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Brasil, a agenda ‘esquecida’: Povos Indígenas

Eles pareciam estar definhando à medida que o “desenvolvimento” se expandia e ocupava todo o território nacional. E ninguém, a não ser alguns poucos grupos e pessoas, estava preocupado com as condições em que os remanescentes viviam. Dada a visão hegemônica de “progresso”, eles andavam na contramão e eram – são – tidos como empecilho para o pleno desenvolvimento econômico. E seu ressurgimento do ostracismo e suas resistências e organização só fazem aumentar a tensão entre dois modelos de desenvolvimento.

A luta dos povos indígenas por seus direitos, tanto no Brasil como na América Latina, faz deles um dos movimentos sociais mais inovadores. Desconsiderados como movimento social revolucionário, emergem com força em um contexto de crise ecológica, trazendo em seu bojo uma nova maneira de se relacionar com a natureza e o outro e de ver o desenvolvimento.


A distribuição geográfica dos indígenas é inversamente proporcional à ocupação dos brancos. Progressivamente, mas de forma mais intensa na segunda metade do século XX, houve um processo de “redução territorial e confinamento” dos indígenas em pequenas extensões de terras reservadas a eles, com sérias e profundas consequências sobre as suas vidas, a organização social e formas de subsistência, como aponta o indigenista Antonio Brant, em entrevista à Revista IHU On-Line desta semana.

O assédio às terras ocupadas por povos indígenas sempre foi enorme. Terras remanescentes e ricas, foram alvo de mineradoras, mas depois de fazendeiros para a expansão do agronegócio – soja, arroz, cana-de-açúcar, eucalipto – e da pecuária. Por fim, também de obras de infra-estrutura – como estradas ou hidrovias – e de produção de energia – etanol e hidrelétricas, com enormes impactos ambientais e sociais. Não raro essas obras são ou contam com recursos públicos provenientes do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Neste contexto, a situação dos indígenas vai se degradando. Desaldeados ou não, são alvo fácil da ganância de fazendeiros que os fazem trabalhar em condições hostis em usinas ou em condições similares à escravidão no corte e desgalho de pinus e eucalipto, por exemplo.

A terra é vital para a vida e a sobrevivência dos indígenas. A subnutrição e morte de crianças, problemas de violência, risco de perda de línguas, estão estreitamente relacionados à temática da terra dos povos indígenas.

Mas, a importância da terra ultrapassa a dimensão meramente produtiva. Ao menos para os Guarani, “povo da palavra” ou do “caminho”, a terra assume também características espirituais. “Os vínculos dos guarani com seu território são profundos e envolvem elementos materiais e espirituais (…) Para os guarani, a vida, em toda a plenitude e potencialidade, só pode se concretizar em um tekoha – um espaço específico onde se pode viver ao estilo guarani”, dizem Roberto Antonio Liebgott e Iara Tatiana Bonin em entrevista à Revista IHU On-Line.

Portanto, seguem os dois indigenistas, um tekoha “não é um lugar qualquer, e sim um espaço assim identificado com a intervenção dos espíritos, que orientam o olhar do xamã (o Karaí). Neste lugar é que se dão as condições para que se realize o modo de ser guarani, e ele deve apresentar uma série de características que envolvem aspectos ambientais, sociais e sobrenaturais. É necessário que o Karaí sonhe com este local e, em geral, um tekoha deve ter água e matas, campos, animais, ervas, espaço para plantar e cultivar alimentos (o milho, a mandioca, batata doce, amendoim, feijão, melancia, abobora)”.

Isso ajuda a entender um aspecto curioso dos guarani – o fato de acamparem à beira de rodovias. “Neste sentido, quando os guarani ocupam um espaço ínfimo, à beira de uma rodovia, o que estariam nos dizendo? Quase sempre essa ocupação é, na verdade, o limite mais próximo que eles conseguem estar de uma área mais ampla, identificada como um tekohá, e que quase sempre se situa ‘do lado de dentro’ das cercas que dividem certas propriedades”, concluem os pesquisadores.

Até 1988, predominava a política de integração dos indígenas à cultura e ao modo de viver dos brancos. Nesse contexto, o pedaço de terra em que moravam era provisório. Isso muda com a Constituição, quando os indígenas têm direito à terra demarcada e à cultura próprias.

Mas, como se observa, a distância entre o direito constitucional e a prática é abismal. Isso pode ser visto comparando-se o número de terras indígenas e as já demarcadas: das 943 terras indígenas 620 ainda aguardam por demarcação.

Neste caminho, a demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, homologada em 19 de março de 2009, representa sem sombra de dúvida uma grande conquista. Após mais de 30 anos de luta, os povos indígenas de Roraima finalmente conquistam um espaço exclusivamente deles, apesar das 19 condições impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A ferrenha oposição do agronegócio atrasou uma decisão já tomada em 2005 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois gigantescos interesses econômicos estavam em jogo.

O eixo desloca-se agora para o Mato Grosso do Sul, onde se trava outra luta, desta vez, envolvendo especialmente os Kaiowá-Guarani. No final de julho de 2008, a Funai publicou uma série de seis portarias que constituíam o ponto de partida de um processo de identificação e delimitação de terras tradicionalmente ocupadas pelos guaranis em Mato Grosso do Sul. O objetivo era ampliar as áreas ocupadas atualmente por esse grupo indígena. Os trabalhos foram interrompidos apenas cinco dias após terem começado. Só foram reiniciados um ano depois, em agosto de 2009.

A pressão exercida para impedir o trabalho das equipes técnicas foi imediata e cerrada. Reuniu desde o governador do Estado, André Puccinelli, outros políticos, até fazendeiros e pecuaristas. Reacendeu-se assim o clima de conflito entre fazendeiros e indígenas. A pressão surtiu efeito, pois semanas depois a Funai suspendeu, ainda que temporariamente, os estudos antropológicos para a demarcação das terras indígenas.

Em setembro de 2009, para alvoroçar ainda mais o clima já tenso, pessoas não identificadas queimaram cerca de 35 casas de indígenas Guarani Kaiowá, da aldeia Laranjeira Ñanderu, próxima do município de Rio Brilhante, no Mato Grosso do Sul. Os indígenas não estavam na aldeia, pois foram obrigados a sair da terra por ordem judicial e estavam acampados à beira da BR-163. Os indígenas estão acampados na beira da estrada, em frente à fazenda Santo Antônio de Nova Esperança, onde está a terra tradicional do povo, à espera de demarcação. De acordo com a professora Iara Tatiana Bonin, o ato de violência é mais um sinal de uma política de extermínio praticado conta esse povo. Relatório da Funai aponta participação de funcionários da Usina São Fernando, parceria do Bertin e da Agropecuária JB (Grupo Bumlai).

Mas, há na sociedade um consenso em que a luta pela demarcação das terras é fundamental para a redução dos índices de violência contra os povos indígenas em nosso país. “É fundamental que o Estado brasileiro aceite e respeite a reivindicação indígena por demarcação de terras. Isso é nítido no caso de Mato Grosso do Sul e em estados como Maranhão, Rio Grande do Sul e Bahia. É preciso demarcar terras, e de forma suficiente, para essa gente viver, se reproduzir, fazer crescer a população”, defende a antropóloga Lúcia Helena Rangel, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e assessora do Cimi.

Os índios, sabendo disso por experiência, por sua vez, também não ficaram de braços cruzados diante das objeções de seus opositores. Em setembro de 2008, cerca de 300 índios Guarani Kaiowá fizeram uma caminhada no centro da cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, pela demarcação das terras indígenas na região.

Em meados de outubro, um novo encontro, que ocorreu na Terra Indígena Yvy Katú, localizada no município de Japorã/MS, e que também reuniu cerca de 300 índios, pressionaram pela aceleração do processo de demarcação de suas terras. No encontro, os indígenas deram um prazo de 30 dias para que suas terras sejam finalmente demarcadas.

Paralelamente, o clima tenso, de hostilidades e de violência contra os indígenas continua. No final de outubro, algumas famílias Guarani-Kaiowá retomaram uma parcela de suas terras tradicionais, ocupada pela fazenda Triunfo, no município de Paranhos. No dia seguinte, um grupo de homens brancos, armados e encapuzados entrou no acampamento, insultou e agrediu violentamente os guarani, expulsando-os da área. Dois jovens professores que também participaram da retomada – Genivaldo Vera e Rolindo Vera – foram arrastados pelos cabelos e sequestrados pelos agressores. Dias depois o corpo de Genivaldo foi encontrado com perfurações e marcas de violência, preso a um galho de árvore, no córrego Ypoi, distante 30 quilômetros do local do crime.

Em dezembro, novo incidente, envolvendo seguranças de uma fazenda da região do município de Iguatemi. No confronto, 20 índios ficaram feridos.

Dias depois, é a vez dos bispos católicos que atuam no Mato Grosso do Sul solicitar providências às autoridades. Em nota, criticaram a relutância das autoridades em “buscar políticas públicas que sanem, de uma vez por todas, o clima de desespero e de ódio entre produtores rurais e índios” no Estado.

A notícia mais aguardada pelos indígenas veio, finalmente, depois de quatro anos de espera e luta, no dia 21 de dezembro de 2009. Neste dia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou nove Terras Indígenas. Somadas as Terras ocupam uma área superior a cinco milhões de hectares.

Entretanto, passado exato mês, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Gilmar Mendes, suspendeu a demarcação de mais de 90% da reserva indígena Arroio-Korá, em Mato Grosso do Sul, e 5% da reserva indígena Anaro, em Roraima, a pedido de fazendeiros locais que argumentam serem os donos das terras. Os fazendeiros, que deveriam deixar a região para dar espaço às comunidades indígenas, poderão permanecer no local até a decisão final do STF, que deverá ocorrer neste ano. Aqui vale o ditado: qualquer semelhança com o que aconteceu com a Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, é mera coincidência. O ministro tomou a decisão por achar que os argumentos dos fazendeiros eram “plausíveis”.

Mas, enfim… O decreto do presidente, assinado em dezembro, chegou, segundo alguns, tarde. Ele reflete a morosidade com que o poder público vem tratando de questão tão importante para uma maior democratização das terras em nosso país.

E, finalizando, esta análise estaria incompleta sem ao menos uma menção a outro aspecto da luta dos indígenas, aquela que se trava especialmente na região amazônica e que tem como alvo os mega-projetos de implantação de hidrelétricas no coração da selva amazônica, com graves e irreversíveis impactos ambientais e sociais. Em torno da luta contra a construção de enormes usinas, os indígenas têm sido incansáveis e tenazes, articulando-se para isso ao movimento ambientalista também contrário a essas iniciativas.

(Ecodebate, 08/06/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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