Etnocídio no Mato Grosso do Sul. Entrevista especial com Egon Heck
A virulência da violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul não apenas é uma realidade, como aumenta assustadoramente. A cada dia, novos casos de atrocidades contra, principalmente, os Kaiowá-Guarani são relatados, revelando um processo de etnocídio absurdo. “Esse tipo de agressão e violência é totalmente fora de qualquer parâmetro legal e se caracteriza como uma afronta efetiva de etnocídio, de negação geral aos direitos desse povo de continuar vivendo”, explicou Egon Heck durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.
Egon Heck é coordenador do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) do Mato Grosso do Sul.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que a morte de Genivaldo Vera e o desaparecimento de Rolindo Vera representam para o povo e para a luta pelos direitos civis no Mato Grosso do Sul?
Egon Heck – Na verdade, trata-se de mais uma agressão aos direitos dos Kaiowá-Guarani e, desta vez, até de uma maneira bastante expressiva, atingindo professores e estudantes universitários Guaranis como eram tanto o Genivaldo como o Rolindo. Significa também a total intransigência dos poderes econômicos e políticos locais no reconhecimento dos direitos dos Kaiowá-Guarani às suas terras. Esse tipo de agressão e violência é totalmente fora de qualquer parâmetro legal e se caracteriza como uma afronta efetiva de etnocídio, de negação geral dos direitos desse povo de continuar vivendo.
IHU On-Line – Há razões históricas que explicam o motivo pelo qual as terras dos indígenas foram loteadas, vendidas e indevidamente tituladas?
Egon Heck – Trata-se de um processo de ocupação econômica da região em que foram prevalecendo os direitos dos colonizadores, sejam eles por sua própria conta, sejam eles estimulados pelo governo federal através do processo de ocupação das fronteiras. Isso foi desencadeando um processo de exploração econômica, através de grandes companhias multinacionais que receberam concessões de milhões de hectares da reserva dos povos indígenas. Esse processo se deu com dois objetivos específicos: um foi liberar as terras para a ocupação econômica que, naquele momento, começava a implantar fazendas de criação de gado; o segundo era acumular mão de obra indígena para que os índios fossem integrados no processo produtivo da região. Depois, mais tarde, esse mesmo processo econômico foi tendo o viés da ocupação agrícola através dos pequenos proprietários e, a partir da década de 1960, houve a reaglutinação da terra e, assim, elas passaram para as mãos de poucos, ou seja, constituiu-se a base do atual modelo do agronegócio.
IHU On-Line – Já se sabe quem eram as pessoas que aterrorizaram os Kaiowá-Guaranis que retomaram uma parcela de suas terras tradicionais, ocupada atualmente pela fazenda Triunfo?
Egon Heck – Essas questões da violência nem sempre são claramente caracterizadas sobre quem acomete diretamente, ou seja, se são pistoleiros contratados ou segurança privada (uma espécie de milícia que estão formando).
IHU On-Line – Nas mãos de quem estão as terras indígenas brasileiras?
Egon Heck – Essa região vive um processo de agronegócio que, nos últimos anos, caracteriza-se por uma série de médios proprietários que, na maioria das vezes, acabam arrendando suas terras para grandes proprietários da soja e cana. Acontece também a venda direta para as multinacionais que estão comprando terras para plantio de cana de açúcar, principalmente. As terras hoje estão, portanto, nas mãos de médios e grandes proprietários e multinacionais que visam produzir, em especial, etanol.
IHU On-Line – Quem deve ser responsabilizado por essa violência contra os indígenas?
Egon Heck – A rigor, infelizmente, no Brasil, se dá uma conjugação de fatores nos três poderes que acaba tendo essa virulência no desrespeito aos direitos indígenas, especialmente os Kaiowá-Guaranis. Então, por um lado, existe uma morosidade e uma indefinição e até omissão do próprio governo federal que, há 30 anos, devia estar demarcando terras. Então, na medida em que foi protelando, foi contribuindo conscientemente com o aumento da violência. O poder legislativo também dá cobertura aos interesses econômicos que avançam sobre ou negam os direitos aos Kaiowá-Guarani, seja através da proposição de emendas constitucionais, seja através da tentativa de projetos de alteração da constituição. Há vários mecanismos que fazem com que os poderes legislativos federal e estadual também contribuam para essa violência. O Poder Judiciário, muitas vezes, acaba, de uma maneira ágil, dando decisões favoráveis aos fazendeiros e, de uma maneira lenta, definindo qualquer posição no que diz respeito aos direitos indígenas. Desta forma, também acaba contribuindo para que essa violência continue e se amplie.
IHU On-Line – Que medidas precisam ser tomadas, neste momento, no Mato Grosso do Sul?
Egon Heck – É a inadiável a decisão do governo federal de levar adiante os processos de reconhecimento dos territórios originários dos povos indígenas do estado. Para isso, é preciso dar condições objetivas para efetivar os processos de identificação e demarcação das terras indígenas. Isso é fundamental para que de fato se comece a diminuir o leque de violência a que os povos indígenas hoje estão submetidos. A isso se agrega a importante solidariedade nacional e internacional, cobrando o cumprimento das leis, para que haja essa demarcação, e também com a correta informação por meio dos veículos de comunicação, que, muitas vezes, apenas refletem a opinião dos interesses econômicos, em termos de realidade, de violência, sem as costumeiras distorções dos fatos e inverdades veiculadas. Isso é muito importante para que se crie uma correta opinião pública com relação à realidade.
(Ecodebate, 15/12/2009) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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