‘Não se pode lutar contra a pobreza sem preservar a biodiversidade’. Entrevista especial com Julia Marton-Lefèvre
“É essencial assegurar que os mercados trabalhem em favor da biodiversidade. É preciso dar aos serviços que a natureza nos fornece um valor econômico, para assim incitar a se preservar e restaurar os ecossistemas e penalizar aqueles que engendram desgaste sobre o meio ambiente. O pagamento dos serviços ecossistêmicos pode revolucionar os modos de produção e de consumo. É necessário contabilizar o valor da natureza na renda nacional, para melhorar a medida tradicional do PIB como indicador de progresso econômico”. A opinião é de Julia Marton-Lefèvre, diretora-geral da União Internacional pela Conservação da Natureza (UICN). Na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, ela faz um alerta: “a taxa de extinção atual é mil vezes mais rápida do que seria em estado natural, sem intervenção humana. Portanto, o tempo urge, e a extinção das espécies é irreversível”.
Julia Marton-Lefèvre é diretora-geral da União Internacional pela Conservação da Natureza (UICN), que reúne governos, ONGs e cientistas em uma parceria única no mundo com mais de 1000 membros. Já foi reitora da Universidade da Paz, diretora executiva do LEAD (Leadership for Environment and Development International) e diretora executiva do Conselho Internacional para a Ciência (ICSU). É coautora de vários livros e artigos. Em 1999, recebeu o Prêmio AAAS para a Cooperação Internacional em Ciência. É membro da Sociedade Real Geográfica do Reino Unido. Estudou História, Ecologia e Planejamento Ambiental nos Estados Unidos e na França e nasceu na Hungria.
Confira a entrevista.
IHU On-Line- Em que sentido a biodiversidade interfere no bem-estar das sociedades humanas e de suas economias?
Julia Marton-Lefèvre – A biodiversidade constitui a base de toda a vida sobre a Terra. Ela é crucial para o bom funcionamento dos ecossistemas que nos fornecem bens e serviços sem os quais não poderíamos viver. Mais da metade dos habitantes do planeta vivem nas cidades. Somos numerosos ao comprarmos nossos alimentos no supermercado, ao abrir a torneira para obter água, ao comprar nossos medicamentos na farmácia e nossos móveis nos centros comerciais. Mas, é preciso não esquecer que o oxigênio, os alimentos, a água doce, os medicamentos, o abrigo, a proteção contra as tempestades e as inundações, um clima estável, bem como os lazeres, saíram da natureza e de ecossistemas sadios. A natureza continua sendo a fonte fundamental de tudo aquilo que os seres humanos necessitam e desejam para viver e expandir-se. As abelhas polinizam nossas sementes, os oceanos nos oferecem seus peixes, as florestas purificam a água que bebemos. Chamamos isso de serviços ecossistêmicos. Ecossistemas sadios são, pois, a base de nossa vida diária sobre a Terra, nosso único lar.
IHU On-Line – Quais as principais metas e desafios da União Internacional pela Conservação da Natureza?
Julia Marton-Lefèvre – Hoje o desafio é preservar as condições específicas de nosso planeta, resultado de milhões de anos de evolução natural dos animais, das plantas e de seus habitats, que nos permitem viver e expandir-nos. Como podemos equilibrar as necessidades dos povos e as necessidades do planeta que nos abriga? O desenvolvimento humano, econômico e social deve continuar a fim de reduzir a pobreza e melhorar o bem-estar dos povos. A UICN quer assegurar que as melhores decisões sejam tomadas, fundadas sobre uma boa ciência em lugar de dogmas políticos, tudo implicando na grande diversidade das pessoas e das organizações de nossas sociedades. Durante sessenta anos, a UICN guiou o desenvolvimento da ciência da conservação e do conhecimento e reuniu os governos, as ONGs, os cientistas, as sociedades e as organizações comunitárias para ajudar o mundo a melhor conservar e a tomar as melhores decisões desenvolvimentistas. Nossa missão é de influenciar, de encorajar e de ajudar as sociedades a conservar a integridade e a diversidade da natureza e de assegurar que os recursos naturais sejam utilizados de maneira equitativa e durável. Em particular, dois objetivos principais para este ano serão de adotar novos objetivos internacionais para reduzir a perda da biodiversidade, e fazer com que as soluções “naturais” para as mudanças climáticas sejam integradas no futuro acordo sobre o clima. 2010 é o ano internacional da biodiversidade.
Infelizmente, o objetivo de reduzir a taxa de perda da biodiversidade até 2010, que os estados tinham fixado, não será atingida. Novos objetivos mais concretos, mais claros e ambiciosos devem ser adotados. A UICN conclama os governos a adotarem as medidas necessárias para frear a perda da biodiversidade até 2020, para que a biodiversidade possa ser conservada e restaurada até o horizonte de 2050. O impacto das mudanças climáticas sobre o meio ambiente, a biodiversidade, a saúde e a segurança dos seres humanos se tornarão sempre mais graves se as emissões de gás de efeito estufa não forem imediatamente reduzidas. No entanto, a natureza também está em condições de nos fornecer utensílios poderosos para lutar contra a mudança climática. Esses utensílios são rentáveis, duráveis e já disponíveis. Eles podem permitir-nos agir imediatamente sem esperar que as inovações tecnológicas necessárias a um modo de vida pós-carbono estejam perfeitamente “no ponto”.
Por exemplo, a prevenção do desmatamento e a restauração das florestas permitem reduzir as emissões de gás de efeito estufa. O desmatamento representa atualmente 20% das emissões. Os oceanos são capazes de absorver mais de um quarto do dióxido de carbono que nós emitimos a cada ano.
IHU On-Line – Em que medida a produção de transgênicos interfere na biodiversidade das sementes?
Julia Marton-Lefèvre – A utilização dos organismos geneticamente modificados (OGM) como alimento ou fonte de energia se expande em muitos países. Embora os OGM possam agir potencialmente em benefício do desenvolvimento e criar meios de subsistência, devemos permanecer vigilantes quanto à suas possíveis consequências negativas para a biodiversidade, à segurança alimentar, à saúde e ao meio ambiente. O aspecto geniosamente controverso da modificação da diversidade genética poderia levar a uma perda da biodiversidade. Aí também poderiam ocorrer, como consequências, inesperadas transferências de genes entre as plantas ou a criação de ervas daninhas ou plantas invasoras que resistiriam a todo controle. Por isso, a UICN é a favor de uma moratória sobre a utilização dos OGM, até que seja demonstrado que elas são isentas de dano para a biodiversidade e a saúde humana e animal.
IHU On-Line – Como o mundo absorve o conhecimento de que nossa biodiversidade é muito rica? Como a abundância da biodiversidade implica em outros setores da sociedade, como a economia, por exemplo?
Julia Marton-Lefèvre – Como eu dizia mais acima, a natureza nos fornece a infraestrutura e os serviços de base para todas as atividades econômicas humanas. Um estudo sobre a economia dos ecossistemas e da biodiversidade (TEEB) de 2008 ressalta que os desgastes sobre a economia e o bem-estar humanos ligados à perda da biodiversidade e dos ecossistemas já são enormes, de diversos trilhões de dólares ao ano, e continuam a aumentar. Não se pode lutar eficazmente contra a pobreza em longo prazo sem preservar a biodiversidade. É essencial assegurar que os mercados trabalhem em favor da biodiversidade. É preciso dar aos serviços que a natureza nos fornece um valor econômico, para assim incitar a se preservar e restaurar os ecossistemas e penalizar aqueles que engendram desgaste sobre o meio ambiente. O pagamento dos serviços ecossistêmicos pode revolucionar os modos de produção e de consumo. É necessário contabilizar o valor da natureza na renda nacional, para melhorar a medida tradicional do PIB como indicador de progresso econômico.
IHU On-Line – Como deve ser feito o cálculo do custo, para a humanidade, provocado pelas perdas da biodiversidade?
Julia Marton-Lefèvre – O custo da perda da biodiversidade é enorme, porém não somente para a economia. O recente estudo de avaliação dos ecossistemas para o milênio (Millenium Ecosystem Assessment) concluiu que perto de 60% dos serviços fornecidos pelos ecossistemas no mundo estão degradados. Por exemplo, imensas extensões de florestas desapareceram, os estoques de peixes diminuíram dramaticamente, os rios estão poluídos e as cidades não cessam de estender-se. Quando os ambientes são deteriorados ou destruídos, são todas as espécies que aí vivem que se encontram ameaçadas, e nós fazemos parte delas. Imagine que 30% de sua família e de seus amigos estejam fortemente ameaçados de desaparecer, ou que 60% da capacidade produtiva de sua fazenda ou usina esteja degradada?
IHU On-Line – O que mais impressiona hoje na “lista vermelha” da biodiversidade?
Julia Marton-Lefèvre – A lista vermelha das espécies ameaçadas constitui o inventário mundial mais completo sobre a biodiversidade. Após mais de 40 anos, ela relaciona as espécies e nos oferece hoje uma análise alarmante da situação: sobre as 47.667 espécies estudadas em 2009, 17.291 estão ameaçadas de extinção. É mais de um quinto de todas as espécies mamíferas, das quais nós fazemos parte, bem como a metade das espécies de tartarugas, quase 40% dos peixes de água doce e um terço dos anfíbios. Mais de um quarto dos recifes de corais e de coníferas também correm o risco de desaparecer. A taxa de extinção atual é mil vezes mais rápida do que seria em estado natural, sem intervenção humana. Portanto, o tempo urge, e a extinção das espécies é irreversível.
IHU On-Line – Que exemplos de iniciativas a sociedade civil pode assumir no sentido de preservar a biodiversidade do planeta?
Julia Marton-Lefèvre – Cabe a cada um adotar gestos ecológicos no cotidiano e incitar os governos e as empresas a fazer da preservação da biodiversidade uma prioridade maior. Em nossa vida cotidiana, nós podemos:
– Reutilizar, reparar, reciclar e fazer compostagem.
– Escolher produtos recicláveis ou reciclados e produtos utilizando menos embalagem.
– Reduzir o próprio consumo de água e de eletricidade.
– Escolher, se possível, fontes de energia renováveis.
– Escolher, para os deslocamentos pessoais, os transportes coletivos, a bicicleta ou a caminhada a pé, se possível, e evitar as viagens de avião inúteis.
– Nós também podemos evitar o consumo de espécies ameaçadas, notadamente de peixes.
(Ecodebate, 12/04/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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