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Artigo

TRANSPOSIÇÃO DO ATRASO, por João Abner Guimarães Jr

Esperança de inúmeras gerações de nordestino alimentada por muitos anos de
badalação da propaganda oficial, a Transposição do Rio São Francisco
encontra-se em vias de ser viabilizada, pelo menos o início da sua
construção, após uma grande batalha travada entre o Governo e os opositores
da Bacia do Rio São Francisco, que se intensificou no último ano.

Lobby da Transposição

A experiência recente no acompanhamento da condução por parte do Governo do
Projeto de Transposição no Brasil, a recorrência do tema com força
crescente, mesmo num ambiente de avanços democráticos, mostra a fragilidade
do estado brasileiro e de suas instituições frente aos interesses
coorporativos dos lobbies do poder econômico incrustados no meio político e
na infra-estrutura do Estado.

A defesa do projeto é capitaneada por uma forte articulação
político-empresarial, envolvendo os governos e as bancadas dos estados do
nordeste setentrional (CE, PE, PB e RN) que, como um vírus cuja cepa mais
recente, contaminou o Estado Brasileiro no governo Itamar Franco e, cada vez
mais forte, replicou no Governo FHC e, por último, no Governo Lula
envolvendo, agora, diretamente o próprio Presidente na defesa enfática do
projeto.

Discurso Demagógico

No início do mês de setembro, em Angicos (RN), o presidente Lula acusou os
críticos da transposição do rio São Francisco – principal e um dos poucos
projeto de destaque do seu governo – de egoísmo e insensibilidade com a
problemática da secas na Região Nordeste. Disse o Presidente: “só pode ser
contra quem tem água Perrier – cara água mineral francesa – na sua
geladeira, só pode ser contra quem nunca carregou uma lata de água de 20
litros na cabeça por seis ou oito léguas”.

Em relação ao tema, o Presidente reproduz a estratégia de que a melhor
defesa é o ataque, fugindo, dessa forma, de responder aos questionamentos
que associam o projeto com a velha indústria das secas na região.

Presente de Grego

Para os críticos, o projeto de R$ 4,5 bilhões, que deverá comprometer grande
parte dos recursos públicos em muitos anos no NE, no mínimo não deve ser
considerado prioritário porque vai manter o quadro da seca inalterado. As
águas desviadas vão passar distante da grande maioria da população rural do
sertão atingida pela seca, e, em contrapartida, vão irrigar em condições
economicamente desfavoráveis regiões onde já se encontram os maiores
reservatórios.

Hoje, no Nordeste, não se cobra pela água bruta. A realidade atual é que os
custos da água para os usuários dizem respeito apenas ao bombeamento da
fonte de suprimento até a área agrícola.

Com a transposição, ao contrário, vai se pagar muito caro pelo uso da água
transposta. O custo da água será, no mínimo, 5 a 6 vezes maior do que os
valores atualmente praticados na Região. Esse fato deverá restringir
bastante a inserção dos produtos hidro-agrícolas das bacias receptoras no
mercado globalizado, atual e futuro, extremamente competitivo. Nesse
sentido, é um projeto economicamente inviável, um verdadeiro “presente de
grego” para a população dos estados receptores.

Conta da Transposição

Para viabilizá-lo, os estudos econômicos contratados pelo Governo sugerem a
prática de um subsídio cruzado, politicamente insustentável. Está previsto
que 85% da receita do projeto deverão ser gerados pelos consumidores de água
situados no meio urbano das grandes cidades da Região Nordeste Setentrional,
que na atualidade não precisam e já subsidiam o abastecimento hídrico humano
do interior.

O modelo de gestão do sistema proposto prevê que a operação seja executada
por uma concessionária que entregará água para os estados. Os governos, por
seu turno, pagarão por essa água no mínimo R$ 100 milhões, mesmo que não
seja necessário aumentar a oferta local desse insumo com vistas a atender
prováveis necessidades.

Contramão da História

A transposição, por ser uma obra muito atrasada vai à contramão das
políticas públicas que vinham sendo desenvolvidas na Região nos últimos
anos, estimuladas por organismos internacionais, tendo como alvo o
desenvolvimento sustentável, a partir da democratização do acesso à água e
da gestão participativa dos recursos hídricos. Ao contrário, com o Projeto
cria-se uma dependência da região com a água do Rio São Francisco, um
recursos natural escasso, caro e conflitante.

O semi-árido nordestino vai pagar um alto preço por essa obra. Durante
muitos anos a obra vai consumir boa parte dos recursos públicos que viriam
para a região e paralisar a ação do Estado, reproduzindo, dessa forma em
maior escala, a nefasta indústria das secas no NE.

Transposição para o RN

A questão do Rio Grande do Norte é emblemática. O projeto – uma unanimidade
da classe política do Estado – teve recentemente o seu rateio de água
contratada ao Governo Federal pelo Governo do Estado, no qual consta uma
vazão disponibilizada em caráter permanente inicialmente de apenas 1,85
m³/s até 2010, sendo reduzido para 1,60 m³/s em 2025.

A água terá que ser repartida entre as bacias do Piranhas-Açu e
Apodí-Mossoró e será de quantidade inexpressiva levando-se em consideração a
disponibilidade local, 15 vezes maior.

Vale salientar que o rio Piranhas-Açu, no seu trecho do RN, encontra-se
perenizado há várias décadas a partir da barragem de Coremas-Mãe d’Água na
Paraíba e recentemente um acordo de integração celebrado pela ANA e os
estados do RN e PB assegurou uma vazão mínima de 1,5 m³/s na entrada do RN,
equivalente a vazão transposta.

Portanto, a transposição para o RN deverá se constituir num grande
fiasco, depois de tanta expectativa. Tal como na fábula de Esopo, a montanha
rugiu, rugiu, tremeu, tremeu e pariu um rato.

João Abner Guimarães Jr
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

in Portal EcoDebate, www.ecodebate.com.br , 06/10/2005