Síndrome do Patinho Feio, artigo de Américo Canhoto
[EcoDebate] Escolhi uma vertente da profissão de curador no mundo das patologias complicadas; gratificante ás vezes; sofrida a maior parte do tempo – lidar com famílias e suas dificuldades patológicas ainda é quase desanimador – seres complicados fabricando seres a cada dia mais complicados; claro que isso ainda vai desembocar em perigosa e seletiva encrenca das boas – muitos belos patinhos na aparência tornam-se patinhos feios sem que o sejam.
Motivos para desânimo: nosso raciocínio, ainda está fixado apenas; na parte material da patologia; nossa preocupação com as crianças reside em doenças físicas ou genéticas; em seguir protocolos; padrões de condutas médicas; calendário de vacinas.
A educação está focada quase que exclusivamente na instrução – há pouca ou nenhuma preocupação em saber quem somos nós, e o que fazemos aqui; enfim, não há interesse em educar para a vida; queremos transformar nossa ninhada de patos, sem passar pela fase de marrecos e de gansos, em cisnes num passe de mágica.
Nosso sonho de consumo como pais e familiares da sociedade patopolense é colocar crianças no mundo que sejam vencedoras: bonitas, fortinhas (saudáveis), obedientes; e o mais importante: sem “trabalho”.
Desejamos oferecer aos nossos filhos o que a vida nos negou; os entupimos de guloseimas, tranqueiras, badulaques – e nos esquecemos do mais importante: nutri-las com disciplina, cuidados, atenção e amor – daí, nós podemos criar fortes e poderosos monstrengos sociais; sofridos marginais da sociedade (em valores e aquisições); pois, além de patinhos feios; há patos bons e patos maus.
Sou portador de um distúrbio no DNA: um radar poderoso para detectar problemas que alguns chamam de intuição – mas, que na tarefa de vida que escolhi, pouca utilidade prática possui; pois não adianta identificar problemas á vista no futuro das crianças patopolenses; é preciso que nos preparemos para resolvê-los – mas, para sobreviver e manter a integridade psicológica; pois a vida não comporta mais salvadores do mundo: problema meu, problema meu; problema seu, problema seu; dentro dessa tentativa de isenção o que é possível fazer?
– Como compartilhar com a família pata os problemas que estão por vir e as soluções na vida daquela criança possível patinho feio?
– Qual a mágica para repartir o que se percebe com pessoas que não desejam participar (patos que se acham cisnes são os piores) e outras que não têm a mínima condição?
Estou aprendendo a lidar com esse distúrbio; claro que de forma sofrida como deve ser para os idealistas mais apressados da patolândia.
Antes, algo me dizia: essa criança é “esquisita” e terá uma vida difícil como patinho feio; mas, a experiência ajuda a diferenciar uns dos outros. Esse tem tudo para tornar-se um depressivo; sofredor de pânico; exterminador do futuro; suicida, ególatra, etc.
Para que eu aprenda; confesso que ainda não entendo para que. Muitas dessas crianças que a intuição lá atrás sinalizou: problema futuro á vista; estão retornando com as encrencas antes intuídas.
Por quê? Para que?
Não teria sentido pensar que as coisas acontecem por misteriosos desígnios, apenas, porque metade da tarefa é nossa; afinal somos candidatos a humanos cisnes (que alguns chamam de anjos). A vida não é uma obra acabada, mas em andamento: construção e reconstrução. Façamos nossa parte sempre. Mas, lidar com a frustração é complicado – Segundo meu ideal de mostrar que patos podem virar cisnes; sou um profissional patológico ainda pouco eficiente – pois, das sei lá quantas mil crianças patas que atendi com o que eu costumo chamar de “doenças da alma”; sinto que ajudei apenas algumas dezenas de patinhos feios a descobrirem que no fundo todos somos belos e graciosos cisnes em potencial; basta que alguém nos ajude a descobrir.
Frustrações patológicas á parte.
Nosso bate papo de hoje é a respeito de crianças com a doença da alma que denomino (na brincadeira): Síndrome do patinho feio (baseado num conto infantil de Hans Christian Andersen).
Nada a ver com aparência; patinho feio no comportamento – claro que se juntarmos as duas coisas que o deus dos patos acuda.
ERA UMA VEZ (e continuará sendo até sei lá quando).
A mamãe pata (nada lógica ainda) escolheu o lugar ideal para fazer seu ninho (hospital) bem protegido pelo convênio, que cria um remanso seguro com belas e exóticas flores (exames), enquanto chocava os ovos (pré-natal).
Na data pré-determinada o pato parteiro (na evolução as coisas mudam) veio bicar (cesariar) os ovos e colocar o patinho, ou os, á mercê da vida.
Ansiedade a mil:
Nem sempre o patinho nascedouro corresponde ás expectativas e a mamãe pata que ainda sofre de uma doença chamada insegurança comparativa causada pelo vírus da cretinice mental, permite que a patalhada em torno (família) passe a dar palpites.
Com o coração no bico, ela procura colocar o patinho em contato com os outros, para se assegurar de que pertence á espécie e se adaptará á vida patológica (família, escola, sociedade) – um problema é que nos primeiros tempos todos se parecem; e se o filhote não cumpre com as regras básicas da natureza nessa fase; já se detecta graves encrencas.
Mas, coração de pata mãe (intuição) não se engana e alguns patinhos ela não entende por que; mas sabe que são diferentes; e para evitar a culpa de não tê-lo chocado direito; ela passa a dar-lhe atenção demais ou a quase ignorá-lo.
Claro que há patas e patas; pois algumas não sabem de quem se originou aquele ovo; outras os ovos anteriores tem origens diferentes.
Estamos falando de mães-patas diferenciadas e não deficientes.
Evidente que as mamães patas adoram mostrar sua ninhada para serem parabenizadas; mas, se algum deles foge do contexto de beleza ou de sucesso da patalhada em torno; tendem a escondê-lo; em vão; pois, a sociedade ecológica dos bichos em torno é cruel.
Nossa viu o filho da pata fulana: – Feinho né? – Parece meio bobão! – Desengonçado! – Acho que é problemático! – Parece mal de família; é bisneto do seu patoldo; lembra dele? – aquele pato doidão!
Na seqüência dos anos; de um jeito ou de outro, conscientes ou não, todos perseguiam o “diferente” ou o isolavam.
E assim o patinho feio crescia mal cuidado e desprezado.
Na família, era alvo de chacota do resto da ninhada e da patada parentela; até sua mãe que o protegia por instinto passa a tentar esconde-lo e a compará-lo sistematicamente com os outros; seu patonildo, mal chega perto dele.
Para a vizinhança ele é “o ser” o cara estranho; e usado como comparativo normótico negativo. Se não fizer isso ou aquilo vai ficar que nem o fulano!
Mas na escola da patolândia, é que o bicho pega; ninguém quer brincar com ele; a única coisa que tem mais que os outros é apelido, cada um mais cruel do que os outros. Talvez um dos bichos mais cruéis da natureza seja o patinho criado com a ração da normose.
As mestras patas, não gostam de patinhos feios em suas salas; mas, o diretor das patadas decretou que todos devem ser incluídos; o que gerou um alvoroço nas salas de aula da lagoa.
Um dia desesperado o patinho fugiu: para dentro de si mesmo. Aventurou-se num mundo estranho: sua própria intimidade.
Lá encontrou bichos estranhos: medo, insegurança, ansiedade, menos valia, e um bem lerdão: a depressão; que mais parecia um bicho preguiça. Alguns eram amedrontadores: raiva, ódio, amargura, tratou de sair logo dali; mas, alguns tinham um quê de fascínio; de vez em quando gostava de ficar junto de dona raiva; de vez em quando dona inveja também o fascinava; talvez fosse atraído pelo colorido – dona raiva quando excitada fica vermelhinha; já dona inveja fica verde.
Mesmo nesse colorido mundo de quase faz de conta; foi recebido com indiferença; como um estranho no próprio ninho; mas não foi maltratado nem ridicularizado; porém seu ego teve que brincar só, pois parecia que ninguém ligava para ele; o único que parecia mais sociável era o menos valia; mas, também era um ser esquisito cinzento, pois aparecia e desaparecia; assim do nada; mas, era sua quase única companhia.
De vez em quando ele divagava: Parece praga de urubu! Ninguém me deixa nem ser anu quanto mais pato! Todo mundo me quer tornar pato; mas não me aceitam como pato pateta! – Ah! É isso que sou: um pato pateta! – O que tem de ruim em ser um pato pateta? – Pequenos desastres são até divertidos! Ser meio destrambelhado e desengonçado é até engraçado! – Acho que se os patos normais de vez em quando se tornassem patos patetas; quem sabe o mundo da patolândia seria mais divertido e aconchegante.
Um belo dia, seu sossego foi perturbado até nesse mundo de faz de conta, pois num conluio dos que o queriam tornar um pato normal surgiu um caçador de patinhos feios; na verdade era uma caçadora, dona patapsicopedagoga, que chegou atirando teste e avaliação prá todo lado.
Escondeu-se como foi possível no seu mundo; mas não escapou dos rótulos; mas, eram mais amenos que os apelidos; achou mais divertido ser chamado de DDAH; quase autista; beirando a esquizofrenia, etc. Pior e mais doloroso era ser chamado de esquisito; bobalhão, retardado, gardenal, etc.
Conversava muito com suas penas: Pois é; a maioria dos patos que sofrem de normose; acham que os patinhos feios pensam pouco e não sofrem.
Detestava a invasão em seu mundo íntimo; ser rotulado como doente ou de comportamento doentio era um drama – mas, por outro lado talvez fosse a única forma de sentir-se amado e valorizado como nunca havia sido – Então, seria melhor dar uma de pato doido para continuar o jogo? – Sarar (tornar-se um pato normal; mesmo que perdedor; pois, não tinha vocação para competir com os outros patos) era acabar com a brincadeira?
O pior tormento na sua patológica vida, é ser obrigado a gostar de coisas chatas da escola da patolândia, e perder tempo aprendendo coisas tão sem interesse quanto sem lógica; além de treinar até a exaustão; só para fazer um tempo melhor na corrida dos patos; na briga pelos melhores lugares; na lagoa da patolândia).
Nascer com valores e interesses diferentes é crime? – Doença? Decidiu colaborar para tornar-se um pato normal (feio para os olhos dos normais sempre seria); até aceitaria tomar aquela camisa de força dos seus devaneios e ímpetos para curtir a vida do seu jeito inquieto e vivaz; acostumou-se a tomar seus remédios sem reclamar.
E os anos se passaram entre consultórios, testes e mais testes; avaliações e mais avaliações; muita coisa mudou; outras nem tanto – aprendeu a defender seu mundo íntimo; mas, sua mais freqüente companhia continuava sendo a menos valia.
Tentavam enganá-lo o tempo todo dizendo que era um belo cisne; mas, o discurso nunca combinava com a prática; com o passar do tempo aprendeu a não confiar em patos normais.
Como um ser errante, um pato de chão, perambulou por aqui e ali tentando ganhar a vida com o que sobrava na lagoa; percebeu que para sobreviver no mundo dos normais, é preciso ter valores e desejos de normose – mas, isso para ele não era tão complicado quanto abrir mão de seus desejos de extasiar-se com as coisas simples da vida.
Seu destino era aventurar-se pela vida.
Lógico que o preço a pagar era alto; pois em época de fartura social até que se virava; mas, quando chegava o inverno na vida dos normais; precisava de ajuda.
Sempre se dispunha a pagar pela ajuda recebida; mas, sua condição de pato pateta sempre trazia encrencas.
Sem muito interesse no neurótico e estressante mundo dos patos, passou a viver mais tempo no mundo dos sonhos: Nos seus; sempre via seres belíssimos parecidos com os patos; mas muito mais belos e elegantes. Nesses momentos não sabia mais se estava acordado ou sonhando. Numa dessas escapadas da realidade da patolândia; um belo dia viu-se voando; e daí em diante brotou um desejo enorme de voar, voar, voar; mesmo sem saber para onde; ousou até sacudir as asas mais fortemente; mas o medo sempre ganhava.
Numa dessas viagens insólitas, viu-se no meio de um bando daquelas aves graciosas e belas; ficou temeroso de ser ridicularizado e expulso dali como sempre havia sido em sua vida – mas, para seu espanto foi recebido como igual – Bem vindo entre nós! – Disseram com reverência. Ficou desconcertado: isso é que pode ser chamado de inclusão.
Aquela água era diferente; parecia um espelho; e ao ver-se refletido descobriu que TAMBÉM era um cisne; um belo cisne; mas, não ficou envaidecido com isso; ao contrário; pois foi forjado no sofrer do ser diferente e desenvolveu o hábito de colocar a cabeça debaixo das asas sempre que, sentia vontade de admirar-se no espelho ou sua beleza era admirada pela cisnalhada em torno; pois havia forjado uma qualidade quase patética para a maioria da sociedade patológica; chamada: humildade.
A esperança de todos os patinhos feios, futuros patos patetas, é que alguém se interesse de fato em ajudá-los verdadeiramente a descobrir que todos nós somos cisnes. Lógico que a maior responsabilidade cabe aos donos da ninhada – mas, mesmo os profissionais da patologia desta sociedade patológica, deveriam descobrir que também são cisnes.
Nossa homenagem a dois maravilhosos patos pateta: Toquinho e Vinícius de Morais – provando que ser diferente (bem acima da média) tem suas vantagens.
Pato Pateta
Toquinho
Composição: Toquinho / Vinicius de Moraes
Lá vem o pato
Pata aqui, pata acolá
La vem o pato
Para ver o que é que há
O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo
Levou um coice
Criou um galo
Comeu um pedaço
De jenipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela
Panela: Consultório de patologia comportamental – ás vezes temperado com ritalina, sertralina a gosto; e até uma pitada de gardenal para quem não sofre de preconceituose.
Diagnosticar é fácil, ajudar na cura é que são elas.
Receita? Respeito, aceitação, carinho (cafuné, abraços, beijos), amor e muita; mas, muita disciplina mesmo.
Para que os patinhos feios não continuem pagando o pato…
Américo Canhoto: Clínico Geral, médico de famílias há 30 anos. Pesquisador de saúde holística. Uso a Homeopatia e os florais de Bach. Escritor de assuntos temáticos: saúde – educação – espiritualidade. Palestrante e condutor de workshops. Coordenador do grupo ecumênico “Mãos estendidas” de SBC. Projeto voltado para o atendimento de pessoas vítimas do estresse crônico portadoras de ansiedade e medo que conduz a: depressão, angústia crônica e pânico.
* Colaboração de Américo Canhoto para o EcoDebate, 11/05/2010
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