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Artigo

Ambientalização das lutas sociais: o caso do movimento por justiça ambiental, artigo de Henri Acselrad

RESUMO

Até a Conferência da ONU no Rio de Janeiro em 1992, era grande a desconfiança dos movimentos sociais tradicionais com relação ao discurso ambiental. A partir de 2001, essa distância começou a se reduzir, coincidindo com a criação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. O presente artigo descreve os passos da constituição dessa Rede, procurando caracterizar o processo de reapropriação local da experiência internacional dos movimentos por justiça ambiental, discutindo como se procurou superar a dissociação corrente entre as questões ambientais e as questões sociais, ao mesmo tempo que se expandiu o sentido da noção de “justiça ambiental” originalmente concebido por movimentos sociais nos Estados Unidos.

Palavras-chave: Justiça ambiental, Movimentos sociais, Ambientalização.

Introdução

A CARACTERIZAÇÃO da historicidade da questão ambiental encontra, na literatura sociológica, grande apoio na noção de “ambientalização” (Buttel,1992; Leite Lopes, 2004). Essa pode designar tanto o processo de adoção de um discurso ambiental genérico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporação concreta de justificativas ambientais para legitimar práticas institucionais, políticas, científicas etc. Sua pertinência teórica ganha, porém, força particular na possibilidade de caracterizar processos de ambientalização específicos a determinados lugares, contextos e momentos históricos. É por meio desses processos que novos fenômenos vão sendo construídos e expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos são renomeados como “ambientais”, e um esforço de unificação engloba-os sob a chancela da “proteção ao meio ambiente”. Disputas de legitimidade instauram-se, concomitantemente, na busca de caracterizar as diferentes práticas como ambientalmente benignas ou danosas. Nessas disputas em que diferentes atores sociais ambientalizam seus discursos, ações coletivas são esboçadas na constituição de conflitos sociais incidentes sobre esses novos objetos, seja questionando os padrões técnicos de apropriação do território e seus recursos, seja contestando a distribuição de poder sobre eles.

A noção de “movimento ambientalista” tem sido evocada, no Brasil, para designar um espaço social de circulação de discursos e práticas associados à “proteção ambiental”, configurando uma nebulosa associativa formada por um conjunto diversificado de organizações com diferentes graus de estruturação formal, desde ONG e representações de entidades ambientalistas internacionais a seções “ambientais” de organizações não especificamente “ambientais” e grupos de base com existência associada a conjunturas específicas. Esse conjunto de entidades envolvido no debate ambiental brasileiro esteve sempre atravessado por uma questão central: a de como engajar-se em campanhas que evocam a “proteção ao meio ambiente” sem desconsiderar as evidentes prioridades da luta contra a pobreza e a desigualdade social ou mostrando-se capaz de responder aos propósitos desenvolvimentistas correntes que almejam a rentabilização de capitais em nome da geração de emprego e renda. Em outros termos, como conquistar legitimidade para as questões ambientais, quando, com frequência, a preocupação com o ambiente é apresentada como um obstáculo ao enfrentamento do desemprego e à superação da pobreza? Como dar um tratamento lógico e socialmente aceitável às implicações ambientais das lutas contra a desigualdade social e pelo desenvolvimento econômico? O presente texto trata de um tipo de resposta oferecido a tais perguntas, discutindo o modo como, no processo de ambientalização de demandas e conflitos sociais verificado no Brasil, criaram-se condições específicas ao surgimento de retóricas e dinâmicas organizativas associadas à noção de “justiça ambiental”.

Clivagens do “ambientalismo”

A expressão “nebulosa associativa” evocada por André Micoud (2001) para o ambientalismo na França mostra-se duplamente pertinente no caso brasileiro, tanto pelo caráter disseminado e multiforme do conjunto de instituições que a noção compreende, como pela nebulosa intransparência que envolve crescentemente certos procedimentos de ambientalização: empresas suspeitas de práticas predatórias ambientalizam seu discurso, recusando, ao mesmo tempo, controles externos e proclamando sua capacidade de autocontrole ambiental; autoridades governamentais flexibilizam a legislação ambiental, alegando ganhos de rapidez e rigor nos licenciamentos; promotores de grandes projetos hidrelétricos que desestruturam a vida de comunidades indígenas afirmam que desenvolverão programas de “sustentabilidade” destinados “a assegurar a continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais” dos grupos indígenas…

Como recortar analiticamente as organizações da “nebulosa ambientalista”? Certamente, por sua condição de agentes envolvidos na elaboração do meio ambiente como questão e como horizonte problemático da construção societal e não por sua simples inclusão em cadastros formais de entidades. Não pela remissão retórica que fazem à missão de “proteger o meio ambiente” – fruto de autonomeação fortemente influenciada por estímulos externos -, mas antes pela diferença substancial de suas práticas (o que inclui, por certo, suas práticas discursivas).

Em seu sentido mais estrito, as associações ambientalistas atravessaram uma primeira fase sem estruturação jurídica, criadas com objetivos específicos que constituíram o eixo de suas atividades, veiculando, igualmente, denúncias variadas em proveniência de grupos informais de moradores e vítimas de impactos ambientais de empreendimentos industriais ou agroindustriais (Viola, 1987). Os alvos mais comuns das lutas dessas associações eram problemas que afetam a vida de comunidades localizadas – seja nas cidades, onde o processo de urbanização provoca conflitos locacionais associados a efeitos de aglomeração, construção de infraestruturas e plantas industriais, seja em áreas rurais, onde a expansão das atividades capitalistas e a implantação de grandes projetos de investimento desestabilizam as formas de existências de comunidades tradicionais. A chegada ao país de representações de entidades ambientalistas internacionais foi configurando também um campo mais restrito de campanhas amplas, vinculadas ao debate internacional sobre biodiversidade e mudanças climáticas. Um certo número de entidades constituiu-se, igualmente, na perspectiva de influenciar diretamente políticas governamentais e o debate legislativo.

Uma diferenciação interna ao “ambientalismo” mostrou-se, desde logo, diretamente relacionada ao modo como as questões do combate à desigualdade foram ou não articuladas ao conteúdo das lutas ambientais. Admite-se correntemente que a conexão forte entre as questões ambiental e a econômica havia sido subestimada durante a fase inicial de constituição de entidades que remetiam à proteção do meio ambiente. A relação entre meio ambiente e justiça social, porém, ganhou importância particular a partir de meados da década de 1980, culminando com a constituição, na conjuntura aberta pela realização no Rio de Janeiro da Conferência da ONU em 1992, de uma nova instância de articulação – o Fórum Brasileiro de ONG e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – por meio da qual procurou-se incorporar a temática ambiental ao debate mais amplo de crítica e busca de alternativas ao modelo dominante de desenvolvimento. Abriu-se, a partir de então, um diálogo, inconcluso, mas persistente, voltado à construção de pautas comuns entre entidades ambientalistas e o ativismo sindical, o movimento dos trabalhadores rurais sem terra, os atingidos por barragens, os movimentos comunitários das periferias das cidades, os seringueiros, os extrativistas e o movimento indígena.

A literatura corrente assinala uma importante mudança verificada no ambientalismo brasileiro nos anos 1990, com a diferenciação interna operada por um movimento de institucionalização. Assinala-se terem surgido, no período, organizações com corpo técnico e administrativo profissionalizado e com capacidade sistemática de captar recursos financeiros, abrindo-se, na ocasião, um debate em torno da redefinição identitária daqueles que se reivindicavam como parte do “movimento ambientalista”. Mas amadorismo e profissionalismo, informalismo e institucionalização parecem ter sido aspectos relativamente formais de clivagens mais substantivas que atravessavam a “nebulosa ambientalista” naquele período, dividindo-a crescentemente entre um pragmatismo paraestatal ou paraempresarial e a crítica ao modelo de desenvolvimento dominante; entre instrumento da modernização ecológica do capitalismo brasileiro e ator social investido na expansão do campo dos direitos. É fato que parte das entidades dedicou-se a atuar diretamente no domínio gestionário-administrativo, servindo os aparatos burocráticos do “setor ambiental dos governos” e fornecendo informação, perícia técnica ou mediação de conflitos. Voltaram-se, assim, fortemente para o Estado, eventualmente buscando ocupar espaço nas representações reservadas à “sociedade civil” nos órgãos consultivos de política ambiental, ou para o mercado, fornecendo soluções discursivas, mediação e legitimação ao processo de “ambientalização” de empresas. A tendência observada à científicização das políticas ambientais teve por contrapartida uma tendência à científicização dos movimentos; a tecnocracia oficial é confrontada por contraperícias, e, ao chamado “setor ambiental do governo”, passa a corresponder uma comunidade ambiental de associações de especialistas. Formam-se instituições de caráter para-administrativo que funcionam como nós de redes, ora estando no Estado, ora servindo como correia de transmissão para a execução de suas políticas, via práticas pedagógicas ou de consultoria. Muitas dessas organizações tendem a dar prioridade ao pragmatismo da ação eficaz do que aos dispositivos democráticos e de organização da sociedade.

Outro subconjunto de entidades da “nebulosa ambientalista” afirmou-se, por sua vez, como agente em um campo de forças, colocando em jogo a distribuição de poder sobre os recursos territorializados a partir de embates diretos ou simbólicos na disputa pela definição legítima do que é ou não “sustentável”, ambientalmente benigno etc., mas voltando-se notadamente para a sociedade, na perspectiva de sua organização e da consideração da questão ambiental como de natureza eminentemente política. Nos termos de militantes atuando nesse campo, com referência à conjuntura do final dos anos 1990,”o ecologismo filosófico foi superado por um ecologismo mais pragmático”; “o movimento ambientalista entrou em declínio porque instalou-se uma certa confusão: a nossa luta original era por um novo modo de desenvolvimento e não por buscar soluções paliativas”, pois “não somos consultores, queremos mudar a sociedade” e “nosso papel não é o de trabalhar para o governo; não é o de ocultar o conflito, mas de dar-lhe visibilidade”;”o grupo de entidades combativas cresceu menos que o das que se voltam para o mercado”; “a maioria dos dirigentes de ONG está vendendo serviços, está fazendo consultoria, principalmente para as empresas poluidoras” – depoimentos como esses constam da tese de Loureiro (2000, p.210-7).

No campo do ecologismo combativo, inserem-se progressivamente movimentos sociais já bem constituídos, que ambientalizam as pautas dos grupos subalternos que pretendem representar, analogamente ao que acontecera já nos anos 1980 com os seringueiros do Acre. Esse é o caso do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) que acusa a economia do setor elétrico de rentabilizar seus investimentos pela expropriação do ambiente dos atingidos e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que questiona a noção corrente de produtividade, sustentando que não é “produtiva” a terra que produz qualquer coisa a qualquer custo, acusando a grande agricultura químico-mecanizada de destruir recursos em fertilidade e biodiversidade, e, assim, descumprir a função social da propriedade.

É sabido que, entre analistas e atores sociais, desenvolveu-se, ao longo dos anos 1990, a impressão de que teria havido um processo de “substituição” do ambientalismo contestatário por um “ecologismo de resultados”, pragmático e tecnicista. No entanto, essa impressão não foi generalizada, dado que alguns atores – e autores – sustentam ter ocorrido, isso sim, um movimento de neutralização das lutas ambientais, empreendido por organismos multilaterais, empresas poluidoras e governos, esforço esse que teria sido bem-sucedido apenas junto ao que chamam de “ecologismo desenraizado”, desprovido de maiores vínculos com movimentos sociais. Para Arnt & Schwartzman (1992, p.125), “a idéia ambientalista desenraizada revela a verdade torta de sua falsidade: a modernização que exprime é a do sistema que obedece aos interesses que contempla”. Em um trabalho anterior (Acselrad, 2002, p.13), sugerimos que

parte do “ecologismo desenraizado” respondeu favoravelmente ao discurso consensualista propugnado por agências multilaterais, de apologia da parceria público-privada, de deslegitimação da esfera nacional em favor da esfera local, de favorecimento das ações fragmentárias em detrimento da coerência articulada da ação política.

Há, de fato, indicações de que a “substituição” do projeto contestatário por uma atuação técnico-científica associada ao discurso do localismo e à aplicação de tecnologias de formação de consenso é um propósito comum a organismos multilaterais, governos e empresas poluidoras. Em relatório recente para o Brasil, o Banco Mundial dizia “reconhecer seu papel de catalisador” na promoção da participação da sociedade civil (Garrison, 2000). Pretende-se assim promover uma ação de antecipação, capaz de capturar os movimentos de contestação ao padrão dominante de desenvolvimento no interior do que se tem chamado de “modernização ecológica”, noção que designa o processo pelo qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à celebração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso (Blowers, 1997).

A esse tipo de procedimento de neutralização da crítica, “de mudança do lugar/condição social do enfrentamento crítico, permitindo evitar perdas de superioridade relativa dos atores dominantes e atribuindo-lhes forças derivadas de novas circunstâncias”, Boltanski & Chiapello (1999) chamam de “deslocamentos” – mudanças organizativas ou de critérios de alocação social pelas quais o capitalismo assegura continuidade a seus próprios mecanismos, contribuindo para esvaziar as críticas que lhes são dirigidas. O “deslocamento” assim configurado no movimento de transformação do “confronto em colaboração”,1 procurando fazer do embate ecológico uma dimensão da “parceria entre sociedade civil e governos”, não teria, porém, sido bem-sucedido junto ao que é visto como um ecologismo socialmente enraizado. Tratar-se-ia, assim, para os atores desse ecologismo contestatário, de tentar preservar o espaço da crítica ambientalista ao modelo de desenvolvimento e de fazer que a questão ambiental pudesse constar da elaboração de um projeto político contra-hegemônico. Não é propriamente a prestação de serviços ao Estado e às empresas o objeto da crítica: o que recusam os militantes do ecologismo contestatário é que se questione a legitimidade da ação política em nome do imperativo da cooperação consensualista, posto que, segundo dizem, “as ONGs de mercado tentam não só ocupar o espaço da prestação de serviço, mas também os espaços institucionais, os canais de participação popular” (Loureiro, 2000, p.212). As entidades e os movimentos que começaram, no Brasil, a partir dos anos 2000, a associar sua ação à noção de “justiça ambiental” inserem-se, por certo, nesse grupo mais combativo que profissional, mais envolvido na discussão crítica das políticas públicas do que no assessoramento técnico a governos e empresas.

A temática da justiça ambiental e sua construção no Brasil

A noção de “justiça ambiental” exprime um movimento de ressignificação da questão ambiental. Ela resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social. Esse processo de ressignificação está associado a uma reconstituição das arenas onde se dão os embates sociais pela construção dos futuros possíveis. E nessas arenas, a questão ambiental se mostra cada vez mais central e vista crescentemente como entrelaçada às tradicionais questões sociais do emprego e da renda.

Ao falarmos de uma ressignificação da questão ambiental, convém fazer uma breve revisão dos significados que lhe foram, na história recente, atribuídos. Desde o princípio, a questão ambiental esteve investida de distintos sentidos, ora contracultural, ora utilitário. O primeiro constituiu um movimento de questionamento do estilo de vida que tem justificado o padrão dominante de apropriação do mundo material – consumismo dito fordista, industrialização químico-mecanizada da agricultura etc. O segundo, um sentido utilitário protagonizado inicialmente pelo Clube de Roma,2 que, após 30 anos de crescimento econômico nos países capitalistas centrais, preocupava-se em assegurar a continuidade da acumulação do capital, economizando recursos em matéria e energia.

O economista heterodoxo Georgescu-Roegen intervinha então no debate alertando: economizar quantidades de matéria e energia apenas retarda o problema. Não caberia só economizar recursos, mas se perguntar sobre as razões pelas quais nos apropriamos da matéria e da energia. Ecologia, dizia ele, não se traduz apenas em quantidades escassas, mas na qualidade das relações sociais que fundam os usos sociais do planeta. Eis, segundo aquele autor, a questão ecológica de fundo: usamos os recursos planetários para produzir arados ou canhões?

Uma razão utilitária e uma razão cultural disputavam, assim, desde o início, a arena de construção da questão ambiental. Para a razão utilitária hegemônica, o meio ambiente é uno e composto estritamente de recursos materiais, sem conteúdos socioculturais específicos e diferenciados; é expresso em quantidades; justifica interrogações sobre os meios e não sobre os fins para os quais a sociedade se apropria dos recursos do planeta; pressupõe um risco ambiental único, instrumental – o da ruptura das fontes de abastecimento do capital em insumos materiais e energéticos, assim como da ruptura das condições materiais da urbanidade capitalista -, ou seja, o risco de inviabilização crescente da cidade produtiva, por poluição, congestionamento etc. Dado esse ambiente único, objeto instrumental da acumulação de riqueza, a poluição é apresentada como “democrática”, não propensa a fazer distinções de classe.

Uma razão cultural, por sua vez, se interroga sobre os fins pelos quais os homens se apropriam dos recursos do planeta; o meio ambiente é múltiplo em qualidades socioculturais; não há ambiente sem sujeito – ou seja, ele tem distintas significações e lógicas de uso conforme os padrões das distintas sociedades e culturas. Os riscos ambientais, nessa óptica, são diferenciados e desigualmente distribuídos, dada a diferente capacidade de os grupos sociais escaparem aos efeitos das fontes de tais riscos. Ao evidenciar a desigualdade distributiva e os múltiplos sentidos que as sociedades podem atribuir a suas bases materiais, abre-se espaço para a percepção e a denúncia de que o ambiente de certos sujeitos sociais prevaleça sobre o de outros, fazendo surgir o que se veio denominar de “conflitos ambientais”. O ambiente passa assim a integrar as questões pertinentes à cultura dos direitos – o direito metafórico de gerações futuras, num primeiro momento, constitutivo de um conflito também metafórico entre sujeitos presentes e sujeitos não nascidos; mas, em seguida, a percepção de que, para além da metáfora do conflito intergeracional, haveria que se considerar também a concretude dos “conflitos ambientais realmente existentes”, protagonizados por sujeitos copresentes. E os sujeitos copresentes dos conflitos ambientais são, com frequência, aqueles que denunciam a desigualdade ambiental, ou seja, a exposição desproporcional dos socialmente mais desprovidos aos riscos das redes técnico-produtivas da riqueza ou sua despossessão ambiental pela concentração dos benefícios do desenvolvimento em poucas mãos. A poluição não é, nessa perspectiva, necessariamente “democrática”, podendo afetar de forma variável os diferentes grupos sociais.

Às duas razões aqui esboçadas correspondem dois modelos de ação estratégica. A razão utilitária configurou a estratégia dita de modernização ecológica, pela afirmação do mercado, do progresso técnico e do consenso político. A “sociedade de proprietários” propugnada pelo neoconservadorismo é seu norte: uma revolução da eficiência é evocada para economizar o planeta, dando preço ao que não tem preço. A razão cultural deu, por seu lado, origem a uma ação que denuncia e busca superar a distribuição desigual dos benefícios e danos ambientais. Considerando que a injustiça social e a degradação ambiental têm a mesma raiz, haveria que se alterar o modo de distribuição – desigual – de poder sobre os recursos ambientais e retirar dos poderosos a capacidade de transferir os custos ambientais do desenvolvimento para os mais despossuídos. Seu diagnóstico assinala que a desigual exposição aos riscos deve-se ao diferencial de mobilidade entre os grupos sociais: os mais ricos conseguiriam escapar aos riscos e os mais pobres circulariam no interior de um circuito de risco. Donde a ação decorrente visando combater a desigualdade ambiental e dar igual proteção ambiental a todos os grupos sociais e étnicos.

Trata-se, pois – é o que se delineia progressivamente ao partir dos anos 1990 -, de um embate entre projetos, reunindo discursos, concepções, instituições e práticas diferentes. A modernização ecológica recusa regulações políticas; propõe-se a dar preço ao que não tem preço; opõe a lógica dos interesses à lógica dos direitos; tende a equacionar o meio ambiente na lógica da propriedade privada – a “tragédia dos comuns”3 é o paradigma que aponta a privatização dos bens comunais como solução para seu uso econômico (na contramão das conquistas de movimentos como o das quebradeiras de coco babaçu no Maranhão ou coletoras de arumã no Baixo Rio Negro, por exemplo, que afirmam territorialidades e sistemas jurídicos heterogêneos.); o “meio ambiente” é visto como “oportunidade de negócios” (vide concepções vigentes em seguidos Planos Plurianuais de Investimento de governos brasileiros); o meio ambiente e a sustentabilidade tornam-se categorias importantes para a competição interterritorial e interurbana; para atrair capitais, a “ecologia” e a “sustentabilidade” podem tornar-se apenas um símbolo, uma marca que se quer atrativa.

A estratégia ancorada na noção de justiça ambiental, por sua vez, identifica a desigual exposição ao risco como resultado de uma lógica que faz que a acumulação de riqueza se realize tendo por base a penalização ambiental dos mais despossuídos. A operação dessa lógica estaria associada ao funcionamento do mercado de terras, cuja “ação de coordenação” faz que práticas danosas se situem em áreas desvalorizadas, assim como à ausência de políticas que limitem a ação desse mercado. Tal segmentação socioterritorial tem se aprofundado com a globalização dos mercados e a abertura comercial – a saber, com a maior liberdade de movimento e deslocalização dos capitais,4 queda do custo de relocalização e incremento do poder de exercício da chantagem locacional pelos capitais, que podem usar a carência de empregos e de receitas públicas como condição de força para impor práticas poluentes e regressão dos direitos sociais. A denúncia da operação desses mecanismos e a construção de capacidade organizativa e de resistência à chantagem de localização serão, consequentemente, instrumentos de pressão pela redefinição das práticas sociais e técnicas correntes de apropriação do meio, de localização espacial das atividades e de distribuição do poder sobre os recursos ambientais.

Nas ciências sociais, a noção de desigualdade ambiental adquire peso teórico em uma série de autores, tais como o neoweberiano Murphy (1994), que sugere que as sociedades estão se estruturando crescentemente em “classes ambientais” – umas que ganham com a degradação e outras que pagam os custos ambientais -, ou Schnaiberg et al. (2004), para os quais a população é seccionada em termos econômicos, parte dela sendo envolvida no “moinho da produção”, com os rejeitos sendo alocados nos espaços comuns onde residem os mais pobres, eximindo aqueles que decidem de sofrer os danos ambientais localizados. A crítica do senso comum, segundo o qual a causa ambiental é intrinsecamente supraclassista, pode ser encontrada também em estudiosos do desenvolvimento como Peter Newell (2005), para quem “as clivagens políticas e sociais de raça, classe e gênero são chave para o entendimento da organização global da desigualdade ambiental”. O pensamento ultraliberal, por sua vez, contra-argumenta alegando que não há injustiça quando as pessoas decidem voluntariamente aceitar um risco desproporcional em troca de vantagens econômicas (Perhac, 1999) ou que “o ecopopulismo está muito mais preocupado com a pressão política do que com a saúde das comunidades: a meta é aumentar o poder das comunidades nas políticas”. “O ‘envenenamento em massa'” – completam os críticos do movimento de justiça ambiental – “é um tema usado para mobilizar ansiedades, subordinando-as aos objetivos gerais de democratização; o movimento de justiça ambiental não quer poluição mais equitativa, mas sim aumentar o papel das comunidades” (Foreman, 1998).

O que está efetivamente em jogo nesse embate? Tudo sugere que se trate do modo como se organizam as condições materiais e espaciais de produção e reprodução da sociedade – mais especificamente, como distribuem-se no espaço distintas formas sociais de apropriação dos recursos ambientais, e como, nessa distribuição, a permanência no tempo de uma atividade, caracterizada por certas práticas espaciais,5 é afetada pela operação de outras práticas espaciais. Ou seja, como para a expansão da monocultura do eucalipto, perdem os quilombolas suas terras e fontes de água; como, para a expansão da soja transgênica, são inviabilizadas as atividades dos pequenos agricultores orgânicos; como, por causa da produção de energia barata para as multinacionais do alumínio, perdem os pescadores e ribeirinhos do Tocantins sua capacidade de pescar; como, para a produção de petroquímicos, perdem os trabalhadores sua saúde pela contaminação por poluentes orgânicos persistentes.

Justiça ambiental é, portanto, uma noção emergente que integra o processo histórico de construção subjetiva da cultura dos direitos. Na experiência recente, essa noção de justiça surgiu da criatividade estratégica dos movimentos sociais que alteraram a configuração de forças sociais envolvidas nas lutas ambientais e, em determinadas circunstâncias, produziram mudanças no aparelho estatal e regulatório responsável pela proteção ambiental.

Na experiência dos Estados Unidos, o Movimento de Justiça Ambiental surgiu a partir de meados dos anos 1980, denunciando a lógica socioterritorial que torna desiguais as condições sociais de exercício dos direitos. Ao contrário da lógica dita “Nimby” – “not in my backyard” [“não no meu quintal”], os atores que começam a se unificar nesse movimento propugnam a politização da questão do racismo e da desigualdade ambientais, denunciando a lógica que acreditam vigorar “sempre no quintal dos pobres” (Bullard, 2002). Após cerca de 20 anos de crítica e denúncia dos mecanismos produtores da desigualdades ambientais nos Estados Unidos, a questão ganhou visibilidade nacional em 2005, com as evidências do perfil sociodemográfico das vítimas do furacão Katrina, que atingiu Nova Orleans.6 Antes disso, representantes de algumas redes do Movimento de Justiça Ambiental dos Estados Unidos estiveram no Brasil, em 1998,7 procurando difundir sua experiência e estabelecer relações com organizações locais dispostas a formar alianças na resistência aos processos de “exportação da injustiça ambiental”.8 Desenvolveram na ocasião contatos com ONG e grupos acadêmicos, que vieram ser retomados ulteriormente por meio da realização de várias oficinas no âmbito de diferentes edições do Fórum Social Mundial. Uma primeira iniciativa de releitura da experiência norte-americana por entidades brasileiras deu-se pela realização de um material de discussão elaborado e publicado por iniciativa da ONG Ibase, da representação da Comissão de Meio Ambiente da Central Sindical CUT no Rio de Janeiro e de grupos de pesquisa do Ippur/UFRJ. Os três volumes da série Sindicalismo e justiça ambiental (Ibase/CUT-RJ/Ippur-UFRJ, 2000) tiveram circulação e impacto restrito, mas estimularam outros grupos da universidade, do mundo das ONG e do sindicalismo a explorar o veio de tal debate, o que levou à organização do Seminário Internacional Justiça Ambiental e Cidadania, realizado em setembro de 2001 na cidade de Niterói, reunindo representações de diferentes movimentos sociais, ONG, pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, além de um certo número de intelectuais e representantes do Movimento de Justiça Ambiental dos Estados Unidos, entre os quais o sociólogo Robert D. Bullard, responsável pelo primeiro mapa da desigualdade ambiental utilizado como base empírica de denúncias pelos movimentos nos Estados Unidos.9

Por ocasião do seminário,10 em setembro de 2001, foi criada a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que, após debates, elaborou uma declaração expandindo a abrangência das denúncias para além da questão do racismo ambiental na alocação de lixo tóxico, que fundara a organização nascida no âmbito do movimento negro dos Estados Unidos. A definição da categoria de luta “justiça ambiental” ampliou-se então, designando o conjunto de princípios e práticas que:

a – asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas;

b – asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;

c – asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;

d – favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso. (Acselrad, 2004, p.13-20)

Entre 2001 e 2004, a Rede estabeleceu-se basicamente como instrumento de transmissão de experiências e denúncias por meio digital, reunindo cerca de cem entidades. No I Encontro realizado em 2004, reuniram-se os membros da Rede, clarificando as linhas de confronto do conjunto dos atores e movimentos sociais ali representados com um modelo de desenvolvimento caracterizado como “voltado à produção de divisas a qualquer custo”. Na Amazônia, por exemplo, denunciaram-se as injustiças associadas aos mecanismos da acumulação primitiva, caracterizados pelo sequenciamento entre grilagem de terras, exploração madeireira, desmatamento, criação extensiva e entrada da soja de alta tecnologia – uma espécie de “ornitorrinco” aplicado ao território, usando aqui, por analogia, o termo usado pelo sociólogo Francisco de Oliveira (2003) para designar essa articulação singular entre formas modernas e globalizadas de produção com formas primitivas de exploração do trabalho e extração de riqueza.

Ante a integração mais estreita do território brasileiro aos circuitos do capital mundializado, com exclusão ou integração subordinada das comunidades locais, esboçam-se caminhos alternativos de uma articulação territorial das formas locais de produção com o mercado interno, sem submissão aos agentes fortes no mercado mundial. As lutas que evocam tais alternativas politizam a questão ambiental e colocam em discussão o modelo de desenvolvimento que articula as diferentes práticas espaciais. Os protagonistas dessas lutas caracterizam-se pela pretensão a resistir à “chantagem locacional dos investimentos” e pela disposição a discutir as condições em que se pretende efetuar a integração das populações locais ao mercado. Isso porque o modelo de desenvolvimento em vigor no país vem demonstrando ter como sujeitos de peso os agentes fortes no mercado mundial. E a força desses agentes reside na “chantagem locacional” pela qual os grandes investidores envolvem, quando não submetem a todos aqueles que buscam o emprego, a geração de divisas e a receita pública a qualquer custo. No plano nacional, se não obtiverem vantagens financeiras, liberdade de remessa de lucros, estabilidade etc., os capitais internacionalizados ameaçam se “deslocalizar” para outros países. No plano subnacional, se não obtiverem vantagens fiscais, terreno de graça, flexibilização de normas ambientais, urbanísticas e sociais, também se “deslocalizam”, penalizando, consequentemente, os Estados e municípios onde é maior o empenho em preservar conquistas sociais e ambientais. Ao mesmo tempo, ao escolherem o espaço mais rentável onde se relocalizar (ou seja, aqueles locais onde conseguem obter vantagens fiscais e ambientais), acabam premiando com seus recursos Estados e municípios onde é menor o nível de organização da sociedade e mais débil o esforço em assegurar o respeito às conquistas legais. Ou seja, nesse quadro político-institucional, os capitais conseguem “internalizar a capacidade de desorganizar a sociedade”, punindo com a falta de investimentos os espaços mais organizados, e premiando, em contrapartida, com seus recursos, os espaços menos organizados. O chamado “duplo padrão”11 – a adoção de critérios ambientais distintos por uma mesma empresa em diferentes pontos do planeta – é a expressão da chamada “chantagem locacional”, ou seja, do jogo político das grandes corporações, que procuram impor aos setores menos organizados da sociedade a aceitação de níveis de poluição rejeitados por países e setores sociais mais organizados e criteriosos na definição de restrições a processos poluentes e ambientalmente danosos. É nesse contexto adverso que vemos constituírem-se sujeitos coletivos que recusam a imposição do “duplo padrão” na regulações ambientais, exigem amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e capacidade autônoma de decidir sobre seus territórios, pretendendo instaurar acesso justo e equitativo aos recursos ambientais do país – eis como a noção de justiça ambiental vem se materializando na experiência brasileira recente (Acselrad, 2008a, p.75-97).12

Em acepção ampliada e reinterpretada pelos atores sociais do país, são compreendidos, assim, como sujeitos da resistência à produção de desigualdades ambientais: as vítimas da contaminação de espaços não diretamente produtivos – entorno de grandes empreendimentos portadores de risco e periferias das cidades onde são localizadas instalações ambientalmente indesejáveis (lixões, depósitos de lixo tóxico etc.; a) desigualdade resultaria, nesse caso, da menor capacidade de os moradores dessas periferias se fazerem ouvir nas esferas decisórias ou mesmo de seu consentimento – dada a carência de emprego, renda, serviços públicos de saúde e educação – na expectativa de que tais empreendimentos tragam algum tipo de beneficio localizado); b) as vítimas da contaminação “produtiva” interna aos ambientes de trabalho industrial e agrícola, pela qual interesses econômicos lucrariam com a degradação dos corpos dos trabalhadores, via desinformação, contrainformação, mascaramento de informação e chantagem do emprego (Malerba, 2004); c) vítimas da despossessão de recursos ambientais – fertilidade dos solos, recursos hídricos e genéticos, assim como territórios essenciais à reprodução identitária de comunidades e grupos socioculturais – por grandes projetos infraestruturais e empreendimento produtivos que desestabilizam as práticas espaciais de populações tradicionais. A crítica dos movimentos incide, pois, tanto a montante e a jusante do processos produtivos, como também no lócus mesmo da produção de mercadorias. Nesse âmbito, a leitura da questão ambiental por grupos operários leva a um questionamento da fronteira jurídica entre o interior e o exterior das unidades produtivas, oferecendo novas possibilidades de alianças entre trabalhadores que lidam como substâncias perigosas e moradores do entorno das unidades poluentes.13

As lutas por justiça ambiental, tal como caracterizadas no caso brasileiro, combinam assim: a defesa dos direitos a ambientes culturalmente específicos – comunidades tradicionais situadas na fronteira da expansão das atividades capitalistas e de mercado; a defesa dos direitos a uma proteção ambiental equânime contra a segregação socioterritorial e a desigualdade ambiental promovidas pelo mercado; a defesa dos direitos de acesso equânime aos recursos ambientais, contra a concentração das terras férteis, das águas e do solo seguro nas mãos dos interesses econômicos fortes no mercado. Mas cabe ressaltar também a defesa dos direitos das populações futuras. E como os representantes do movimento fazem a articulação lógica entre lutas presentes e “direitos futuros”? Propondo a interrupção dos mecanismos de transferência dos custos ambientais do desenvolvimento para os mais pobres. Pois o que esses movimentos tentam mostrar é que, enquanto os males ambientais puderem ser transferidos para os mais pobres, a pressão geral sobre o ambiente não cessará. Fazem assim a ligação entre o discurso genérico sobre o futuro e as condições históricas concretas pelas quais, no presente, se está definindo o futuro. Aí se dá a junção estratégica entre justiça social e proteção ambiental: pela afirmação de que, para barrar a pressão destrutiva sobre o ambiente de todos, é preciso começar protegendo os mais fracos.

Como identificar a pressão predatória exercida sobre os mais fracos? Ora, a “chantagem locacional dos investimentos” é o mecanismo central, nas condições de liberalização hoje prevalecentes, para a imposição de riscos ambientais e de trabalho às populações destituídas. Pois, em ausência de políticas ambientais de licenciamento e fiscalização de atividades apropriadas e sem políticas sociais e de emprego consistentes, as populações mais pobres e desorganizadas tenderiam a sucumbir às promessas de emprego “quaisquer que sejam seus custos”. A dinâmica desses movimentos sugere, portanto, que a condição de destituição de certos grupos sociais é um elemento-chave a favorecer a rentabilização de investimentos em processos poluentes e perigosos. É por isso que, no entendimento dos setores populares mobilizados em torno das lutas ambientais, é cada vez mais clara a fusão entre risco ambiental e insegurança social – peças centrais da reprodução das desigualdades em tempos de liberalização da economia. Torna-se assim também crescentemente difundido o entendimento de que a proteção ambiental não é, ao contrário do senso comum, causa restrita a classes médias urbanas, mas parte integrante das lutas sociais das maiorias. E é por meio de suas estratégias argumentativas e formas de luta inovadoras que os atores sociais, cuja práticas aqui analisamos, têm procurado, no Brasil, fazer do ambiente um espaço de construção de justiça e não apenas da razão utilitária do mercado.

Notas

1 Esse é o título de um relatório do Banco Mundial para o Brasil (cf. Garrison, 2000).

2 O Clube de Roma é a instituição que encomendou o relatório de pesquisa que tomou o nome de Limites ao Crescimento e que, no início dos anos 1970, simulou as perspectivas futuras da economia mundial, apontando os riscos de crise do capitalismo por carência de insumos materiais e energéticos.

3 “Tragédia dos comuns” é a parábola pela qual o ecólogo conservador Garret Hardin (1968) pretendeu representar a problemática ecológica sob o paradigma da escassez resultante do fato de que recursos como o ar, a água e a biodiversidade são de uso comum, não sendo, pois, objeto da propriedade privada.

4 Deslocalização é o termo que descreve o fato de determinados empreendimentos serem retirados de seus locais de implantação para serem relocalizados em outro ponto, região ou país onde as condições político-institucionais sejam mais favoráveis à acumulação de riqueza – tais como normas ambientais frouxas, direitos sociais revistos e leis urbanísticas flexibilizadas.

5 Consideramos, à maneira de Henri Lefebvre e David Harvey, as “práticas espaciais materiais” como referidas a “fluxos, transferências e interações físicas e materiais que concorrem no e ao longo do espaço de maneira a garantir a produção e a reprodução social” (cf. Harvey, 1992, p.201).

6 A revista Newsweek de setembro de 2005 estampou em sua capa a manchete “Vergonha nacional”, e, na matéria principal, mapas da desigualdade ambiental dos Estados Unidos.

7 Participaram do Encontro com o Movimento de Justiça Ambiental realizado no campus da Praia Vermelha da UFRJ, em junho de 1998, representantes do Southeast Regional Economic Justice Network, do Southern Organizing Committee, do Southwest Public Workers Union, do Environmental and Economic Justice Project, todos dos Estados Unidos e da Cordillera People’s Alliance das Filipinas.

8 No âmbito acadêmico, a noção de justiça ambiental e sua problemática já haviam sido tratadas na tese de doutorado do demógrafo Haroldo Torres (1997) e divulgadas no artigo “A demografia do risco ambiental”, publicado em Torres et al. (2000). Nesse ínterim, em março de 1998, a revista Proposta, da Fase, publicara o artigo “Cultura e desigualdade, o tema raça nos movimentos feministas e de justiça ambiental”, de Arlete Maria da Silva Alves, hoje professora de Economia na Universidade Federal de Uberlândia, que fizera doutorado em Development Studies pela University of Wisconsin em 1996. Na ocasião, a autora citava um texto de Epstein, publicado na revista Capitalism, Nature and Socialism, de 1997, sobre a racialização das lutas contra o lixo tóxico nos Estados Unidos.

9 Esse mapa está reproduzido na p.21 do livro O que é justiça ambiental (Acselrad et al., 2008b).

10 O seminário foi realizado por iniciativa conjunta dos Laboratórios Lacta/UFF, Ettern/UFRJ, Cesteh/Fiocruz, do projeto Brasil Sustentável e Democrático/Fase e da CNMA/CUT (cf. Herculano, 2002; Firpo de Souza Porto, 2005).

11 Exemplo de luta contra a adoção do “duplo padrão”, assim como do caráter interlocal e internacional das articulações que ela pressupõe, é a campanha que questionou a iniciativa de a Petrobras prospectar e explorar petróleo no Parque Nacional Yasuni, no Equador, declarado Reserva da Biosfera pela Unesco em 1988, além de ser território ancestral de povos indígenas da etnia Huaorani. Entendeu-se que “o desenvolvimento de atividades extrativistas por parte da Petrobras nessa área como a adoção de um duplo padrão de comportamento por parte da empresa, que no Brasil se vê impedida pela legislação em vigor de explorar em Parques Nacionais e em territórios indígenas”. “Os membros da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, articulados com as iniciativas internacionais de proteção a Yasuni e seus povos, deram início a uma campanha junto à sociedade e ao governo brasileiro. A campanha reivindicava um compromisso público por parte da Petrobras de não desenvolver atividades em territórios indígenas e em áreas de reconhecida fragilidade socioambiental como parques nacionais. […] em meio a pressões de organizações ambientalistas e de direitos humanos dentro e fora do Brasil, em setembro de 2008, a Petrobras e o governo equatoriano assinaram uma ata de entendimento para devolução do Bloco 31 ao Estado. Em entrevista a Gazeta Mercantil, um executivo da empresa afirmou que, além das complicações com a renegociação dos contratos e com o processo de caducidade, a sobreposição da área a uma reserva indígena fez com que a companhia temesse pelas complicações sociais e ambientais que poderia vir a ter” (cf. Malerba, 2009).

12 No Encontro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental de 2009, os participantes afirmaram pretender “discutir com a sociedade o que se produz, para quê e para quem se produz, e também onde e como se produz, buscando alternativas à vigente indústria de Estudos de Impacto Ambiental – EIA-RIMAs e outros esquemas mercadológicos de avaliação ambiental, procurando que seja avaliada a eqüidade ambiental dos empreendimentos por instâncias independentes do setor produtivo, garantindo o direito de escolha de comunidades: o direito de ser bem informado e de dizer ‘não'” (III Encontro a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Relatório da Plenária Final, 26.3.2009-28.9.2009, Caucaia, Ceará). A crítica metodológica e epistemológica aos procedimentos e às instituições correntes de avaliação ambiental dos empreendimentos discutida no seio da Rede Brasileira de Justiça Ambiental foi expressa no documento “Por avaliações sócio-ambientais rigorosas e responsáveis dos empreendimentos que impactam o território e as populações” (Fase – Ettern/Ippur/UFRJ, 2009).

13 Os depoimentos de trabalhadores mobilizados em lutas ambientais mostram as condições restritivas do acesso à informação e ao reconhecimento dos riscos ambientais na indústria: “Se eu não tivesse sido contaminado, ainda estaria trabalhando sem consciência nem participação no processo político, sem acesso ao conhecimento”. Entrevista com membro da Associação de Combate aos Poluentes (ACPO), em Calderoni (2006). Em relação aos riscos de acidentes, um diretor da Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq) afirma: “Nós estávamos muito bem treinados para não morrer dentro da fábrica” (Nogueira, 2005, p.102).

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Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq. Publicou recentemente, com Cecília Mello e Gustavo Bezerra, O que é justiça ambiental (Garamond, 2008). @ – hacsel{at}uol.com.br

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EcoDebate, 20/05/2010

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