‘A ideia de justiça’ (L’Idée de justice), mais recente livro de Amartya Sen
Uma sociedade mais justa é possível? Esta questão está no centro dos debates públicos desde as revoluções americana e francesa. Ela representa também um dos grandes problemas da filosofia política. Um dos intelectuais mais influentes do mundo, Amartya Sen, entrega agora a sua teoria da justiça.
‘L’Idée de justice’, último livro de Amartya Sen, acaba de ser lançado na França pela Flammarion (558 p.). A resenha é de Laurent Jeanpierre e está publicada no Le Monde, 21-01-2010. A tradução é do Cepat.
O economista indiano distingue, em primeiro lugar, duas famílias de pensamentos. De Hobbes a Kant passando por Locke e Rousseau, a primeira “se concentrou sobre a busca de dispositivos sociais perfeitamente justos”. Ela culminaria com o filósofo americano John Rawls (1921-2002), a quem o livro é dedicado. Mas haveria uma outra tradição, aquela que vai de Adam Smith a Marx passando por Condorcet e John Stuart Mill, para a qual a questão da justiça só pode ser revolvida na “comparação entre os diversos modos de vida que as pessoas poderiam ter” sob o efeito de diferentes instituições.
Ora, para Sen, as hipóteses de Rawls, que redefinem a justiça como “equidade”, são criticáveis por recorrerem a “uma simplificação arbitrária e radical de uma imensa e multiforme tarefa: harmonizar o funcionamento dos princípios de justiça e o comportamento real das pessoas”. A tradição à qual Sen se conecta visa menos buscar princípios de justiça pura do que limitar na prática as “intoleráveis injustiças”: a luta contra a escravidão travada pela revolucionária inglesa Mary Wollstonecraft e outros, no século XVIII, explica ele, não se fez “na ilusão de que abolir a escravidão tornaria o mundo perfeitamente justo”. Mais amplamente, Sen invalida na filosofia política todas as condutas desviantes que visam a encontrar procedimentos ideais para obter uma diminuição das desigualdades.
Seu método decorre da seguinte constatação: existe sempre uma pluralidade de sistemas de valores e de critérios para pensar a justiça. A este respeito, ele dá um exemplo. No caso de uma flauta que é preciso dar a apenas um de três meninos. O primeiro declara merecê-la porque ele é o único que sabe tocá-la; o segundo argumenta que ele é o único a não ter brinquedo; o terceiro afirma que fabricou o objeto com suas próprias mãos. Nesse caso, a atribuição é impossível de efetuar sem contradizer ao menos um princípio de justiça. Para Sen, uma resolução não violenta deste tipo de conflito não pode vir de uma instituição, mas apenas de uma deliberação pública.
Mas ela implica também que se tenha antes excluído os critérios não pertinentes para medir a justiça. É sobre este tema em particular que a filosofia de Sen se apóia sobre a sua teoria econômica heterodoxa. Assim, Rawls novamente é criticado, mas desta vez por ter definido a justiça como distribuição equitativa dos bens. De acordo com Sen, as maneiras de utilizar esses bens e de se beneficiar deles para aumentar a sua capacidade de agir são diferentes segundo as disposições dos indivíduos e seus meios sociais.
Ter um carro, por exemplo, não constitui para todos o que Sen chama de “capacidade” [o conceito inclui a oportunidade], isto é, uma possibilidade de melhorar efetivamente sua sorte em uma direção desejada. Este carro só será convertido em liberdade concreta por uma pessoa que tem carteira de motorista e que busca a mobilidade, em uma sociedade em que a circulação é livre e onde os engarrafamentos e a poluição não a tornam mais custosa que desejável. “A vantagem de uma pessoa, escreve Sen, é julgada inferior a uma outra se ela tem menos capacidade – possibilidades reais – de realizar aquilo a que ela tem razões de atribuir valor”. As questões de justiça não podem, portanto, ser reduzidas a problemas de distribuição das riquezas, muito menos às diferenças de bem-estar percebidas.
“Pluralismo refletido”
Dessa maneira, Sen situa a igualação das liberdades concretas entre indivíduos no centro de toda busca de justiça. Contudo, ele se opõe aos filósofos liberais, que consideram que qualquer diminuição das desigualdades que cerceiam as liberdades seria ruim. Para ele, esta prioridade dada à liberdade não seria capaz de constituir um absoluto, porque a igualdade, assim como a liberdade são apreciadas e desejadas diferentemente pelos indivíduos. Segundo esse “pluralismo refletido”, o progresso da justiça é inseparável do aprofundamento da democracia, entendida como a deliberação mais ampla possível.
Cosmopolita, o autor se inspira aqui em culturas filosóficas ocidentais e orientais, e especialmente indianas. Ele propõe comparar as liberdades entre indivíduos assim como entre as sociedades, e isso contra o ponto de vista atualmente dominante daqueles que consideram que a definição da justiça é relativa a cada cultura ou que ela só pode ser exercida plenamente no quadro de uma comunidade religiosa ou nacional fechada.
A obra convida a reforçar as possibilidades democráticas reais, e primeiramente dos espaços de deliberação pública. O livro termina com uma rica reflexão sobre o isolamento sofrido pelos indivíduos, e que aparece em definitiva como o elemento mais pernicioso à justiça. Para Sen, trata-se de imaginar uma diminuição das desigualdades e um progresso da justiça social em escala mundial, sem esperar um hipotético e bem improvável Estado mundial.
Para além de uma tradução muitas vezes pesada e das numerosas repetições de uma obra mal composta, alguns leitores certamente levantarão a seguinte questão: no final de seu percurso, o autor não troca o idealismo dos teóricos da justiça por aquele dos teóricos da democracia, ao prestar muito pouca atenção às condições de acesso dos indivíduos à discussão pública? Portanto, a força desse livro está precisamente em que essas objeções podem contribuir para consolidar seu argumento sem desfazê-lo. Ele oferece um caminho mais realista que muitos outros pensadores políticos para fazer, como convidava Pascal em sua célebre fórmula, com “que o que é justo seja forte” em vez de “o que é forte seja justo”.
(Ecodebate, 05/03/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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