EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Os últimos homens da floresta, por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

[Correio da Cidadania] Se não conseguimos preservar nem mesmo nossos parentes mais próximos, com os quais há uma empatia e um apelo midiático maiores, que dirá de outras espécies menos aparentadas ou consideradas feias, fedidas, peçonhentas ou inúteis.

Desde 2005, quando comecei a escrever sobre o meio ambiente, nunca dediquei um artigo aos primatas, apesar de ter passado os últimos 11 anos a estuda-los e de minha imensa afeição e fascinação pelo grupo. Mas uma triste notícia que vi publicada no fim do ano passado, na Folha de São Paulo do dia 18 de dezembro, motivou-me a escrever sobre o assunto: há uma grande probabilidade de presenciarmos nos próximos dez anos a extinção dos orangotangos em seu ambiente natural. Segundo estimativas mais otimistas restariam 20 anos para esta espécie de grandes primatas na natureza; os mais pessimistas calculam apenas quatro anos para que desapareça o último orangotango selvagem.

Antes de prosseguir, algumas explicações: o grupo dos primatas corresponde, grosso modo, a todos os animais que genericamente chamamos de macacos (sagüis, micos, chimpanzés, gorilas, bugios, etc.), além da espécie humana e de alguns bichos menos conhecidos, como os társios e lêmures, só encontrados na Ásia e África. O chimpanzé, o gorila, o bonobo (um tipo chimpanzé menor) e o orangotango dividem com o homem, dentro deste grupo, a família dos hominídeos.

Como em uma família, tal qual a entendemos em nossa sociedade, dentro das famílias biológicas as espécies são todas aparentadas e há aquelas mais e menos aparentadas entre si (na verdade todas as espécies existentes são aparentadas, assim como somos todos os humanos, mas nas famílias biológicas, assim como nas nossas, essa relação é mais próxima). Na família dos hominídeos, o chimpanzé e o bonobo são espécies-irmãs, ou seja, possuem um ancestral comum (já extinto há muito tempo), não compartilhado com nenhuma outra espécie vivente. Juntos, eles têm em comum conosco um ancestral mais antigo ainda. É mais ou menos como se ambos fossem nossos “primos” e tivéssemos um “avô” comum. As três espécies juntas compartilham um “bisavô” com o gorila, que fica sendo assim como um “primo” em segundo grau nosso e dos “irmãos” chimpanzé e bonobo. Por fim, compartilhamos um “tataravô” com o orangotango. Seguindo a nossa analogia, o orangotango é “primo” em terceiro grau de todos os outros, inclusive meu e seu, leitor. Dito assim pode até parecer um parentesco distante, mas no conjunto da biodiversidade terrestre, essa macacada é sangue do nosso sangue: as semelhanças superam em muito as diferenças, apesar de muitos preferirem ver somente as últimas. Em suma, dentre as milhões de espécies viventes no planeta Terra, o orangotango é a quarta mais aparentada aos humanos. Aliás, orangotango, em idiomas nativos da Indonésia (orang utan), quer dizer “homem da floresta”.

Digo isto porque, apesar de achar que devemos preservar todas as espécies, independentemente que sejam as que consideramos as mais bonitas (como a ararinha-azul, as baleias ou o mico-leão-dourado), ou as mais úteis (como plantas com potencial medicinal ou de cultivo), ou por outra razão antropocêntrica qualquer, é inegável que há um certo conteúdo emocional em perdermos um membro tão próximo de nossa família evolutiva. Isso, evidentemente, diz muito acerca da natureza humana. Se não conseguimos preservar nem mesmo nossos parentes mais próximos, com os quais há uma empatia e um apelo midiático maiores, que dirá de outras espécies menos aparentadas ou consideradas feias, fedidas, peçonhentas ou inúteis.

E por que os orangotangos estão sumindo? Bem, nas últimas décadas as populações desta espécie têm sofrido reduções constantes devido à perda de seu habitat natural, as florestas tropicais das ilhas de Bornéu e Sumatra, na Indonésia. Cerca de 80% já foi destruído. As razões para esta devastação são a extração (legal ou ilegal) de madeira e o corte raso da mata para agricultura.

A matéria da Folha de São Paulo acerca da extinção dos orangotangos citava ainda o alerta de ambientalistas para uma causa mais recente: a destruição promovida por grandes queimadas, algo bastante comum no Sudeste Asiático (e por aqui também, cada vez mais). No ano de 2006, as queimadas por lá foram bastante extensas e teriam matado cerca de mil animais (lembre o leitor que, por serem os orangotangos animais muito grandes e com uma taxa reprodutiva bem baixa, a perda deste número de adultos tem um impacto profundo sobre a sua população total). O irônico da história é que o propósito das queimadas recentes, que tão mal fizeram aos nossos parentes, foi o de limpar a floresta para plantar dendê em seu interior, o qual é usado para fazer biodiesel, um combustível “ecologicamente correto”.

Mas o que mais esta triste história do continente asiático tem a ver com você, brasileiro, leitor deste artigo? Infelizmente muito, pois esta é uma situação bastante similar à que estamos vivendo em nossa floresta amazônica e estamos repetindo por aqui vários dos mesmos erros cometidos por lá. A diferença (por enquanto) está somente no grau de destruição das nossas matas.

Como tanto o governo brasileiro quanto a União Européia estão abraçando cada vez mais a idéia do biodiesel, devemos cuidar para que não aconteça o mesmo por aqui e transformemos uma idéia que tem um potencial ambiental e social extremamente interessante em mais um poderoso vetor de destruição.

O maior dos erros, e causa de todos os outros, é enxergar a floresta com olhos voltados ao lucro fácil em vez de uma visão de longo prazo, o que leva não só à perda de espécies mais ou menos carismáticas, mas também significa destruir uma galinha dos ovos de ouro. Os “ovos” são as diversas formas racionais de se explorar a mata e os diversos serviços ambientais que a floresta fornece, embora de difícil mensuração financeira. Que a ameaça da iminente extinção dos orangotangos – os “homens-da-floresta” asiáticos – nos sirva de lição para que preservemos as nossas florestas e seus habitantes naturais.

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
E-mail: rogcunha@hotmail.com

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, ed. 534