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Um basta às corporações agroindustriais, artigo de Vandana Shiva

[Tribuna do Brasil] A privatização dos recursos da terra é uma receita para a escassez e a desertificação, para a violência contra as mulheres, para a fome e, como ocorre na Índia, para o suicídio dos camponeses. Até algum tempo atrás, a água e a biodiversidade na Índia eram bens comuns utilizados pelas mulheres. Este é o sistema que está sendo ameaçado pela privatização.

O cuidado com o solo durante gerações é parte de uma cultura segundo a qual os seres humanos têm a terra em custódia e a reconhecem como uma mãe que nutre a humanidade. Um bom uso agrícola melhora o solo e fabrica húmus, que é o ponto mais importante da fertilização da terra. Quando a terra é transformada em uma mercadoria, o solo pode desaparecer na imaginação e na realidade.

Um anúncio da construtora e imobiliária EMAAR-MDG, com sede em Dubai, que se propõe “fazer uma nova Índia”, diz: “Onde agora há campo haverá casas, centros comerciais, clubes de golfe”. O que se esquece é que onde há campos existe um solo, cultivos, populações e camponeses, especialmente mulheres agricultoras, que na Índia são a maior parte das pessoas que trabalham no campo.

Quando o solo dá lugar ao concreto e os casarios se convertem em selvas de pedra, as comunidades dão lugar às corporações empresariais e aos consumidores, e as mulheres como produtoras às mulheres como sexo disponível. A conversão da terra em mercadoria vai de mãos dadas com o uso e abuso da química na agricultura. A Índia gasta anualmente US$ 2 bilhões em subsídios para fertilizantes químicos. No solo vivente são introduzidos insumos externos como os fertilizantes sintéticos, que com o tempo destroem os processos pelos quais se cria a fertilidade da terra.

As mulheres são especialistas no uso de insumos internos na agricultura, já que trabalham com os produtos da própria terra para fertilizar o solo. Insumos externos não fazem falta. Os materiais orgânicos são reciclados e convertidos em compostagem, ou seja, fertilizante orgânico, enquanto os cultivos de leguminosas fixam o nitrogênio na terra.

O outro insumo externo na agricultura é constituído pelas sementes compradas. Na medida em que as sementes se convertem em propriedade das corporações, estas criam sementes “não renováveis” de modo a forçar os agricultores a comprá-las todos os anos. As dívidas nas quais incorrem para comprar sementes e outros insumos externos constituem a principal razão para a epidemia de suicídios de fazendeiros, que por sua vez deixam as viúvas endividadas e sem terra. Os agroquímicos contaminam a terra e nossos corpos, enquanto as sementes “não renováveis” das corporações agroindustriais atentam contra a biodiversidade e a liberdade dos camponeses.

O acesso às sementes está sendo obstruído por leis que tornam ilegal o manejo, por parte dos camponeses, das sementes como um bem comum, e dão ao Estado o poder de conceder licenças às variedades, o que obriga os produtores a buscar a aprovação do Estado por meio do registro das patentes. O pretexto é o controle da qualidade, mas os critérios usados para concessão das licenças, na realidade, negam aos camponeses o direito de utilizar suas próprias sementes tradicionais, forçando-os a adquirir as sementes das corporações agroindustriais.

O governo da Índia procurou introduzir tal lei na forma da Seed Act 2004. Porém, realizamos uma ampla e bem-sucedida campanha de não cooperação e declaramos que guardar sementes era um dever e não um crime, assim como continuaríamos guardando e compartilhando nossas sementes e defendendo a biodiversidade.

No caso da biodiversidade, o encurralamento dos bens comuns biológicos está ocorrendo por causa das patentes. As patentes sobre biodiversidade constituem o centro do artigo 27.3 do Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Um problema associado com as patentes é o da biopirataria praticada pelas corporações, que pirateiam e patenteiam o conhecimento indígena e a biodiversidade, como acontece no caso de patentes sobre o trigo, o arroz basmati e outras espécies vegetais autóctones da Índia, como neem e haldi.

Desde que uma patente concede um direito exclusivo para usar, produzir, vender os produtos patenteados e processá-los, as patentes sobre a biodiversidade e as sementes de fato impedem o uso e o acesso às sementes como bem comum. Uma agricultura estável pode se basear na vigência dos direitos, fundamentalmente dos direitos dos camponeses e do povo, não os das corporações privadas. IPS/ Envolverde

Vandana Shiva é bióloga, ambientalista e escritora.

* Artigo originalmente publicado no Tribuna do Brasil.

EcoDebate, 19/11/2009

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