Mentira institucionalizada justifica Hidrelétrica de Belo Monte, entrevista com Oswaldo Sevá Filho
[Correio da Cidadania] Nas últimas atividades dos povos indígenas do Xingu contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte no mês de maio, o representante da Eletrobrás, Paulo Fernando Rezende, após uma apresentação em defesa da hidrelétrica na cidade de Altamira/Pará, foi cercado por vários índios, e acabou sendo atingido por um facão em seu braço direito.
A defesa do livre direito de expressão com respeito à integridade física é o que se seguiria em abundância a este ‘incidente’. Defesa obviamente justa, mas incapaz de dar conta do simbolismo do ato nem tampouco de uma complexa realidade que pode estar em jogo por trás da construção de Belo Monte.
Defendido por personalidades incontestavelmente nacionalistas, a partir de uma ótica ‘desenvolvimentista’, especialmente em sua conformação atual, este projeto carrega um série de contradições que não encontram guarida de nossos meios de comunicação, da maioria da classe política e também de intelectuais.
Para trazer à tona essas contradições, aprofundando este debate, conversamos com o professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Oswaldo Sevá Filho, organizador da obra Tenotã-Mo – Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Quais seriam os principais problemas ligados à hidrelétrica de Belo Monte, a seu ver?
Oswaldo Sevá: O projeto Belo Monte já morreu duas vezes antes: em 1989, por causa da repercussão internacional da resistência indígena ao projeto e da retirada do apoio por parte de governos estrangeiros e bancos internacionais; e em 2001, teve interrompida judicialmente a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental contratada pela Eletronorte e que estava em execução por uma fundação ligada à Universidade Federal do Pará, por decorrência de uma Ação Civil Pública. São dois problemas graves que os interessados – agora pilotados pela Eletrobrás e não mais pela Eletronorte – carregam como uma cruz a agora tentar se desvencilhar.
Outro grave problema é a institucionalização da mentira sobre o projeto, que contaminou todo o “Partido da Imprensa Golpista”, como diz o Amorim, muitos setores do governo e até mesmo da Justiça, além dos caciques políticos brancos do Pará e imediações: mentem sobre a área alagada, mentem sobre o alcance geográfico das conseqüências de barrar a Volta Grande do Xingu, mentem sobre as razões de seu projeto e sobre as razões de quem é contra… mentem até sobre os custos do investimento a realizar.
Trata-se de construir um complexo de grandes obras de engenharia, com duas grandes barragens, uma na Ilha Pimental e outra perto da vila Santo Antonio do Belo Monte, com dois grandes canais rasgados nos igarapés Gaioso e de Maria, cinco represas sobre outros igarapés, dezenas de km de diques para evitar a fuga de água para bacias vizinhas, e mais uma grande represa na calha do rio entrando pelos afluentes, subindo até a cidade de Altamira, além de centenas de km de estradas de serviço e um novo porto especial no Xingu.
Se instalarem 11.000 megawatts na Casa de Força, custaria hoje na faixa de trinta e cinco bilhões de reais, naquelas condições, considerando toda a custosa logística dos insumos e equipamentos. E teríamos que somar mais alguns bilhões se fossem resolver condignamente e completamente todos os problemas sociais e sanar os prejuízos econômicos resultantes. Ora, o investimento para tal obra vem sendo anunciado na faixa de seis bilhões!
CC: E quanto ao modo de vida dos índios da região, a usina poderá ter, realmente, algum impacto?
OS: Na região das obras acima descritas moram agricultores familiares, colonos do INCRA, fazendeiros médios e grandes, seus trabalhadores, arrendatários, todos nos municípios de Vitoria do Xingu e Altamira, nos chamados travessões da Transamazônica, mais os ribeirinhos do Xingu na Volta Grande, índios desaldeiados, muitos em área urbana, outros em colocações ribeirinhas. No total, umas vinte mil pessoas poderiam ser obrigadas a se mudar, porque seus lotes, fazendas e casas seriam cobertos pelas águas, pelas estradas da obra, pelos vários canteiros de obra, ou porque sofreriam diretamente muitos transtornos graves caso pudessem continuar onde estão, dos quais uns sessenta por cento na própria cidade de Altamira, nos bairros mais baixos, nas palafitas.
Uma Terra Indígena homologada (dos Juruna, chamada Paquissamba) ficaria desgraçada no trecho do rio que se tornaria um pedral, quase seco, entre a primeira barragem (Pimental) e a devolução da água turbinada (Belo Monte), quase cem km de um trecho monumental do Xingu, com seis cachoeiras, arquipélagos, grandes lajes de pedra, ilhas florestadas, corredeiras, sítios arqueológicos. Outra Terra indígena homologada (dos Kaiapo-Xicrin, chamada Trincheira-Bacajá) teria o seu rio Bacajá bastante afetado pelo mesmo trecho seco do Xingu. E para os moradores seria uma dificuldade inusitada, quase impossível para chegar até Altamira, e de lá voltar – o que é um movimento fundamental para a vida nas aldeias e em todas as localidades beira-rio. Nesse trecho seco, e nas suas faixas ribeirinhas, moram também agricultores, pescadores, posseiros, nos municípios de Senador José Porfírio e Anapu.
Ora, isso deveria ser respondido corretamente não por mim, que sou professor, dedicado às minhas aulas e pesquisas, e, além disso, sou um estudioso independente do capital hidrelétrico, com dificuldade de acesso aos dados do projeto. Um Estudo de Impacto Ambiental é que deveria responder a essa questão. Esse EIA deveria ser obrigatoriamente bem feito, rigoroso, com base nas experiências anteriores negativas em outras obras comparáveis, Tucuruí, Balbina, Samuel, Curuá-Uma, todas na Amazônia, e levando em conta uma vasta experiência internacional em áreas tropicais e em zonas habitadas por povos nativos e por migrantes. Tal estudo ainda não existe, e, quando vier algo à tona, será um produto “finamente elaborado” pelas mega-consultoras (ligadas aos grupos multinacionais de origem brasileira, Odebrecht, Camargo Correa e Andrade Gutierrez). Veremos quais “impactos” esses iluminados assumirão por escrito.
CD: O governo diz que será construída apenas a barragem de Belo Monte, ao invés da grande seqüência de represamentos prevista na época de Kararaô. O senhor acredita nessa hipótese?
OS: Que eu saiba, não é dito desse modo nem pelo ministro de Minas e Energia nem pelo presidente nem pela chefe da Casa Civil. Quem diz e manda publicar são empresas, são lobbistas, que se baseiam em autores apócrifos de estudos das Mega-Consultoras e da EPE – Empresa de Pesquisa Energética. Trata-se também de algo propagandeado nos últimos meses por gerentes técnicos das empresas, como este que foi agredido pelos índios em Altamira, após ter sido arrogante com toda a platéia do evento.
Não acredito, portanto, nessa hipótese. Aliás, com seu perdão, acho que é preciso muita ingenuidade para acreditar.
O inventário que foi atualizado em 2007 pela EPE, e que vem sendo divulgado pela Eletrobrás, se fixa na análise de mais três “eixos” possíveis de barramento no Xingu, rio acima, além de Belo Monte:
1) um eixo “Altamira”, antigo eixo Babaquara, que afetaria as Terras homologadas dos Arara (Laranjal), dos Kaiapó-Kararaô, dos Asurini (Coatinemo), dos Araweté (Igarape Ipixuna), além de lotes do INCRA e fazendas;
2) eixo “Pombal”, antigo Ipixuna – que agora não sepultaria mais a cidade de São Félix do Xingu (!!!), mas que afetaria o recém criado Parque Nacional da Serra do Pardo, a terra delimitada dos Parakanã (Apyterewa);
3) eixo “São Felix”, antigo eixo Kokraimoro, que alagaria centenas de km quadrados da Terra homologada Kaiapó na margem direita do Xingu, incluindo a aldeia e o posto Kokraimoro, e, na margem oposta, alagaria faixas extensas da terra homologada dos Kaiapó chamada Mekragnoti.
CC: Quem serão os principais compradores de energia elétrica de Belo Monte, ou, de outro modo, os maiores beneficiários da construção da usina?
OS: A potência elétrica mínima assegurada pelo rio Xingu com esse projeto, se ele já existisse e funcionasse, ao longo dos meses e anos desde 1930 até o final do século passado, foi simulada por colegas da Unicamp por meio de um modelo chamado Hydrolab, e alimentado com dados oficiais: o valor não teria ultrapassado os 1.300 MW, nos meses do fim do verão amazônico (setembro a novembro).
Se adicionamos nessa simulação os dados de outras represas rio acima, obviamente a potência total aumentaria e o aproveitamento seria melhor. Como a variação é sazonal, poderia ser oferecida, se todas as máquinas estivessem disponíveis, uma potência perto da capacidade instalada, 11.000 MW no final do inverno, março, abril.
Para saber quem se beneficiaria, é quase impossível agora; primeiro, é preciso saber quais Power Purchase Agreements seriam feitos e com quais clientes, e depois saber se os bancos consideram os dados e as equipes confiáveis e se avaliam as operações como lucrativas no médio prazo.
Se dirigirem a mesma pergunta à ANEEL ou à EPE, nunca vão admitir que o destino da mercadoria eletricidade gerada em Belo Monte é o mesmo do GigaWatt.hora da usina de Tucuruí, que funciona no Pará desde 1984: subsidiar a indústria metalúrgica internacional. Quem puxa mesmo esse tipo de projeto é a expectativa de lucro com o comércio internacional de alumínio, níquel, cobre, manganês, aço e também do ouro – que, aliás, continua a ser garimpado no Xingu, no Tapajós e no Madeira, exatamente nas regiões previstas para as obras de hidrelétricas.
CC: A cidade de Altamira poderá se beneficiar, de alguma forma, dessa construção?
OS: Já mencionei acima os prejuízos e o deslocamento forçado da população urbana e rural de Altamira. Além disso, vai se tornar uma pequena “Recife” fluvial, com os seus três igarapés represados, poluídos. O lençol freático subirá e isso vai dificultar ainda mais a resolução da coleta e tratamento de esgotos da cidade, atualmente inexistentes.
Maiores detalhes o leitor pode obter no livro “Tenotã Mõ. Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no Xingu”, por mim organizado, com contribuição de vinte autores, de lá , daqui e do exterior.
Infelizmente está esgotada a tiragem de mil exemplares feita em 2005, mas o arquivo pode ser baixado no meu site, www.fem.unicamp.br/~seva , e também no site do jornalista Luis Carlos Azenha, http://www.viomundo.com.br/ , na janela “denúncias”. Também ali se encontra uma entrevista radiofônica feita com a líder de movimentos sociais de Altamira, dona Antonia Melo, que aborda esse mesmo assunto.
CC: Seria ainda possível, face à atual conjuntura política e econômica, evitar a construção da usina? De que modo?
OS: Da minha parte insisto há vinte anos em evitar e em desconstruir a mentira sistemática e a desinformação sibilina sobre esse projeto, em apurar cada vez melhor as conseqüências e as implicações do projeto e do seu lobby recalcitrante. Os projetos no Brasil são como o mito de Fênix, renascem, morrem, renascem…envelhecem, mas continuam feito miragem no deserto.
Agora, se for para “evitar a construção”, peço reproduzir parte da carta levada por dezenas de representantes de etnias e aldeias ao juiz federal em Altamira, em 21 de maio passado:
“Esses projetos só trazem miséria, destruição e morte. Caso os senhores não consigam parar essa obra, nós, Povos Indígenas da Bacia do Xingu, entraremos até os canteiros de obras desses empreendimentos e vamos acabar de nosso modo. Aconteça o que acontecer, nós, Povos Indígenas, morreremos defendendo as nossas vidas, nossos patrimônios e nossas terras. Dizemos a vocês, ainda, que haverá conflito entre o empreendedor e os Povos Indígenas, caso os senhores não parem com essas obras” (ver os documentos disponíveis e notícias do Encontro no Especial Xingu do site http://www.amazonia.org.br/altamira/index.html e no blog Xingu Encounter, do site http://www.internationalrivers.org/).
CC: Quais as alternativas à construção de uma usina dessa magnitude? Como levá-las a cabo?
OS: Bem, a pergunta poderia ser simplesmente feita ao contrário. Se o grupo X de empresas, autoridades, políticos locais propõe fazer algo que encontra repúdio ou resistências, provenientes de outro grupo Y, de moradores, movimentos sociais e étnicos, de estudiosos, eventualmente políticos, e até Procuradores e Promotores… pergunte ao grupo X quais outras alternativas eles já estudaram, se é que estudaram.
Por que perguntar ao grupo Y? Aqueles que têm suas razões para repudiar e para resistir ainda têm que carregar nos ombros o peso enorme de “oferecer alternativas” ??? Se não concordo com algo que inventaram e me forçam a aceitar, por que eu é que tenho que mostrar alternativas?
Se um dia os do grupo X forem honestos e respeitosos com quem diverge, responderão sem fantasias, e poderão até dizer que nunca pensaram em outras coisas, apenas nessas que decidiram e ficam tentando fazer: terminar de barrar completamente o rio Tocantins (fazendo Estreito, Marabá, Serra Quebrada e quem sabe alguma outra), barrar o rio Araguaia, o rio Madeira, o rio Xingu. Agora voltam, inclusive, a espalhar boatos e provocar apreensão no Tapajós, ameaçando sepultar outro monumento fluvial, a cachoeira São Luís…
Para não dizer que não respondi ao que sempre perguntam, eis uma alternativa simples de formular, mas bem difícil de ser decidida e implementada nessa era vergonhosa de submissão entusiasmada: interromper a via adotada de fornecer eletricidade barata, minérios e metais baratos, para os grandes grupos capitalistas mundiais, inclusive para a indústria bélica.
Afinal, essa conta enorme, os prejuízos acumulados desses contratos lesivos vêm sendo pagos pelos usuários de eletricidade do país, quase todos, os contribuintes, quase todos, e por muitos moradores das regiões atingidas e dos rios barrados.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Entrevista publicada pelo Correio da Cidadania e enviada pelo Ambiente Cidadania