pesquisa ecológica: Muito além do ativismo
O professor Thomas Michael Lewinsohn, coordenador do programa de Pós-Graduação em Ecologia do IB:” É importante ficar claro que não existe oposição entre preservação ambiental e qualidade de vida” (Foto: Antoninho Perri)
A pesquisa ecológica no Brasil soma pouco mais de três décadas. Nesse período, ela constituiu-se como uma das ciências que mais se desenvolveram no país. Ocorre, porém, que os estudos poderiam ter atingindo um patamar ainda mais avançado, não fossem a carência de recursos, a falta de continuidade de investimentos e até mesmo as dificuldades criadas pela legislação para a coleta de material biológico destinado aos experimentos. Esses e outros temas são analisados com profundidade e espírito crítico, na entrevista que segue, pelo doutor em ecologia Thomas Michael Lewinsohn, professor titular e coordenador do programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
De acordo com ele, que acaba de ser eleito primeiro presidente da recém-fundada Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (Abeco), a ciência ecológica brasileira ainda enfrenta muitos problemas e ameaças no que toca ao desenvolvimento e aplicação do conhecimento. Sobre as possibilidades de superação dessas adversidades, ele pontua: “Dá para ser cautelosamente otimista, mas há muitos motivos sérios para preocupação”, afirma Lewinsohn, que participa no dia 16 do simpósio “Pesquisa Ecológica Hoje – Ampliação e Aplicação do Conhecimento”. Por Manuel Alves Filho, do Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp – Qual o marco de referência da pesquisa ecológica no Brasil?
Thomas Michael Lewinsohn – A pesquisa ecológica no Brasil teve como marco de referência a criação, em 1976, dos quatro primeiros cursos de pós-graduação: na Unicamp, na UnB, na UFSCar e no Inpa, de Manaus. Temos, portanto, uma história institucional de 32 anos. É claro que existiam alguns pesquisadores em ecologia anteriormente no país, mas eram relativamente isolados. Em três décadas, a pesquisa nessa área explodiu. Dentro da América Latina, o Brasil está extremamente bem situado em relação à qualidade e quantidade de pesquisa em ecologia. Atualmente, temos mais de 30 cursos de pós-graduação em ecologia, caminhando para 40. É claro que isso tem a ver com a demanda política e social que se faz em cima desse conhecimento. Do ponto de vista de formação de pessoal, de grupos de pesquisa, de extensão para diferentes áreas científicas, a ecologia é uma das ciências que melhor se desenvolveu nas últimas décadas no país.
Vista aérea de lavoura na zona rural do município de Sinop, no Norte do Mato Grosso, região que detém um dos maiores índices de desmatamento da floresta amazônica (Foto: Fernando Donasci/Folha Imagem)
JU – Apesar desse desempenho, a pesquisa em ecologia enfrenta problemas no país, não?
Lewinsohn – Os problemas, como sempre, estão relacionados com o suporte institucional para pesquisa, que deixa a desejar, por várias razões. Primeiro, não estamos absorvendo bem todo o conjunto de pesquisadores qualificados que estão sendo formados. Num país com a extensão e a diversidade biológica do Brasil, e que tem um compromisso ambiental, é espantoso que sobre gente qualificada na praça. Isso não deveria ocorrer. Outro problema refere-se ao fato de ainda não contarmos com um suporte tão abrangente quanto seria preciso para os projetos de grande porte. A nossa experiência de fazer projetos grandes ainda está a caminho. São Paulo tem uma experiência bem-sucedida nesse sentido, com o Programa Biota-Fapesp, voltado para inventariar e reconhecer a biodiversidade do Estado. Esse modelo está sendo olhado com muito carinho por outros estados, mas a verdade é que a gente ainda não tem um suporte tão abrangente quanto precisaria para projetos de grande porte e grande duração.
JU – A questão central é o financiamento?
Lewinsohn – O problema não está apenas na questão do financiamento. O financiamento tem duas características: volume e continuidade. O Brasil até tem tido volume em alguns momentos, por meio do CNPq, Finep e convênios internacionais. Mas falta continuidade. Não dá para fazer boa pesquisa em ecologia sem continuidade. Existe hoje em dia uma demanda gigantesca para avaliarmos os efeitos das mudanças climáticas globais que estão em curso, para traçar a tendência dessas mudanças em diferentes cenários. Para isso, é preciso trabalhar com base em séries históricas, mas nós não temos dados antigos. Se compararmos com estudos feitos nos Alpes, isso dá a dimensão do nosso problema. Lá há lugares que abrigam mosteiros desde a Idade Média. Os monges anotavam dados sobre o clima, a data de começo de floração, do aninhamento dos pássaros. Você tem dados de mais de 500 anos que podem ser comparados. Nós não temos essa linha de base. Sabemos que o clima está mudando, mas mudando quanto em relação a quê? Sempre nos faltam os dados de base. A gente precisa urgentemente consolidar dados confiáveis. Mas é difícil conseguir suporte para isso. O problema é que esse trabalho não é tão bonito quanto inaugurar um equipamento de alta tecnologia. Mas é uma tarefa fundamental.
JU- Ou seja, é preciso ter mais programas de Estado do que de governo…
Lewinsohn – Mas não é só um problema da política, embora ela também tenha responsabilidade nisso. Os prazos curtos não são apenas por causa da política. Os prazos acadêmicos também são curtos. Uma tese de doutorado tem que ser feita em quatro anos. Na melhor das hipóteses você tem três anos para a obtenção de dados. É aquela velha história do Garrincha na Copa de 58, de ter que avisar os russos, não é? É preciso avisar aos organismos que a gente precisa de resultados de longo prazo, mas tem que ser no máximo em três anos… Na prática, ficamos estudando processos que mudam muito rapidamente, o que faz com que haja uma tendência de trabalhar predominantemente com plantas pequenas de ciclo rápido e animais menores. Isso faz com que tenhamos menos dados sobre processos que são mais lentos, que exigem mais tempo. E esses também são essenciais. Então, se a gente quiser fazer realmente boas projeções e bom monitoramento das áreas remanescentes de Mata Atlântica, de cerrado, de florestas na Amazônia, nós precisaremos de dados confiáveis de médio e longo prazo.
‘ O conhecimento existe, mas é subaproveitado’
JU – Como a comunidade científica tem se mobilizado para enfrentar esses problemas?
Lewinsohn – Na área da ecologia, existem dois caminhos importantes que merecem referência. Há 15 anos foi formado um fórum composto pelos coordenadores dos programas de pós-graduação em ecologia. Os membros se reúnem anualmente, trocam experiências, consolidam experiências. O fórum é reconhecido pelas agências de fomento como um interlocutor importante para traçar políticas, principalmente na área de capacitação de pessoal. Recentemente, também foi formada a Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação (Abeco). Essa entidade, para a qual fui eleito primeiro presidente, está fazendo a sua primeira campanha para arregimentar associados. A Abeco vai promover um simpósio dentro da reunião da SBPC. Nós chamamos três especialistas internacionalmente reconhecidos para falar do rigor, dos desafios e das perspectivas da pesquisa ecológica nesta entrada do século 21.
JU – O senhor pode adiantar algo sobre essas perspectivas?
Lewinsohn – O que posso antecipar é que precisamos preencher lacunas gigantescas de pesquisa. Nós precisamos de mais gente, precisamos de mais emprego para esses profissionais e precisamos de mais suporte para a pesquisa em ecologia. É claro que isso vai ser dito por qualquer cientista de qualquer área, mas é especialmente verdadeiro para a área da ecologia. A demanda institucional, social, política e econômica sobre esse conhecimento é muito grande. Mas eu queria assinalar uma contradição quanto a isso. Muitas vezes, o conhecimento existente, mas é subaproveitado. Ou seja, por um lado a gente precisa cobrir certas lacunas estratégicas de conhecimento, mas por outro lado precisamos usar melhor e ter mais reconhecimento para o conhecimento que já produzimos.
JU- Ainda há um grande desconhecimento em torno da ciência ecológica, não?
Lewinsohn – A pesquisa ecológica muitas vezes é confundida pelas pessoas e até mesmo pelos gestores públicos como filosofia de vida ou ativismo. Ou seja, ela é desconhecida no seu componente de ciência, que é tão sólido quanto o de outras áreas da biologia ou da química ou física. Em discussões politicamente delicadas e economicamente importantes, como as que envolveram os transgênicos, foram ouvidas muitas vozes, menos as dos ecólogos, justamente os que poderiam opinar sobre quais são os riscos ambientais para diferentes políticas de liberação experimental e comercial desses organismos.
JU – O senhor falou sobre a existência de lacunas nos estudos em ecologia. Poderia citar alguns exemplos?
Lewinsohn – Eu coordenei um trabalho para o Ministério do Meio Ambiente, que foi publicado em 2006, em que fizemos um balanço do estado do conhecimento da biodiversidade brasileira. Um dos resultados que apareceu claramente é que há diferenças absurdas sobre distintos biomas brasileiras. O pantanal e a caatinga são muito pouco conhecidos se comparados com a Amazônia. A Amazônia, por despertar interesse em pesquisadores brasileiros e do exterior, vem sendo relativamente bem estudada. Talvez seja o bioma mais bem conhecido depois da Mata Atlântica. Os campos sulinos, apesar dos esforços dos pesquisadores da região, são esquecidos nos grandes planos e nas grandes avaliações. Nós precisamos saber mais sobre esses biomas. Também faltam estudos de longo prazo acerca da dinâmica de ecossistemas, como eu assinalei anteriormente.
JU – Por falar em estudos de longo prazo, a degradação de alguns biomas corre em ritmo acelerado. Como isso interfere na pesquisa científica?
Lewinsohn – Há duas preocupações nesse sentido. Uma é clássica, e está relacionada com a conservação de espécies. Isso vem de longa data, mas que vem evoluindo da idéia de que é possível conservar espécies avulsamente num dado local. O que se fazia classicamente: foram criadas algumas reservas biológicas por causa de certas espécies. No Rio de Janeiro, há uma reserva criada por causa do mico-leão-dourado. Ocorre que não é possível conservar o animal sozinho. É preciso conservar o ambiente íntegro, com suas funções preservadas. Dentro disso, o mico-leão-dourado tem uma chance. Do contrário, é como criar um zoológico a céu aberto. Do ponto de vista da conservação, nós temos outra preocupação. Existem grandes biomas que estão desaparecendo sem que a gente tenha testemunhos suficientes. Nós precisaríamos formar áreas de grandes extensões para nos assegurar que a diversidade genética e biológica e os processos sistêmicos também sejam preservados. Embora, no papel, a rede de áreas protegidas no Brasil não seja tão ruim assim, na realidade ela é extremamente preocupante, pois há parques que não saíram do papel e há os que, mesmo implantados, não são adequadamente protegidos ou inseridos dentro da realidade regional.
JU – A ciência ecológica trabalha com qual conceito de sustentabilidade?
Lewinsohn – O conceito de sustentabilidade é extremamente controverso, porque ele se tornou muito mais um ícone político do que propriamente um conceito sólido. A nossa disposição é a de assentar com mais solidez a idéia de sustentabilidade, mas não existe consenso entre os cientistas ainda. Isso não quer dizer que haja ignorância. O que há são posições distintas. O grande problema é que a sustentabilidade é uma noção que não fornece um critério objetivo, automático e único. Você tem diferentes maneiras de interpretar e aplicar a idéia de sustentação de longo prazo. Do ponto de vista da ecologia, nós gostaríamos de pensar em sustentabilidade regional, incluindo a manutenção da integridade de ecossistemas, tanto os preservados quanto os explorados economicamente. Mas isso é muito difícil de construir. O critério de sustentabilidade é muito mais estrito do que aquele que passeia nas bocas dos ministros e políticos. A sustentabilidade é falada com uma ligeireza extraordinária por tomadores de decisão, sem que esteja ancorada por critérios mais estritos. A sustentabilidade aparece em tudo, desde na publicidade de condomínio até na propaganda de banco. Um problema do conceito é que todo mundo é a favor. Inclusive o Blairo Maggi, governador de Mato Grosso, considerado o maior produtor individual de soja do mundo, que diz que a sociedade tem que optar entre preservação e produção de alimentos. O que ele realmente tem em mente quando fala em sustentação, não se sabe. A sustentabilidade é um conceito que precisa ser levado mais a sério e desenvolvido com mais responsabilidade.
JU- Como anda o diálogo entre a ciência ecológica e a sociedade?
Lewinsohn – O diálogo ocorre em muitas camadas. A sociedade, da mesma forma como os tomadores de decisão, desconhece a ciência ecológica, e entende a ecologia como uma filosofia de vida ou uma escolha ativista. Isso é problemático para o pesquisador, porque também representa um desconhecimento e uma desvalorização do seu trabalho. A sociedade precisa tomar conhecimento do que a ecologia produz de saber, mas isso envolve uma mudança de imagem antes de tudo. Por exemplo: se um químico fala em nanotecnologia, não existe o risco de ele ser confundido com um ativista. Se fala que trabalha com química fina, dificilmente as pessoas vão entender isso como uma filosofia de vida ou uma posição política contra o consumismo, que é o que se associa atualmente à ecologia. Precisamos mostrar a natureza do nosso trabalho. Há um grande desconhecimento desse trabalho até mesmo entre colegas de outras áreas da ciência.
JU – Como o senhor vê as dificuldades impostas para a coleta de material biológico para a realização da pesquisa científica no país?
Lewinsohn – A coleta de material biológico para a pesquisa continua entravada. Nós continuamos tentando melhorar isso. O crescimento da preocupação com a biopirataria, associada à defesa dos direitos dos conhecimentos dos povos tradicionais, orientou as normas de legislação no Brasil, que na prática estão dificultando demais o trabalho dos biólogos, zoólogos, ecólogos etc. Foram criadas dificuldades internas que obstacularizaram nosso trabalho. A pesquisa ficou mais difícil. A situação chegou a tal ponto que eu, como brasileiro, preciso de menos autorizações para fazer trabalho de campo nos Estados Unidos do que aqui. Além disso, a preocupação exacerbada com a biopirataria também está nos isolando. Não dá para fazer pesquisa básica em ecologia de forma isolada da comunidade internacional. Existem poucos especialistas, e isso nos obriga à troca de informações e experiências. Nós temos que mandar e receber material para identificação. Quando o envio de material é visto como potencial biopirataria de recursos genéticos, isso dificulta poderosamente algo que é essencial para se fazer pesquisa de boa qualidade. Alguns grupos de pesquisa do exterior já evitam contato com grupos brasileiros porque sabem dessas dificuldades. Os ecólogos não aceitam ser tratados como biopiratas em potencial. Tem que haver sanções, inclusive para os cientistas que eventualmente descumprirem a lei, mas não se pode tratar todo mundo como suspeito. Esses entraves prejudicam o avanço do conhecimento no país e a conseqüente aplicação desse saber em beneficio do próprio país.
JU – Diante de tantos problemas e desafios, dá para ser otimista em relação ao futuro da ciência ecológica no Brasil?
Lewinsohn – Dá para ser cautelosamente otimista. Não é da natureza da ecologia ser a ciência do apocalipse. Mas há muitos motivos sérios de preocupação. Muitos problemas ou ameaças ao desenvolvimento dos estudos não estão sendo adequadamente reconhecidos no âmbito das esferas de decisão, tanto pública quanto privada. Isso obviamente não é uma preocupação somente ambiental. Ocorre também com questões sociais, de demandas básicas. É importante ficar claro que não existe oposição entre preservação ambiental e qualidade de vida. Essa é uma falsa antagonização. Toda a ecologia contemporânea é voltada para buscar maneiras inovadoras de otimizar e conciliar as necessidades de atendimento da melhora da qualidade de vida da população com a conservação adequada dos sistemas ecológicos.
JU – O senhor ministrará uma conferência durante o encontro da SBPC. Qual será o tema?
Lewinsohn – Aproveitando os 150 anos da do livro “A Origem das Espécies”, escrito por Charles Darwin, vou apresentar uma conferência sobre o tema. Mas a palestra não será sobre a teoria da evolução ou da seleção natural, mas sim sobre a ecologia de Darwin. É importante chamar a atenção sobre esse aspecto, porque a maioria das pessoas, inclusive cientistas de outras áreas, não sabe da importância que Darwin teve na formação da ciência ecológica moderna. O livro é um marco de referência para muitas das idéias que vieram a ser desenvolvidas ao longo do século 20, e que até hoje continuam presentes como questões fundadoras básicas. A conferência pretende chamar a atenção para a importância que Darwin tem como um dos fundadores da ciência ecológica, além de ser a figura mais marcante no desenvolvimento da teoria da evolução e seleção natural.
Jornal da Unicamp, Edição Temática 402 – 14 de julho a 2 de agosto de 2008
[EcoDebate, 17/07/2008]