A insustentável bioenergia do milho, artigo de José Graziano
[Valor Econômico] Mesoamérica – composta pelos países da América Central e México – é hoje a sub-região da América Latina onde estamos perdendo a luta contra a fome. Segundo dados da FAO, entre 1990/92 e 2002/04 o número de pessoas subnutridas na região passou de 9,6 para 12,8 milhões de pessoas, um aumento de 33%, ou seja, 3,2 milhões de pessoas em 10 anos. E é uma miséria que se concentra nas áreas rurais que poderiam ser grandes produtoras de alimentos.
A fome na Mesoamérica tem a cara de uma criança indígena de descendência maia ou asteca. São os piores índices de desnutrição infantil da América Latina e Caribe: uma de cada quatro crianças com menos de 5 anos está desnutrida. Em países como a Guatemala quase metade das crianças com menos de 5 anos está desnutrida, proporção essa que aumenta para 80% entre os indígenas. São níveis de desnutrição superiores aos do Haiti e de países mais pobres da África.
No livro sagrado maia “El Popol-Vuh”, lê-se que os deuses necessitavam povoar o mundo com um ser civilizado. Depois de tentar criar humanos com madeira e fracassar, escolheram o milho como matéria-prima. Durante milhares de anos os povos mesomaericanos tiraram seu sustento do milho e seus derivados. A tortilha com feijão, por exemplo, responde por 40% das proteínas que os mexicanos consomem, segundo pesquisa da Universidade Autônoma de México.
Mas a produção de milho da Mesoamérica há muito já não atende sua demanda. Em 2005, as importações mexicanas de milho alcançaram US$ 730 milhões. Os países centro-americanos importaram outros US$ 330 milhões. Somados, os sete países da Mesoamérica respondem pela importação da metade do milho dos 33 países do continente, quase todo ele proveniente de exportações norte-americanas fortemente subsidiadas. Muitos dos países da sub-região promoveram uma abertura indiscriminada de suas economias, comprometendo as atividades dos seus pequenos agricultores. Repete-se no século XXI uma política de importação de excedentes de produtos alimentícios subsidiados nos países desenvolvidos similar a que destruiu a capacidade de produção do continente africano a partir dos anos 70 do século passado.
Não é sem razão, portanto, que o presidente Daniel Ortega, da Nicarágua, que quer estimular a agricultura familiar como parte do seu programa Hambre Cero, não é um entusiasta dos biocombustíveis. Ele teme que a política americana de utilizar excedentes de milho (os EUA são os maiores exportadores mundiais) agrave ainda mais a desnutrição na região. Não só porque o milho aí é um alimento básico, mas também porque é um insumo genérico que faz parte de muitas cadeias agroalimentares, começando pela produção de carnes e de leite.
Mas também tem razão o presidente Lula ao defender o álcool de cana-de-açúcar. E quem diz isso é o próprio secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Inzulza. Na abertura da IV Reunião Ministerial sobre Agricultura e Vida Rural que se realizou recentemente na Guatemala, ele reconheceu “o potencial que tem a produção de agroenergia a partir da cana, assim como sua capacidade de promover o desenvolvimento agrícola”.
A energia contida no álcool da cana-de-açúcar é mais de oito vezes maior que a energia fóssil utilizada para produzi-lo
Reproduzo suas palavras: “Desejo destacar particularmente o caminho aberto nesse âmbito pelo Brasil, ao dedicar parte da sua produção de cana-de-açúcar para a elaboração de etanol (.) Com isso conseguiu diversificar consideravelmente suas fontes de energia e aumentar sua auto-suficiência energética(.) O Painel de Mudanças Climáticas da ONU recomenda o uso de etanol de cana porque causa menor impacto no meio ambiente que o de milho. Trata-se, por outro lado, de uma produção que não deixa resíduos, pois tudo é reciclado para enriquecer o solo, e a própria cana é uma grande absorvedora de carbono, ajudando por si mesma a reduzir os gases do efeito estufa.”
“A produção de etanol (no Brasil) não constitui uma ameaça à produção de alimentos (.) Recentemente os governos do Brasil e Estados Unidos acordaram ampliar (..) a produção de etanol. Trata-se de uma iniciativa muito digna de destacar e que esperamos encontre eco em outros países da nossa região, como também esperamos que se amplie com outros gestos, particularmente a redução de barreiras protecionistas à importação de etanol produzido com cana que, como se sabe, é muito mais barato que outros combustíveis (atualmente seu custo não chega à metade da gasolina ou do diesel), inclusive do que o etanol produzido de outras fontes, como o milho, que tem um custo de US$ 1,30 por galão, mais alto que o produzido com cana, que não supera um dólar por galão.”
Mas não esta só no custo a vantagem da cana. A energia contida no álcool de cana é mais de 8 vezes maior que a energia fóssil utilizada para produzi-lo; no milho essa relação é um pouco maior que um, o que significa que a energia contida em um litro de álcool de milho é quase igual à que se consome para produzi-lo. Por isso, a produção de 1m³ de álcool de cana permite a redução de 2,6 toneladas de CO2, uma arma importante na corrida para reduzir a tendência de aquecimento global via efeito estufa.
E mais: atualmente se produz mais de sete mil litros de etanol por hectare, e no milho a metade disso. Isso significa que, para produzir a mesma quantidade de etanol, a cana requer metade da área utilizada pelo milho, o que implica uma menor pressão por terras.
Evidentemente, muitas dessas vantagens aparentemente “naturais” da cana foram construídas ao longo de décadas de pesquisa. Vale lembrar, por exemplo, que nos anos 70, quando começou o Pró-Álcool, o rendimento não passava de 1,5 mil litros por hectare.
Não descuidar da pesquisa é o preço da liderança conquistada. Mas o principal desafio do álcool brasileiro agora é legitimar sua posição no mercado internacional, promovendo um zoneamento agroecológico impositivo e definindo as relações contratuais, especialmente as trabalhistas condizentes com a sua eficiência. Não é sustentável que um bóia-fria para ganhar, hoje, praticamente o mesmo que no início dos anos 70, tenha que cortar três vezes mais cana, num esforço que pode custar sua própria vida, como mostram as mortes por exaustão que infelizmente vem se repetindo, para vergonha do país.
Jose Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo Valor Econômico – 22/08/2007