A luta dos Arara e dos Gavião contra os projetos hidrelétricos do Rio Machado, em Rondônia. Entrevista especial com Renata da Silva Nóbrega
O modelo de desenvolvimento do Brasil segue um avanço social próprio de seus governos anteriores, ou seja, prevalecem a opinião de poucos sobre a vida de muitos e o benefício de poucos que geram malefícios para muitos. Isso é muito bem exemplificado pela intransigência governamental acerca da construção de hidrelétricas na Amazônia. Ela é feita com a desculpa de aumentar a energia do país, mas beneficiando, verdadeiramente, inúmeras grandes indústrias localizadas na região, o que ocasiona um enorme prejuízo econômico, social, cultural e territorial para os povos da região, principalmente para os povos indígenas. Um desses projetos foi lançado na década de 1980 e, tempos depois, após uma grande movimentação social, foi cancelado, tendo sido relançado em 1995. O projeto, hoje, foi remodelado, mas continua e pretende destruir territórios indígenas sagrados. “É como se os índios fossem invisíveis”, diz Renata da Silva Nóbrega, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Renata acaba de apresentar o trabalho “A luta dos Arara (Karo) e dos Gavião (Ikólóéhj) contra os projetos hidrelétricos do Rio Machado, em Rondônia”, na Unicamp, onde conheceu um mundo tão próximo ao dela, mas, ao mesmo tempo, tão distante. “Essa é a cidade onde fui criada e o interesse pela barragem foi despertado exatamente pela grande luta dos índios. Foi ouvindo a resistência e analisando a luta que houve esse despertar para tentar conhecê-la mais. Além disso, a experiência me permitiu conhecer os índios, porque, apesar de ter crescido na cidade, eu não os conhecia, nunca havia tido contato direto com eles”, contou-nos.
Renata da Silva Nóbrega é graduada em Relações Internacionais, pela Universidade de Brasília, e mestre em Sociologia, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Rio Machado é apenas mais uma das lutas dos índios no Norte do país. Como foi para você trabalhar com indígenas e com suas lutas?
Renata da Silva Nóbrega – Eu me envolvi com essa questão do Rio Machado porque eu sou de Ji-Paraná [1] também. Então, esse é um assunto que me diz respeito. Essa é a cidade onde fui criada e o interesse pela barragem foi despertado exatamente pela grande luta dos índios. Foi ouvindo a resistência e analisando a luta que houve esse despertar para conhecê-la mais. Além disso, a experiência me permitiu conhecer os índios, porque, apesar de ter crescido na cidade, eu não os conhecia, nunca havia tido contato direto com eles.
Essa experiência foi ímpar. O processo da pesquisa e de conhecer o assunto que escolhi foi um processo de autoconhecimento, porque eu conheci melhor a história da cidade onde cresci e somente quando me detive sobre a luta dos índios contra a barragem percebi o que chamo no trabalho de um apartheid, que separa as populações indígenas das demais populações amazônicas, como se os índios fossem invisíveis. Esse foi um trabalho de muita descoberta. Eu me deparei com essa ignorância. Os índios vivem a 30, 40 quilômetros da cidade, circulam pelo município, mas eu mesma ignorava essa existência. Esse conhecimento me transformou muito.
IHU On-Line – Pensando nos índios como cidadãos brasileiros, como eles se vêem e como a Antropologia e a Sociologia percebem sua presença e suas lutas no Brasil hoje?
Renata da Silva Nóbrega – Eu percebi que eles estão buscando afirmar a existência, em busca de seus direitos e querem ser reconhecidos como parte integrante da sociedade brasileira.
IHU On-Line – E como foi que você se aproximou dos índios, obteve sua confiança, compreendeu a sua luta?
Renata da Silva Nóbrega – Eu passei minha infância em Ji-Paraná, mas muito tempo fora da cidade para estudar. Voltei para montar meu projeto de pesquisa para o mestrado. Por um acaso, eu participei da Semana dos Povos Indígenas de 2005 e, pela primeira vez, eu pude ouvir os índios de verdade. Nesse seminário, a principal ameaça apresentada por eles era a da hidrelétrica. Até aquele momento, eu não sabia que a cidade onde eu cresci tinha sido palco de uma mobilização popular muito intensa contra as barragens. Com isso, fui tentando me aproximar e tentando entender porque aqueles índios afirmavam com tanto veemência que não queriam a barragem e nas conseqüências desses projetos para suas vidas. Eles me conheceram, confiaram na minha proposta de pesquisa e aceitaram que eu investigasse e registrasse essa história. Ao mesmo tempo, busquei entender a memória indígena em relação a essa história. O trabalho ainda é limitado, ou seja, não é possível conhecer essa realidade em tão pouco tempo, mas eu acredito que tenha sido um trabalho inicial que apresenta um história pouco conhecida até mesmo para o povo de Ji-Paraná.
IHU On-Line – Justamente agora, quando o mundo todo discute alternativas para a crise energética e para o aquecimento global, o Brasil está fazendo opções arriscadas, sobretudo quando se trata da construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, Tabajara no Rio Machado e da prospecção de petróleo e gás no estado do Acre. Como os índios estão lidando com essas lutas?
Renata da Silva Nóbrega – Os índios percebem, principalmente, a ameaça contra o seu território. Todos esses projetos são vistos como uma grande ameaça e a articulação que eles têm feito com os pesquisadores e movimentos sociais é para combater esse modelo de desenvolvimento em expansão na Amazônia. Os índios têm tentado ser vozes de resistência e, no caso do Rio Machado, eles vêm se saindo vitoriosos há pelo menos 20 anos. Não conhecemos o desfecho, mas, mesmo que não vençam, eles são vitoriosos no sentido de estar apresentando alternativas de buscar viver de outra forma e, assim, recusar um modelo predatório e centralizado.
Rio Machado
O projeto inicialmente foi apresentado em meados dos anos 1980. Ele era formado por duas barragens: a Usina de Tabajara e a Usina Ji-Paraná. Juntas, essas duas barragens formariam um dos maiores espelhos d’água do país. Inundaria-se a terra das tribos Arara e Gavião, além de várias cidades trazendo inúmeros prejuízos. Por diversos motivos, como problemas econômicos e políticos, esse projeto não conseguiu se viabilizar nos anos 1980. Uma intensa mobilização popular também foi feita contra essas barragens. Esses projetos, então, foram suspensos no início da década de 1990. Em 1995, os estudos foram retomados, mas optou-se, mais uma vez, pelo abandono do projeto de Ji-Paraná e apostaram no projeto da barragem de Tabajara.
IHU On-Line – Quais são as condições dos indígenas dessa região hoje?
Renata da Silva Nóbrega – No trabalho, vi que a luta contra a barragem é a mais destacada. Eles têm muitos espaços públicos que dão visibilidades para essas lutas. Ao mesmo tempo, existe uma luta cotidiana para garantir educação diferenciada. De qualquer modo, apesar de a educação caminhar, trata-se de um área com muitas dificuldades por não existirem muitos professores indígenas formados. Os índios reivindicam acesso à educação superior indígena da universidade federal. Outra luta cotidiana é no campo da saúde. Durante a pesquisa de campo, vi várias manifestações em que os índios ocuparam a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) para reivindicar melhores condições de saúde, pois essa área é ainda bastante precária.
IHU On-Line – E como essas tribos com as quais você conviveu tem visto essas lutas de outras contra a construção de hidrelétricas na Amazônia e da invasão de não-índios em suas terras?
Renata da Silva Nóbrega – Eu sei que a articulação indígena hoje é nacional. Então, mesmo que tenham uma luta na bacia do Rio Machado, as tribos de Ji-Paraná estão em contato com o movimento indígena nacional e conhecem os problemas que os outros povos enfrentam. Essas tribos sabem que outros povos estão passando por problemas semelhantes ou piores do que os delas. Em Rondônia, na bacia do Rio Branco, os povos de lá sofrem muito porque já há sete pequenas barragens construídas que estão causando graves prejuízos.
IHU On-Line – Quais são as principais contribuições da ciência indígena para o Brasil?
Renata da Silva Nóbrega – Acredito que muita coisa precise ser conhecida. A inserção dos índios nas universidades, certamente, gerará um conhecimento próprio e deve ampliar essa contribuição. Eles têm conhecimentos importantes nas áreas da literatura, medicina, história etc. Como qualquer sociedade, oferecem muita contribuição para dar à ciência em geral. O problema é que esse conhecimento é tratado ainda muito como apenas étnico, como este traço representasse uma marca inferior. Eu acredito que a presença dos índios nas universidades venha a alterar, em parte, esse conhecimento.
Notas:
[1] Ji-Paraná é um município brasileiro do estado de Rondônia, sendo atualmente o segundo mais populoso do estado. O nome do município é de origem indígena, significando rio-machado.
(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 04/06/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]