Transposição: deflagrada a espoleta do desmantelo, por João Suassuna
Transposição: deflagrada a espoleta do desmantelo, por João Suassuna
[EcoDebate] O Nordeste brasileiro começará a enfrentar o risco da falta de energia elétrica já a partir de 2009. Essa assertiva foi prognosticada pela Operadora Nacional do Sistema Elétrico – ONS, em matéria publicada no Diário de Pernambuco, na edição do dia 03/09 corrente, na qual se afirmava que 9% dos dois mil cenários utilizados nas simulações feitas por aquela operadora apontam para um déficit de 1% da carga local, o que significa dizer que, naquele ano, a demanda de energia elétrica estará 87 MW médios acima da oferta da região. A matéria esclarece ainda que o nível considerado seguro pela ONS é o de um percentual abaixo de 5% nas simulações realizadas.
Essa possibilidade de faltar energia no Nordeste daqui a pouco mais de três anos, apontada pela ONS, bem traduz o que estamos denunciando há cerca de uma década, ao analisarmos os usos múltiplos das águas do rio São Francisco e o seu projeto de transposição. No nosso trabalho, estamos insistentemente alertando as autoridades brasileiras para as limitações e os riscos existentes no rio, principalmente aqueles com implicações diretas na geração de energia, preocupações estas que acabaram por vir à tona, desta feita através de um dos órgãos oficiais responsáveis pelo setor.
Além do mais, esse quadro preocupante da hidrologia do rio, que culminou, inclusive, com a necessidade de se racionar energia no ano de 2001, será agravado pelo recente pacto de sustentabilidade firmado entre o governo federal e os governadores dos estados que irão receber as águas da transposição (PE, PB, RN e CE), tendo Pernambuco – estado em situação diferenciada dos demais por ser, ao mesmo tempo, exportador e receptor das águas do São Francisco – reivindicado um maior quinhão, por entender que não deveria exercer apenas a função de aqueduto ou de “passagem” das águas do São Francisco em seu território para o abastecimento dos estados receptores. Apesar de sempre ter-se mostrado avesso às discussões necessárias a um projeto dessa magnitude, o estado de Pernambuco, encaminhou no mês de maio passado, após a oficialização do projeto pelo governo federal, uma proposta ao Ministério da Integração, reivindicando volumes para o abastecimento de sua população, bem como para o desenvolvimento do agro-negócio, proposta esta que irá resultar no comprometimento de mais 19 m³/s do rio, volume que deverá ser somado àquele de 26 m³/s anteriormente estabelecido no projeto. Portanto, as outorgas já estabelecidas serão insuficientes para satisfazer as novas necessidades do projeto, situação essa que irá obrigar os dirigentes a novas rodadas de negociações, para a determinação das outorgas definitivas. Acerca dessas questões, escrevemos um artigo em abril de 2000 intitulado A gerência da torneira (http://www.aguaonline.com.br/edicoes_antigas/3-edicao/), no qual denunciávamos os riscos da exploração descontrolada das águas do rio São Francisco, por motivo de ingerências políticas. Infelizmente, essas previsões estão-se tornando realidade no nosso estado natal.
A proposta pernambucana fundamentou-se na substituição do Eixo Norte pelo Canal do Sertão, o qual irá demandar do rio São Francisco um volume de cerca de 13 m³/s, prevendo-se, para tanto, a adução das águas na altura da represa de Sobradinho para o benefício de todo o extremo-oeste pernambucano, onde estão localizados os melhores solos do estado. Nessa negociação estão previstas retiradas volumétricas suficientes para a irrigação de uma área de cerca de 150 mil ha de solos férteis. O governo está propondo também a adução extra de 5 m³/s para o abastecimento do açude de Entremontes, localizado no alto sertão do estado, para o qual, na proposta original do projeto, estava prevista uma adução da ordem de 10 m³/s. No Eixo Leste, o governo propôs a criação do Ramal do Agreste com uma vazão de 1 m³/s, para o abastecimento dos municípios que fazem parte da bacia do rio Ipojuca, com origem no município de Arcoverde e destino final no município de Gravatá, portanto fora dos limites da bacia hidrográfica do Velho Chico. A nova proposta do governo Pernambucano equivale a um adicional de 19 m³/s à proposta original do projeto de 26 m³/s, o que irá significar a necessidade de reformulação das outorgas, no total de 45 m³/s.
O fato curioso é que no mês de maio passado, alegando aumento nos custos do projeto em cerca de 15% (R$ 675 milhões), conforme amplamente publicado na mídia pernambucana, o Ministério da Integração relutou na aceitação dessa proposta. Posteriormente, com o agravamento da crise política em todo país e com a ameaça real do governo de Pernambuco em não assinar o pacto de sustentabilidade necessário à concessão das outorgas pela Agência Nacional das Águas (ANA), o Ministério da Integração não só se dobrou às exigências do governo pernambucano, como confirmou a construção dos dois eixos anteriormente previstos no projeto (os eixos Norte e Leste). Desse modo, a proposta atual da transposição do rio São Francisco consta de um Eixo Oeste (Canal do Sertão), um Eixo Norte, com os adicionais volumétricos para o açude Entremontes e um Eixo Leste, no qual será construído o Ramal do Agreste. O grave de tudo isso é que as recentes modificações impostas ao projeto pelo estado de Pernambuco irão onerar agora o seu orçamento inicial em cerca de R$ 1 bilhão.
Com a participação de Pernambuco e a nova estrutura físico-financeira imposta ao projeto, é possível prognosticar o agravamento da situação hidrológica do rio, inclusive com possibilidade de colapso nos fornecimentos volumétricos futuros. Essa situação de debilidade hídrica no São Francisco é fácil de entender, tendo em vista a baixa vazão alocável existente no rio, de cerca de 25 m³/s, para o atendimento de um projeto que irá requerer uma vazão média de 65 m³/s e uma vazão máxima de 127 m³/s. Esses dados foram confirmados por técnicos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – http://www.sbpcpe.org/docs/SBPC_Transposicao_Final.doc – reunidos na cidade do Recife, em agosto de 2004, para tratar de questões atinentes à transferência de águas entre grandes bacias hidrográficas. O diferencial volumétrico necessário para se alcançar a vazão média de 65 m³/s requerida pelo projeto será obtido através da represa de Sobradinho, quando esta dispuser de 94% do seu volume útil preenchido, ou seja, quando estiver praticamente cheia. De acordo com os hidrólogos da SBPC, essa aproximação volumétrica só será possível em 40% dos anos, pois a tendência da represa de Sobradinho, desde a época de sua construção, é de encher 4 vezes a cada 10 anos. Portanto, é um projeto demasiadamente caro (são cerca de R$ 4,5 bilhões e mais o adicional de R$ 1 bilhão se considerada a proposta de Pernambuco) para funcionar, em sua plenitude, apenas em 40% dos anos.
No cenário acima descrito, a inclusão da proposta do governo de Pernambuco usando as águas de um rio que já não dispõe dos volumes mínimos necessários para o atendimento das demandas previstas no projeto original, somada ainda à ameaça real de faltar energia em 2009, é no mínimo um ato inconseqüente. Caso o governo federal venha a implementá-la da forma pretendida, causará o caos, pois estará deflagrando a espoleta do desmantelo, com enormes possibilidades de o Nordeste voltar a conviver com o fantasma dos feriadões, dos racionamentos e dos apagões. É viver para crer.
Finalmente, preocupa-nos o desgaste político vivido pelo governo federal com a atual crise existente no país e atestado pelas pesquisas de opinião pública, o qual poderá resultar na possibilidade de o presidente Lula não vir a ser reconduzido ao comando da nação em 2007. Havendo essa possibilidade concreta, existirá um tempo extremamente exíguo (cerca de 1 ano e meio) para a instalação da infra-estrutura do projeto necessária ao abastecimento dos estados receptores com águas do rio São Francisco. Nesse sentido, o estado de Pernambuco será o maior beneficiário do projeto, pois qualquer que seja a atividade realizada nesse período – construção de canais, aquedutos, represas, adutoras, etc -, tudo estará, necessariamente, nos limites do território pernambucano.
Apesar da nossa indignação pelo tratamento inadequado dispensado pelas autoridades ao Velho Chico e diante de todas as evidências de que o projeto está sendo imposto goela abaixo da população nordestina, não deixamos de reconhecer, embora não a aprovemos, a matreirice política do governador de Pernambuco na condução das negociações junto ao governo federal.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
(ED) in www.ecodebate.com.br, 30/09/2005