Queimadas: o lado obscuro do agronegócio no Brasil, por Maria Cecília Guimarães e Roberta Lessa
Narrativa de viagem feita de Minas Gerais ao Mato Grosso. Relata a devastação ambiental devida à pratica de monoculturas em latinfúndios.
Dias quentes no coração do Brasil. Setembro já chega ao fim. O céu não molha a terra e o fogo avança sobre a mata, com o sopro do vento que passa. Sobrevoando o Tocantins, é possível ver, à noite, colunas imensas de chamas a devorar, insaciáveis, o que ainda resta de verde-esperança. Porém, é preciso seguir viagem. Ver de perto o que o coração sente de longe.
Começamos a cortar o mapa. Pelas estradas, muita devastação. A balsa, então, nos atravessa para o Pará. O Araguaia, azul de outros tempos, está envolto numa espessa cortina de fumaça. Já é possível sentir o clamor da vida ali sufocada. O sol arde a pele e as almas. Regina, professora naquelas terras longínquas, volta para sua casa desolada: “É… hoje tá muito embaçado, mas tem dia que tá pior. Parece que a fumaça se concentra no rio.”
Do outro lado do rio, policiais fortemente armados, vigiam a fronteira do estado. Mais tarde, sabemos que tamanho arsenal existe para tentar coibir o tráfico de madeira, tão intenso naquela região.
Seguindo adiante, conseguimos perceber o tamanho da destruição. São quilômetros e quilômetros e mais quilômetros de terra seca, pronta pra receber uma plantação qualquer. A fumaça das queimadas se mistura à poeira de estradas e de vidas esquecidas.
A soja devasta a floresta
Quase na divisa com o Mato Grosso, vemos no meio de uma extensa planície, um galpão imenso da empresa alimentícia Bunge. Descobrimos então que boa parte desse território devastado existe para produzir soja, e soja possivelmente transgênica, isto é, geneticamente modificada. Dizemos possivelmente transgênica porque, segundo o Greenpeace, a Bunge já afirmou mais de uma vez que pode estar utilizando soja transgênica na fabricação de seus óleos, margarinas e maioneses.
A empresa não informa, nas embalagens, a utilização de transgênicos, como regulamenta o decreto de 2003, mesmo ano em que foi liberado, por medida provisória, o plantio de soja transgênica no Brasil. Descumpre o decreto e desrespeita o consumidor brasileiro já que na Europa ela garante soja livre de transgênicos. O pior é que a falta de transparência não pode ser remediada por testes nos produtos, pois o DNA do gene transgênico é destruído no processo de fabricação.
É possível ver no entorno das instalações da empresa, como a soja devasta o verde da região. O Greenpeace afirma que a “Bunge tem sido uma grande cúmplice do avanço da fronteira da soja no Brasil, colaborando na destruição de áreas de floresta amazônica e cerrado.”
Em nome do Progresso
O próprio governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, é o maior produtor de soja do mundo e o responsável por 48% do total desmatado em toda a Amazônia legal, tendo dito em seu discurso de posse que nada iria deter o progresso do estado através do agronegócio. A política forte de incentivo ao agronegócio em todo o país tem se tornado uma grande ameaça a sobrevivência de pequenos agricultores e de comunidades indígenas no interior do país, além de proporcionar a devastação de imensas porções de mata nativa, matando dezenas de espécies vegetais e animais.
Monocultura destrói nascentes e vidas
Chegamos a cidade de Confresa-MT. Pegamos a estrada que leva a sede da Gameleira, uma usina de beneficiamento de cana-de-açúcar da região. Só a janela nos protege da fumaça e do mau-cheiro. É o resíduo da cana, conhecido como vinhoto, um líquido espesso e escuro que se mistura às águas, poluindo o canal aonde alguns animais se alimentam e matam a sede. Imensos encanamentos puxam água de córregos da região para irrigar alguns hectares de plantação.
Mais à frente, uma nascente agoniza. É um braço do rio Gameleira que está sendo assoreado pela estrada que o corta. O rio que dá nome à empresa é o mesmo que é sacrificado por sua ambição. E de sinais de ambição se reveste a estrada. São muitos os caminhos nessa região que levam a instalações de empresas e grandes latifúndios.
Desenvolvimento Insustentável
É muita fumaça, com tanta seca neste sertão. Nem mesmo os trechos de matas que, por lei, deviam ser preservados escapam às queimadas. Mais triste é pensar que toda essa mata transformada em carvão é energia gerada para alimentar o mercado mais do que a bocas famintas. Sim, porque já em 1996, Vicente Verdú em El crimen capital, publicado no Diário El País, denunciava que apenas 2% da produção mundial de grãos bastariam para alimentar 1 bilhão de famintos condenados a morrerem de fome por não terem dinheiro no bolso. Qualquer projeto de desenvolvimento sustentável soa como ironia quando tudo é feito em nome do lucro. O reflorestamento e a recuperação do solo não pagam o preço do resgate de animais sacrificados, das nascentes abortadas, do aumento da temperatura, dos conflitos pela posse da terra, da perda da autonomia do pequeno agricultor, do comprometimento da qualidade de vida das populações locais, em especial crianças e idosos que tanto sofrem com o ar seco e poluído das queimadas.
Do céu se espera a chuva, uma boa chuva para saciar o solo e aliviar os efeitos das queimadas. E do céu se desesperam nuvens de agrotóxicos, derramados por aviões dos latifundiários, expulsando as pragas e os poucos agricultores mais resistentes em vender suas terras por preços atraentes. Na verdade, não contemplam muitas alternativas: ou vendem suas terras a desconhecidos que, uma vez de posse delas, revelam sua identidade de latifundiários, ou ficam ilhados no meio de uma grande monocultura. E para onde migram esses pequenos agricultores? Alguns saem em busca de outras terras, outros vão “para a rua”, como dizem por lá, isto é, mudam-se para a cidade na esperança de que aquele montante de dinheiro os sustente por toda a vida. E a esperança termina no desemprego ou na vida de assalariado. Por isso, José, sindicalista dos trabalhadores rurais da região, adverte com razão: “vai chegar um momento em que vocês vão chorar por um pedacinho de terra”.
E nós, no sudeste, sentados no nosso sofá, consumindo enlatados transgênicos, sentimo-nos tão distantes dessa terra vermelha, como se a indústria nos blindasse de todos os problemas da vida. E, ao cruzarmos com moradores de rua, perguntamos indignados mas sem muito interesse: “por que esse povo deixou suas terras para vir passar dificuldade na cidade? Assistimos extasiados as notícias de outro Brasil e, logo em seguida, adormecemos, embalados pelo ritmo da engrenagem.
(www.ecodebate.com.br) Fonte – CMI Brasil, 19/11/2005
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/11/338349.shtml