar, e suspendem os procedimentos demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias superiores – o STF ou o STJ. Em função destas manobras jurídicas, os processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o litígio imposto. Com isso, as possibilidades dos povos indígenas ocuparem suas terras se tornam cada vez menores, mesmo aquelas que comprovadamente sejam de uso tradicional ou as necessárias para a sua sobrevivência física, como nos casos das terras Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e do povo Guarani, no Sul e Sudeste do Brasil.
Outro tema igualmente relevante, que afeta diretamente os povos indígenas, são os grandes projetos econômicos, fundamentalmente aqueles relativos à exploração mineral, hídrica, madeireira, do agronegócio e dos agrocombustíveis. Estes projetos são apoiados e financiados, em maioria, pelo Governo Federal, através de recursos oriundos do BNDES, e estão inseridos como prioritários dentro do PAC. De acordo com levantamento realizado pelo Cimi, 426 projetos afetam terras indígenas. Nesse sentido, o Governo Federal não tem demonstrado nenhum escrúpulo ao projetar e implantar seus programas, mesmo que afetem terras, povos e/ou os direitos indígenas. Ao contrário, reiteradas vezes o presidente Lula manifesta-se em veemente defesa do Plano de Aceleração do Crescimento, insinuando, inclusive, que seus projetos serão implementados a qualquer custo, como ocorreu no caso da Transposição do Rio São Francisco, da hidrelétrica do Rio Madeira e como acontece com Belo Monte, no Rio Xingu. Reacende-se, neste contexto, aquele velho jargão de que quem é contra as obras do PAC é contra o crescimento, é contra o desenvolvimento, é contra o Brasil.
Merece também uma avaliação a postura do presidente da República, principalmente nos seus discursos quando faz a defesa dos grandes empreendimentos econômicos, especificamente das empreiteiras prestadoras de serviços na área da infra-estrutura como estradas, barragens, da construção civil (empresas que na sua maioria enriqueceram através das concessões nas eras militar e do governo FHC). O presidente da República, esteve recentemente em Altamira, no Pará e, protegido por um forte aparato de segurança, proferiu mais algumas daquelas “pérolas”, que ficarão registradas para sempre no vasto “tesouro” de sua biografia. Disse ele (nestes termos) que quando era jovem fazia passeatas e protestos sem saber do que se tratava e que era ingênuo e mal informado sobre as causas que defendia. Ele se referia aos protestos em função da construção da hidrelétrica de Itaipu, nos anos 70 do século passado, comparando com os protestos realizados atualmente contra Belo Monte, no Rio Xingu. Assim, para o presidente da República, as manifestações contrarias à obra são atos de pessoas sem informação, e não o resultado de longos processos de reflexão, baseado em experiências anteriores e fruto de uma convicta posição política em defesa dos povos, das comunidades, do meio ambiente, dos recursos hídricos.
Não podemos esquecer que o presidente Lula foi eleito pelas causas que ele defendia, e agora, depois de dois mandatos, afirma que aquelas causas eram ingênuas. Comprova, com isso, que ele governa não para os que o elegeram, mas para aqueles que doaram milhões de reais para a sua campanha de reeleição. As empreiteiras e os bancos injetaram mais de R$ 24 milhões para os cofres de seu partido, sendo que as empreiteiras, lideradas pela Camargo Correa, injetaram R$ 12,5 milhões na campanha presidencial do petista, enquanto o setor financeiro contribuiu com R$ 11,9 milhões. Considerando a lucratividade que tiveram os bancos, e a imensa quantidade de obras propostas, pode-se dizer que as doações de campanha se mostraram um excelente investimento.
E ao que tudo indica, na disputa eleitoral que vem sendo travada entre a candidata governista e o da oposição, os temas que envolvem os povos indígenas serão tratados com desprezo, visto que nas análises partidárias “os índios” atrapalham mais do que ajudam. Já para os segmentos empresariais, latifundiários, empreiteiras que financiam as campanhas políticas, a exploração indiscriminada dos recursos naturais em terras indígenas tem muita importância.
Também vale a pena considerar, tratando-se da conjuntura, o modo como o governo tem administrado os recursos disponíveis para as políticas públicas, e como se deu, neste primeiro semestre de 2010, a execução das ações previstas em cada rubrica do Orçamento Geral da União. Do total de recursos destinados à causa indígena, menos de um quarto foi utilizado até o momento. Em relação à demarcação das terras indígenas, por exemplo, em seis meses a Funai gastou apenas 4,6% do valor orçado para o ano (que é de R$ 32 milhões). Considerando-se este dado, é possível dizer que a morosidade e a paralisação dos procedimentos administrativos de demarcação não é resultado da falta de recursos e sim da falta de disposição do governo para realizá-los, bem como em função da confusão estabelecida com a tal reestruturação. Assim também os problemas com a política de atenção à saúde indígena não se devem à falta de verbas, já que, ao longo destes seis meses, a Funasa utilizou apenas 1% do orçamento destinado à estruturação de unidades e ao atendimento a estes povos. E há, ainda, os casos em que não houve execução orçamentária neste período – nas rubricas conservação e recuperação da biodiversidade em terras indígenas; fomento a gestão ambiental em terras indígenas e fomento a projetos direcionados a cultura dos povos indígenas.
Diante deste quadro conjuntural, pode-se dizer que as perspectivas não são nada favoráveis aos interesses e direitos dos povos indígenas. O embate a ser travado transcende as disputas no âmbito das políticas assistenciais, e precisa se dar, prioritariamente, no campo das definições políticas: trata-se de uma luta contra o grande capital e contra certas concepções governamentais de desenvolvimento. Ou seja, as lutas dos povos indígenas e de seus aliados terão que considerar fatores sociais, políticos, culturais e jurídicos. Devem-se canalizar os esforços, as ações e as reflexões no acompanhamento à causa indígena, considerando estas diferentes dimensões – política, econômica, jurídica, em âmbito local, regional e nacional. Também se faz necessário intensificar o debate em diferentes espaços, para que as diferenças sejam respeitadas, valorizadas, para que sejam também reconhecidas as concepções de vida e os modelos econômicos dos povos indígenas. Desse modo, e contando com uma rede mais ampla de aliados, talvez seja possível fazer com que os poderes públicos assumam as normas constitucionais não como entraves ou prejuízos aos que pretendem exclusivamente a exploração das riquezas da terra, mas como expressão de direitos coletivos e de justiça social.
Porto Alegre (RS), 10 de julho de 2010.
Roberto Antonio Liebgott
Vice-Presidente do Cimi
Artigo socializado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e publicado pelo EcoDebate, 16/07/2010
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