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Artigo

No centro, a água, a terra, o sol, artigo do jornalista Washington Novaes

“Não será exagero dizer que vivemos uma crise do padrão civilizatório: nossos modos de viver não são adequados às possibilidades do planeta; tudo terá de mudar para chegar a essa adequação”

[O Estado de S.Paulo] O Brasil precisa ou não implantar novas megahidrelétricas, principalmente na Amazônia, para não correr o risco de novo “apagão”? Precisa construir a usina nuclear Angra 3? Precisa ativar termelétricas a carvão (até importando-o da China!) e diesel, altamente poluidoras? Ou não precisa de nada disso, pode até economizar metade da energia que hoje consome (evitando conflitos nos rios) e utilizar energias renováveis e não poluentes, como a solar, a eólica, a das marés?

É preciso expandir a produção de carnes, soja e álcool na Amazônia, desmatando e gerando a maior parte das emissões de gases que nos colocam como o quarto maior emissor, contribuindo para o agravamento do efeito estufa e das mudanças climáticas?

Devemos seguir no rumo em que vamos, produzindo cada vez mais carnes e grãos sem exigir dos países industrializados, principais importadores, compensações pelos custos sociais e ambientais dessas atividades?

Temos um dos maiores fluxos de água doce e não precisamos nos preocupar com o futuro, podemos usar e abusar dos recursos hídricos (até desperdiçando nas cidades mais de 30% do que sai das estações de tratamento, ou mais de 50% da água que os pivôs centrais retiram dos mananciais), mesmo com a ONU advertindo que em meados deste século dois terços da população da Terra serão atingidos pela “crise da água”?

Perguntas nessa mesma direção poderiam ser muitas. Mas não é necessário. Pode-se lembrar o que os diagnósticos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) têm reiterado: o impacto humano sobre serviços e recursos naturais no planeta já está mais de 20% além da capacidade de reposição da biosfera terrestre e continua aumentando de ano para ano.

Ou o que dizem os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud): hoje, quase 80% do consumo no mundo está nos países industrializados, que têm menos de 20% da população; se todos os habitantes da Terra consumissem como americanos, europeus ou japoneses, seriam necessários mais dois ou três planetas como o nosso para prover o necessário para esse consumo.

Depois, trazer à memória os relatórios mais recentes do IPCC, órgão da Convenção do Clima que reúne mais de 2.500 cientistas: o aquecimento da Terra é inequívoco; é preciso reduzir as emissões em pelo menos 50% até meados deste século e impedir que a temperatura suba mais de 2 graus Celsius, para evitar que os desastres provocados pelo clima sejam muito mais graves do que já são (mas as emissões continuam crescendo).

Ou recordar o Relatório Stern, produzido pelo ex-economista chefe do Banco Mundial (e não por um ambientalista radical): temos dez anos para enfrentar o problema do clima; se não o fizermos, aplicando pelo menos 1% do Produto Bruto Global (mais de US$ 500 bilhões) por ano, correremos o risco de desastres que levarão a uma recessão pior que a dos anos 1930.

Todo esse quadro tem levado o experiente Kofi Annan, secretário-geral da ONU por mais de uma década, a reiterar: o problema central da humanidade hoje não está no terrorismo, como parece; está nas mudanças climáticas e na insustentabilidade dos padrões de produção e consumo, além da capacidade de reposição; esses dois problemas é que ameaçam levar à extinção da espécie humana.

É muito grave. Não será exagero dizer que vivemos uma crise do padrão civilizatório: nossos modos de viver não são adequados às possibilidades do planeta; tudo terá de mudar para chegar a essa adequação. E, se é assim, o Brasil precisa repensar sua estratégia – na verdade, formular uma, porque hoje não temos senão o propósito de fazer crescer e crescer o PIB, sejam quais forem as conseqüências.

Não se pode deixar de partir de um ponto: se o Brasil tem em relativa abundância o “fator escasso” no mundo – recursos e serviços naturais -, precisa colocar os vários ângulos desse fator no centro e no início de uma estratégia, que leve ao seu manejo adequado e à sua valorização.

Temos uma situação privilegiada por várias facetas: território continental; sol o ano todo, quase sem invernos rigorosos que dificultem a produção; 12% do fluxo superficial de água do planeta; de 15% a 20% da biodiversidade; energias renováveis e não poluentes em abundância. Ou seja, o privilégio de solo, água, sol e energias adequadas e abundantes.

O resto é conseqüência. Que dependerá de competência. Principalmente para formular, como tem proposto a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, uma estratégia de desmatamento zero na Amazônia e no Cerrado; avanço da produção de carnes e grãos apenas em mais de 200 mil quilômetros quadrados já desmatados e sem aproveitamento econômico; e forte investimento em ciência e formação de cientistas para trabalhar com a biodiversidade.

Aí está o futuro: novos medicamentos, novos alimentos, novos materiais para substituir os que se esgotarem (hoje, só o comércio mundial de medicamentos derivados da biodiversidade supera US$ 200 bilhões anuais).

Mas é preciso tirar os antolhos e sair do modelo que praticamos há 500 anos, para alegria dos países ricos. Se o fizermos, teremos água e outros recursos e serviços naturais em quantidade suficiente para nos assegurar um futuro digno.

Washington Novaes é jornalista especializado em meio ambiente.

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 20/03/2008