E lá vem de novo o lixo dos ricos, por Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] A julgar pelas informações disponíveis no momento em que estas linhas são escritas, talvez só daqui a dois meses será conhecida a extensão real – e os prejuízos para o nosso país – da decisão da Organização Mundial de Comércio (OMC), que parece haver dado razão, pelo menos em parte, à União Européia, em sua queixa contra a proibição de importação de pneus usados ou remoldados pelo Brasil – Resolução 235/1998 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A diplomacia brasileira recusa-se a aceitar que tenha sido uma derrota. Afirma que a OMC reconheceu o direito brasileiro de opor razões de saúde e ambientais à importação. Os europeus dizem que a OMC aceitou seu argumento da incongruência brasileira, pois desde 2003 importamos 200 mil pneus usados do Uruguai por ano – sob a alegação de que um tribunal arbitral do Mercosul admitiu o direito uruguaio (embora Argentina e outros países do Mercosul ignorem essa postura do tribunal). E o teor do relatório sobre a decisão da OMC só será divulgado em maio.
Seja como for, é um alto preço que o Brasil paga por uma decisão ditada pela política externa, que em 2003 impôs uma derrota constrangedora ao Ministério do Meio Ambiente e ao Conama ao acolher sem discussão a alegada decisão do Tribunal Arbitral do Mercosul. A Europa não titubeou. O continente descarta pelo menos 80 milhões de pneus por ano; não pode depositá-los em aterros; é ambientalmente perigoso, pouco econômico, queimá-los em altos fornos de siderúrgicas; tem pouco mercado triturá-los para usar em lugar de brita; melhor, então, retornar ao que em outros tempos se chamou de “colonialismo da imundície” – exportar lixo perigoso para países “pobres”.
Não é preciso retornar a todos os argumentos que têm sido usados no Brasil contra e a favor da importação, já expostos aqui. O fato é que em 2005 importamos 8 milhões de carcaças, graças a medidas judiciais conseguidas pela indústria da remoldagem. É tanto o interesse europeu em vendê-las para cá que chegam custando entre 20 e 60 centavos de dólar por unidade e rendem até US$ 20 (Valor, 13/3). E representam mais de 7% do mercado interno de pneus (Estado,13/3). Os adversários da importação dizem que talvez metade das carcaças nem sequer seja usada aqui – o que também dificultaria cumprir a resolução do Conama, pela qual os fabricantes nacionais têm de reciclar cinco pneus para quatro fabricados (para cobrir o déficit anterior de recolhimento). E não é só a Europa que quer exportar esse lixo: as estimativas falam em 1 bilhão de pneus no mundo à espera de destinação.
É possível que o panorama ainda mude se a Câmara dos Deputados aprovar projeto da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que já passou pelo Senado e proíbe qualquer importação de pneus usados. Como é possível que se aprove ali outro projeto, de um parlamentar paranaense, que dispõe em sentido contrário.
Vamos aguardar os novos capítulos. Preparando-nos para algo tão grave quanto e que já ameaça no horizonte: a importação de lixo tecnológico, outro sério problema na área de resíduos para os países europeus – e que também não podem depositá-lo em aterros, embora cada habitante do continente esteja produzindo em média 14 quilos anuais de lixo tecnológico (computadores e peças, aparelhos elétricos e eletrônicos, etc.). Sem falar no lixo tóxico de pilhas, baterias e semelhantes. Desde o ano passado, quando foi apertado o controle interno, os fabricantes europeus são obrigados a registrar qualquer uso de cádmio, chumbo, mercúrio e outros elementos utilizados em aparelhos eletroeletrônicos, assim como assumir o compromisso de recebê-los de volta (os fabricantes se rebelaram, alegando que o registro quebraria o sigilo de patentes, mas ainda não tiveram êxito).
Estudo recente da revista New Scientist (6/1) mostrou a que níveis vão chegando o desperdício de materiais e a geração de lixo, na hora em que o consumo de recursos naturais já é superior à capacidade de reposição da biosfera. Nos EUA, o descarte de garrafas chega a 2,5 milhões por hora. A revista cita o livro Natural Capitalism, de Paul Hawken e outros autores, segundo os quais seis meses depois de manufaturados só 1% dos materiais usados industrialmente naquele país ainda está presente em produtos da maioria dos setores. Outros estudos dizem que são descartados no mundo 1 milhão de sacos plásticos por minuto. Computadores , telefones celulares e aparelhos eletrônicos já representam 5% do lixo dos países industrializados, informa o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. A Grã-Bretanha produz 1 milhão de toneladas anuais de lixo eletrônico. Nos EUA, descartam-se 20 milhões de Pcs por ano.
E tudo isso acontece em países e regiões que já têm legislação muito mais avançada que a nossa. Na União Européia, desde 2003 os geradores de produtos eletroeletrônicos são obrigados a recebê-los de volta (e os comerciantes, a dar-lhes destinação). No Japão, desde 2001, com a crise da falta de aterros sanitários, criou-se legislação que obriga os fabricantes a adicionar ao preço de seus produtos eletroeletrônicos e outros aparelhos domésticos o custo da reciclagem (e a afixar nos produtos um aviso a respeito; o consumidor pode devolver o produto até pelo correio). Uma empresas das fabricantes recebeu em um ano 540 mil televisores.
Aqui, a Fundação Banco do Brasil anuncia a implantação de um centro de recondicionamento de computadores no Distrito Federal e capacitação de 1,4 mil pessoas de baixa renda para esse trabalho. É um avanço. Cedo ou tarde, teremos de mudar nossos modos de produzir e consumir, que são insustentáveis. Quanto antes começarmos, melhor. Para não termos,um dia, de enfrentar uma briga vergonhosa pelo “direito” de exportar lixo para países descuidados.
Washington Novaes é jornalista
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo – 16/03/2007