hidrelétricas no rio Madeira: Desmanche do licenciamento e a terceirização de seu caráter estruturante, artigo de Luiz Fernando Novoa Garzon
[IBASE] O financiamento do projeto das usinas hidrelétricas no rio Madeira segue o padrão cunhado pelo Banco Mundial de “gestão empresarial” do Estado, com objetivo de que o mercado de capitais impulsione mais investimentos em infra-estrutura, em particular no setor elétrico. Compreendem essa nova forma de gestão:
a) estatais dedicadas a tornar sustentáveis os investimentos em capital fixo e reduzir o tempo de giro do capital, aumentando o lucro do setor privado;
b) reforma do sistema financeiro, tendo em vista as “técnicas inovadoras de financiamento”, como as sociedades de propósito específico (SPE), que captam recursos com a antecipação de rendimentos e ativos, o que pressupõe um rigoroso enquadramento dos custos, em especial os regulatórios.
A SPE formada pelo consórcio vencedor do leilão da UHE Santo Antonio, o consórcio Madeira Energia, é formada por Odebrecht Investimentos (17,6%), Construtora Norberto Odebrecht (1%), Andrade Gutierrez (12,4%), Cemig GT (10%), Furnas (39%) e Fundo de Investimentos em Participações Amazônia Energia – dos bancos Santander e Banif (20%).
O Consórcio Energia Sustentável do Brasil, SPE vencedora do leilão de Jirau, que mudou arbitrariamente o projeto e o local de instalação, é formado por Suez Energy (50,1%), Camargo Correia (9,9%), Eletrosul e Chesf (20% cada).
Essas SPEs poderão ter do BNDES até 85% dos itens financiáveis, com o limite de 75% do investimento total. Metade desse financiamento será concedido diretamente pelo banco e 50% em recursos repassados pela rede de agentes financeiros credenciada.
No modelo de project finance, é a performance do projeto que determina a viabilidade financeira, daí sua inadequação em se tratando de grandes projetos de infra-estrutura que têm profundos efeitos remodeladores de nossa economia e território. O retorno financeiro garantido do projeto é o que importa, suas repercussões para o desenvolvimento do país ou região seriam apenas “efeitos colaterais desejáveis”.
A receita futura do Complexo Madeira (direitos de receber em fluxos de energia) seria transformada em recebíveis antecipadamente. A amortização dos juros e do principal pode começar antes mesmo da operação, desde que todos os riscos estejam, desde o começo, identificados, compartilhados, geridos e mitigados devidamente. Haveria, então, um compromisso de todos os atores envolvidos (nesse caso, especialmente o BNDES e o governo) em “administrar” os riscos previamente. De antemão, isso já significa uma postura defensiva diante dos custos sociais e ambientais e de seus imponderáveis. Essa postura se sobrepõe ao que já vimos durante a fase da viabilização/licenciamento prévio do projeto.
Mais do mesmo: tudo o que afete a potencial alta taxa de retorno do projeto será exorcizado e excomungado pelos setores já comprometidos com esse nível de “resultados”. A resposta diuturna será o encaixotamento de todos os custos e riscos (nas subseqüentes fases de implementação do projeto) dentro dos parâmetros de rentabilidade já acordados. O Madeira é teste definitivo para provar a “viabilidade” dos investimentos privados em projetos de infra-estrutura de grande vulto. Por isso, o preço de ser “modelo”, “cobaia”, “porta de entrada” será a certificação das incertezas, o intercâmbio das precauções sociais e ambientais pelas financeiras.
Nos leilões de Santo Antonio e Jirau, foi a margem potencial de lucro no mercado livre, hoje oferecendo o MW/h a R$ 140, que definiu o valor oferecido ao mercado cativo (R$ 87,78 e R$ 71,40, respectivamente). Também entram nessa conta a antecipação da operação das usinas e a conseqüente flexibilização da regulamentação setorial, para que se obtenha o máximo aproveitamento no mais curto espaço de tempo.
O desmanche do licenciamento das Usinas do Madeira – desde o Estudo e o Relatório de Impactos Ambientais (EIA-Rima), passando pelos estudos complementares, aprovados sem complementação efetiva de dados novos, por um Ibama decapitado, até o anúncio da mudança de localização da Usina de Jirau pelo Grupo Suez – demonstrou ser condição indispensável para a expansão da geração hidrelétrica a serviço do setor eletrointensivo e dos consórcios geradores, em grande parte controlados por transnacionais.
Luiz Fernando Novoa Garzon – Sociólogo, é professor da Universidade Federal de Rondônia e membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e da Rede Brasileira para Integração dos Povos. ( l.novoa@uol.com.br)
Artigo originalmente publicado pelo IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas