O terremoto no Haiti esmagou ainda mais os pobres do país
Porto Príncipe (Haiti) – O tremor sentido, em 20/01, na capital do Haiti, que teve o seu epicentro ao sul do país, causou a queda dos escombros no o bairro de Bel Air, região central da capital, uma das áreas mais atingidas na semana passada. A população revira os escombros atrás de objetos que possam ser vendidos Foto: Marcello Casal Jr/ABr
O terremoto esmaga os pobres – Depois do terremoto, os habitantes de Cité Soleil carregaram seus mortos até uma avenida de outra área menos miserável da já miserável Porto Príncipe, porque sabiam que ninguém entraria em seu bairro para levá-los.
As consequências de um terremoto de magnitude 7 na escala Richter em uma cidade de barracos são as esperadas: muitos casebres desmoronaram, mas muitos outros se mantiveram surpreendentemente de pé, de modo que a rua principal (por assim dizer) de Cité Soleil mantém algo de seu perfil de sempre: lojas pequenas e fechadas, moradias de 3 metros quadrados, centenas de pessoas sem fazer nada, um córrego imundo e crianças seminuas brincando com meia garrafa de plástico que empurram como se fosse um automóvel de corrida… Reportagem de Antonio Jiménez Barca, no El País.
Mas os barracos ficaram tão rachados que os que sobrevivem ali preferem dormir no chão, ao lado de um monte de lixo e do rio citado, do que dentro daquela que até terça-feira passada foi sua casa. Por outro lado, em muitas das construções, inteiras por fora, desmoronou o telhado de papelão ou de amianto, expulsando seus antigos habitantes. Além disso, o brutal abalo econômico e social que sofreu a cidade inteira se alimenta com os últimos da fila.
Bazile Pludic é um desses últimos: trabalhava, quando podia, carregando fardos em uma fábrica de madeira que fechou definitivamente depois da hecatombe de terça-feira. Pludic confessou na segunda-feira às 2 da tarde que não sabia o que ele e sua mulher comeriam durante o dia todo, e que tinha fome.
“Tenho fome”, repetiu em voz alta como para que acreditassem de verdade. Na janelinha de um barraco próximo apareceu o rosto de uma mulher mais velha, desdentada e suja, que acrescentou: “Todo mundo aqui tem fome, homem”.
Virá algum tipo de ajuda humanitária hoje?
Alguém responde que na praça principal (por assim dizer) desse povoado todas as manhãs chega um caminhão com comida. Será francês? Ou russo? Espanhol? Da ONU? Será dos fuzileiros-navais americanos?
A praça está longe. Chega-se a ela depois de caminhar entre miséria, casas retorcidas, lojas de nomes estranhos como “É Minha Opinião” e pessoas que apesar de tudo sorriem à passagem do estrangeiro, antes de lhe pedir água, dinheiro ou algo para comer. A praça é uma velha quadra de basquete tomada pelos mais miseráveis da já miserável Cité Soleil: pessoas desse bairro que ficaram sem casa, não têm família em outro lugar e vivem literalmente embaixo de um lençol pendurado em um pau, para não tomar sol.
Logo se adivinha ao longe o famoso caminhão da manhã, o da comida. É velho e pequeno. Evidentemente, não é dos “marines”. Não parece francês, nem espanhol, nem mesmo russo. É uma camionete verde com 20 anos de estrada, um homem pequeno e suado ao volante e três jovens na traseira. Pintadas na porta há algumas letras: “Missão de caridade La Koulade”. O do volante é o padre Cyril e os de trás, três rapazes do bairro que ajudam a descarregar.
“São os de sempre. Eles sempre nos ajudam, há muito tempo, desde antes do terremoto. Dos estrangeiros não veio ninguém ainda”, diz uma mulher.
O padre Cyril explica as regras: só um copo de farinha por cabeça.
“Não é suficiente, eu sei. Você que é jornalista e estrangeiro não pode fazer algo? Estou lhe dizendo que isto não é suficiente.”
Um rapaz sobe em uma espécie de palco em ruínas com um saco e começa a distribuir as diminutas quantidades de comida para as dezenas de pessoas que fazem fila com seu copo na mão. Um helicóptero impõe silêncio ao passar roncando muito perto. Vem do aeroporto, onde se supõe que a esta altura já estejam desembarcando os esperados fuzileiros-navais, que toda a cidade aguarda como reparadores de tudo: diante de um edifício próximo derrubado pelo terremoto alguém colocou um cartaz em inglês: “Bem-vindos, soldados americanos. Precisamos de ajuda: neste edifício há cadáveres dentro”.
Mas enquanto chegam ou não, em Cité Soleil o padre Cyril termina na praça e monta na camionete para ir a outra esquina com outro saco de farinha insuficiente para famintos com copos vazios.
Em direção contrária, duas pessoas levam em um carrinho uma garota com a perna quebrada, que se protege do sol com uma sombrinha colorida. Pouco depois aparecem quatro pessoas levando dentro de um edredom sujo uma menina. Vêm do hospital, onde ninguém as atendeu por falta de médicos. Ninguém chega a Cité Soleil: nem os removedores de cadáveres, nem as ambulâncias, nem os caminhões de comida estrangeira.
Em uma rua há o esqueleto de uma escola de dois andares. As paredes desmoronaram. Mas as carteiras e a lousa se mantêm de pé, como se encontravam no dia do terremoto. Na lousa há uma data e uma frase milagrosamente intactas: “Terça-feira, 13 de janeiro. Os deuses castigam os mentirosos”.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Reportagem [El seísmo machaca a los pobres] do El País, no UOL Notícias.
EcoDebate, 22/01/2010
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta utilizar o formulário abaixo. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
Participe do grupo Boletim diário EcoDebate |
Visitar este grupo |
Fechado para comentários.