Atropelo do código florestal consagra oito anos de governo dedicado ao agronegócio, artigo de Gabriel Brito
[Correio da Cidadania] Na última semana, o governo brasileiro escancarou seu caráter irremediavelmente contraditório no que se refere às políticas ambientais. Enquanto envia todas as estrelas da companhia para Copenhague, a fim de fazer boa figura do país na Conferência Ambiental da ONU (COP-15), vira a mesa mais uma vez em favor da bancada ruralista, concedendo mais dois anos de prazo para a averbação de terras e respeito à reserva legal de 80% da propriedade, além de suspender multas já aplicadas.
Além de abrir mais dois anos de brecha para o desmatamento indiscriminado, uma vez que basta o proprietário infrator aderir ao programa Mais Ambiente trazido à luz pelo decreto 7.029 para se livrar das multas, o governo também renuncia a estimados 13 bilhões de reais que proviriam das sanções.
Por sinal, apenas mais um bilionário perdão a um dos mais poderosos segmentos da economia e da política nacionais. Ano passado mesmo, o planalto publicou a MP 432/08, que rolou a dívida agrícola em claro favorecimento ao agronegócio, responsável por 74 bilhões de reais dos 87 bilhões que foram perdoados.
Enquanto o mundo fracassa na Escandinávia na busca, na prática desinteressada, por soluções ao clima, o Brasil tampouco mostra estar pronto para assumir uma autêntica liderança na mudança de paradigmas sociais e econômicos que a natureza tem rogado.
“A publicação desse decreto é um atropelo institucional desmedido do Palácio do Planalto sobre o Congresso Nacional e a sociedade brasileira. Quebra todas as regras de precaução e prevenção ambiental, previstas pela Constituição de 1988”, dispara o deputado federal do PSOL Ivan Valente, membro da comissão que analisa mudanças no código florestal.
E como já foi denunciado anteriormente por especialistas de distintas áreas, como o geógrafo Ariovaldo Umbelino e o economista Guilherme Delgado, mais uma vez o governo toma a decisão sob o argumento da proteção à pequena agricultura. Diante da realidade, ou seja, das condições de financiamento e de toda a cadeia de suporte que a grande e pequena agricultura recebem, mesmo com a maior proficiência da segunda na produção de alimentos, atesta-se a cortina de fumaça.
“Se formos contar as propriedades com até 150 hectares em todo o país, elas são 96,7% do total dos imóveis rurais e 23% do território total desses imóveis – o que não chega a 10% do território nacional”, conta João de Deus Medeiros, diretor de florestas do Ministério do Meio Ambiente, em entrevista ao portal Envolverde. Dessa forma, se o desmatamento ocorre em quantidades alarmantes, é evidente que ele parte de forma esmagadoramente superior das grandes propriedades, isto é, as gigantes do agronegócio, donas de três quartos dessas terras.
“É evidente que tal ampliação traz consigo a visão dos proprietários, que é a de terra arrasada, o que é mostrado pelo comportamento que sempre tiveram na história do país. Há uma contradição nisso e todo o debate ambiental está ignorando a questão fundamental, a da propriedade da terra, ou seja, a mesma coisa que se fez no caso da MP 458”, analisou o geógrafo Ariovaldo Umbelino em recente entrevista ao Correio.
De fato, fica difícil tornar viável a aplicação de qualquer objetivo ambiental quando se têm mais de 300 milhões de hectares sem título de propriedade no país, que por sua vez tenta regularizá-los através de leis que incentivam a grilagem e o uso de laranjas.
Agenda ambiental ou ruralista, escolha inescapável
“O IBGE, em 2006, constatou que 308 milhões de hectares de terras no país pertencem a proprietários sem documentação. Assim, como ele vai averbar uma reserva legal se não tem o título de propriedade da terra? São dois fatores que se cruzam. Ao costume histórico de desmatar além da conta, junta-se a impossibilidade de averbar a reserva legal”, esclarece Umbelino.
Levando em conta que o próprio código florestal concedia generoso prazo até 2031 para o reflorestamento das propriedades fora da lei e tampouco foi suficiente para conter o ímpeto ruralista, pode-se prever que tal setor não se contentará e seguirá em busca de novas concessões a respeito de outras normas ambientais.
Enquanto a agenda ambiental se torna cada vez mais central no debate público, o governo Lula com esse gesto termina de consagrar seus dois mandatos com o apoio irrestrito ao agronegócio. “O fato é que o governo atual adotou duas políticas claras: a primeira é o apoio integral ao agronegócio. A segunda é remover toda possibilidade histórica que possa frear o apoio ao agronegócio. O Brasil faz um discurso no exterior, mas aqui a prática é outra”, resume Umbelino.
“Sob a justificativa implausível de regularizar a agricultura familiar, na verdade o decreto visa facilitar as possibilidades de ampliação e consolidação do agronegócio na Amazônia, que será a região mais afetada com a medida e vítima da ampliação da fronteira ruralista possibilitada pelo decreto”, completa o deputado.
O caso das Fazendas Santa Bárbara, do grupo Opportunity, é um símbolo radicalizado dessa tendência de enormes propriedades de terra que fazem fortunas com a destruição ambiental. Afinal, mesmo sujeitas a multas estratosféricas, sabem que elas historicamente foram subvertidas.
Além do mais, o governo despacha o decreto no exato momento em que alguns setores, talvez de forma altamente ilusória, festejam a redução nos índices de desmatamento, o que, no entanto, é um dado pra lá de contestável, como também denunciou ao Correio o geógrafo da USP. “Os fazendeiros estão desmatando mais no período de chuvas porque dessa forma a imagem do satélite não detecta”.
Sendo a Amazônia responsável por 20% das emissões anuais de gases estufa, o governo não dá sinais contundentes de que porá em prática nem mesmo o discurso de redução dessas emissões, nem de acordo com as pretensões atuais. O que dizer então dos 90% sugeridos pelo ministro Carlos Minc.
Vale agregar que a ‘pendura’ do código florestal não é fato solitário no balanço ambiental do penúltimo ano de governo Lula. Medidas Provisórias em favor de polêmicas legalizações de terras, afrouxamento dos estudos ambientais e exploração de riquezas minerais entusiasticamente apoiada pelo governo petista do Pará são demonstrações de que a agenda ambiental ainda está para ser parida nos corredores do poder brasileiro.
“Para eles, mato é para ser derrubado. Também é claro que esse tipo de postura, de raiz histórica, possui relação com a questão da propriedade privada da terra. Os proprietários, na maior parte das terras do Brasil, não cumprem a legislação nacional e apostam mesmo é no seu não-cumprimento”, vaticina Umbelino.
Talvez consciente de que não será sob o atual mandato que a natureza dará seu derradeiro grito, o governo empurra a efetivação de políticas ambientais para o próximo período presidencial. No entanto, sua candidata Dilma Roussef, ex-ministra de Minas e Energia, é uma entusiasta de grandes projetos contestados por ambientalistas e comunidades locais, como a usina de Belo Monte.
Como se vê, o discurso brasileiro em Copenhague é tão lúcido quanto simpático, mas os gritos da bancada ruralista parecem ainda ressoar muito mais que os da própria terra.
Gabriel Brito é jornalista.
Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
EcoDebate, 21/12/2009
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