Contaminação humana e tecnologias, artigo de Gilberto Dupas
[O Estado de S.Paulo] Uma das ameaças mais graves à humanidade neste início de século 21 é a degradação ambiental decorrente das tecnologias que sustentam as lógicas da produção global. Elementos tóxicos potenciais causadores de doenças – desde alergias até mutações genéticas e cânceres – estão no ar, na água, nos alimentos, nas roupas, nos aviões, nos carros e em lugares insuspeitos de nossas casas.
A revolução industrial foi o marco da emissão massiva de toxinas, a partir da queima de carvão e óleo. Mas hoje há inúmeros outros agentes perigosos produzidos em escala mundial. David Ewing Duncan, apoiado pela National Geografic e monitorado por Ake Bergman, da Universidade de Estocolmo, utilizou laboratório de última geração para testar as substâncias potencialmente tóxicas presentes em seu organismo. Um dia após uma refeição com peixe-espada e atum, a concentração de mercúrio em seu sangue havia mais que dobrado; uma relevante presença de ftalatos foi atribuída a um banho com abundante uso de sabonete e xampu; e seus altos níveis de polibrominatos foram debitados a vôos de longa duração. De onde vêm esses “venenos”?
As usinas termoelétricas que queimam carvão são das principais fontes de contaminação por mercúrio. Ele é lançado no ar pelas chaminés, dispersado pelos ventos e retorna com as chuvas, acumulando-se em lagos, rios e oceanos. Por ação de bactérias naturais, transforma-se em metilmercúrio, que entra na cadeia alimentar via plânctons e, a partir daí, chega aos grandes predadores como atum e peixe-espada. Já os ftalatos dão flexibilidade a objetos plásticos e filmes de embalar alimentos, espessam esmaltes, xampus, loções e sabonetes, provocando distúrbios sexuais em cobaias machos e podendo afetar bebês. Finalmente, os polibrominatos estão presentes em cabines de aviões repletas de revestimentos retardantes de fogo, cortinas e tecidos, colchões e travesseiros de espuma, assentos de cadeiras e aparelhos eletroeletrônicos; em doses elevadas eles provocam distúrbios neurológicos em animais de laboratório.
Mas há inúmeros outros resíduos da civilização tecnológica contemporânea que vêm preocupando cientistas e pesquisadores. Evidências e denúncias mais fortes têm provocado substituições, mas a vida continua sempre mais perto do lucro fácil do que do “princípio da precaução”. O bisfenol A, contido em garrafas plásticas e até em mamadeiras, pode penetrar nos líquidos que abrigam e são suspeitos de provocar lesões no fígado e câncer em cobaias. Pesticidas presentes em vários alimentos, sabonetes antimicrobianos e coleiras antipulgas podem causar asma e distúrbios neurológicos. Dioxinas ainda são detectadas em várias atividades industriais, como fabricação de certos papéis e indústrias químicas, penetrando na cadeia alimentar por vegetais, gorduras de herbívoros, peixes e laticínios; câncer e anomalias congênitas são os seus efeitos possíveis.
O mais recente “vilão” é o ácido perfluoroctanóico. Jeff Nesmith relata estudos realizados por pesquisadores para os Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA apontando-o como provável carcinógeno humano. Ele está no sangue de quase todo americano e apareceu em 99% de casos das amostras em cordão umbilical de bebês analisados pela Johns Hopkins University, podendo alterar seu peso e o tamanho de sua cabeça. Esse ácido é subproduto de antiaderentes usados em embalagens de certos alimentos, contaminando-os quando aquecidas; os atuais sacos de pipoca de microondas o liberam centenas de vezes mais do que panelas revestidas e a indústria do setor já está sob pressão.
Doenças provocadas por toxinas industriais foram observadas durante boa parte do século passado. Algumas de suas trágicas conseqüências obrigaram a retirada forçada de inúmeras substâncias e alterações de processos de produção; mas chama a atenção que várias dessas conseqüências só tenham sido descobertas muito tempo após a liberação do seu uso. O pesticida dibromocloropropano esterilizou dezenas de milhares de plantadores de banana, causando também mortes e milhares de intoxicações agudas e câncer em consumidores de óleo de arroz, no Japão, vítimas de distúrbios imunológicos. Centenas de japoneses e iraquianos morreram ou sofreram lesões do cérebro por mercúrio consumindo peixes e pão com grãos tratados contra mofos. E a dioxina causou dezenas de milhares de casos de câncer e diabetes entre soldados e moradores do Vietnã, por conta do desfolhante “agente laranja” lançado por tropas norte-americanas. E assim por diante. Mas parece que as lições não foram aprendidas.
O que fazer diante de situação tão complexa e preocupante? Os otimistas afirmam que este é o preço do “progresso”; para eles, apesar de tudo, a expectativa de vida média da humanidade continua aumentando e os mesmos vetores tecnológicos que causam doenças curam em maior escala do que matam. Eles garantem, à Adam Smith, que a busca do lucro abarca o interesse público e que o próprio capitalismo encontrará maneiras para se auto-regular. Já os pessimistas pensam que o modelo de desenvolvimento econômico baseado nas leis do mercado e no encolhimento do Estado regulador é uma selva em que o interesse público é subjugado pelo lucro privado; e que caminhamos para uma degradação ambiental inexorável e para um salve-se quem puder. Balizada por essas duas posições radicais, a sociedade contemporânea vai ter de encontrar caminhos intermediários e soluções de compromisso para enfrentar o imenso desafio de retomar o controle da direção dos vetores tecnológicos e administrar os efeitos perversos de nosso sistema de produção sobre a saúde e o bem-estar dos seus membros. Será uma tarefa para gigantes.
Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, é autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso (Editora Unesp)
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo O Estado de S.Paulo – 18/08/2007