Caravana do São Francisco: uma visão realística, artigo de João Suassuna
No mês de agosto do corrente, sob a coordenação de Apolo Heringer Lisboa, gerente do Projeto Manuelzão de Minas Gerais, foi formada uma Caravana para discussão de temas relacionados à Transposição e Revitalização do rio São Francisco, e desenvolvimento do Semi-árido brasileiro.
Durante 15 dias e visitando 11 estados brasileiros (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, São Paulo, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Sergipe e Alagoas), a Caravana promoveu discussões entre técnicos especialistas em meio ambiente e recursos hídricos, representantes do Comitê de Bacia do Rio São Francisco, representantes do Ministério Público, dirigentes de movimentos sociais e de defesa do meio ambiente e representante das comunidades tradicionais da bacia do São Francisco.
Em sua trajetória pelo país, a Caravana esteve diante de dois fatos marcantes: de um lado uma mentira histórica e, de outro, uma grata surpresa.
A mentira histórica consistiu na afirmação, pelas autoridades, de que seria possibilitado, através do projeto de transposição do rio São Francisco, o abastecimento de 12 milhões de pessoas no Nordeste Setentrional. Esse número vem sendo questionado, inclusive, pelo Tribunal de Contas da União.
Não podia ser diferente: conforme estatísticas do IBGE (2003), os estados do Nordeste Setentrional (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco) possuem uma população estimada em cerca de 21,5 milhões de pessoas, sendo 10,3 milhões residentes em região semi-árida, com sérios problemas de abastecimento. Segundo o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o Projeto de Transposição atende a menos de 20% da área do Semi-árido e 44% de sua população continuarão sem acesso ao precioso líquido. Isto significa dizer que apenas 5,7 milhões de pessoas dos quatro estados é que serão beneficiadas, portanto, muito diferente daquele anunciado pelo projeto, de 12 milhões de pessoas.
Por outro lado, o referido projeto que visa, prioritariamente, a satisfação das necessidades hídricas da população do Semi-árido, terminou por não alcançar os seus objetivos, pelo simples fato de o mesmo concentrar terra e água; diminuir a oferta hídrica das populações – pois apenas transfere água de uma bacia para outra, deixando essa água ao ar livre, sujeita à evaporação – e levar água para as grandes represas já abastecidas com muita água – suscitando enormes dúvidas com relação à salinização dos solos e ao aumento de desperdícios. Estes aspectos, somados à ausência de uma política que garanta o abastecimento das populações difusas da região, têm resultado em benefícios diretos ao grande capital, principalmente em atividades econômicas do agronegócio (irrigação e carcinicultura) e da indústria.
Nesse sentido, o caso do eixo leste do projeto de transposição nos parece emblemático. Ele foi idealizado para solucionar antigos problemas de abastecimento da cidade de Campina Grande e municípios vizinhos, os quais são abastecidos pela represa de Boqueirão, e para resolver os problemas de escassez hídrica dos municípios localizados na bacia do rio Ipojuca, na região agreste do estado de Pernambuco. Na nossa ótica, esse eixo, da forma como foi apresentado à sociedade, está superdimensionado. A água, em volumes suficientes para o abastecimento das populações daqueles municípios, poderia ser transposta por adução, o que seria um processo muito mais barato. Além do mais, entendemos que o volume previsto para ser retirado do São Francisco através desse eixo (28 m³/s), é exorbitante, o que nos faz acreditar na tese do uso dessa água para o grande capital.
Pernambuco possui um potencial de 3,4 bilhões de m³, distribuídos em 132 represas de porte médio. Somados a este manancial, o estado dispõe do aqüífero Jatobá, que abastece os municípios de Arcoverde, Ibimirim e Sertânia e de uma fronteira molhada com o rio São Francisco, de aproximadamente 500 km, a qual já vem sendo explorada sistematicamente, com a adução de suas águas para Araripina (adutora do Oeste) e Salgueiro (adutora de Salgueiro), municípios estes pertencentes a bacia do rio São Francisco. Nestas aduções, as tubulações utilizadas obedecem a um determinado dimensionamento (70 cm de diâmetro) capaz de satisfazer ao abastecimento das populações daqueles municípios do sertão pernambucano (a adutora de Araripina abastece os municípios de Ipubi, Ouricuri, Santa Cruz, Santa Filomena e Trindade e a adutora de Salgueiro abastece os municípios de Parnamirim, Serrita, Terra Nova e Verdejante), com uma vazão de 0,5 m³/s.
A Paraíba possui as represas Coremas / Mãe-d´água, as quais, juntas, acumulam um volume estimado em cerca de 1,3 bilhões de m³. Essas represas resolveriam os problemas de abastecimento das populações de todo o sertão paraibano por um período de 20 anos, no mínimo. De acordo com José Patrocínio, consultor e professor aposentado da Universidade Federal de Campina Grande, o estado da Paraíba possui o reservatório de Boqueirão, com capacidade máxima de acumulação de cerca de 438 milhões de m³, que abastece a cidade de Campina Grande e outras 11 pequenas cidades vizinhas. A região metropolitana de Campina Grande passou por sérios problemas de abastecimento, após o período de seca havido entre os anos de 1997 e 1999, agravados, ainda, pela falta de gestão do reservatório e da bacia do Alto Paraíba, com a implantação de sistemas de irrigação mal conduzidos, dimensionados a consumirem volumes excessivos (a atividade praticada na bacia consumia volumes estimados em 1.000 l/s), além de uma descarga de fundo descontrolada de cerca de 200 l/s. Resolvidos os problemas dos gastos d´água desnecessários, através de um gerenciamento coerente em toda a sua bacia, a represa se encontra, atualmente, com mais de 80% de seu volume preenchidos e tem uma capacidade de regularização, com 100% de garantia, de 1.781 l/s. A população atual atendida pelo reservatório é de 470.000 habitantes, aproximadamente, dos quais 367.874 só em Campina Grande. Segundo a Cagepa, concessionária do serviço de abastecimento e esgotamento sanitário da Paraíba, a vazão bruta retirada do reservatório para abastecimento humano, à taxa de 200 litros por habitante por dia, oscila, hoje, em torno de 1.000 l/s. A projeção da demanda para o ano de 2025 (população total de cerca de 530.000 habitantes) atingiria 1.512 l/s. Portanto, Campina Grande e os demais municípios vizinhos atendidos pela represa de Boqueirão têm água suficiente para o atendimento das necessidades de suas populações pelo menos nos próximos 18 anos, não se justificando, portanto, a realização do projeto de transposição do rio São Francisco para aquela região.
A grata surpresa oferecida ao povo do Semi-árido ficou por conta da edição, pela Agência Nacional de Águas – ANA, do Atlas Nordeste de abastecimento urbano de águas.
Trata-se de um minucioso diagnóstico hídrico de 1.112 municípios nordestinos com mais de cinco mil habitantes e 244 municípios abaixo desse quantitativo, com propostas de obras para solucionar os problemas de abastecimento humano até 2015. O seu alcance é grandioso: através de 530 obras, a um custo de 3,6 bilhões de reais (praticamente metade do custo inicial previsto no projeto da transposição do São Francisco), o Atlas prevê o abastecimento de cerca de 34 milhões de nordestinos (praticamente o triplo de pessoas previstas na transposição) em todos os estados, inclusive o norte de Minas Gerais. Quando somada essa população (34 milhões) com a população do meio rural do Semi-árido nordestino, assistida pela Articulação do Semi-árido Brasileiro (cerca de 10 milhões de pessoas) através do uso de tecnologias apropriadas, é de se supor que boa parcela de toda população nordestina, rural e urbana, hoje estimada em mais de 47 milhões de pessoas, venha a ter seus problemas de abastecimento resolvidos.
No diagnóstico realizado pelo Atlas, foram identificados problemas de escassez hídrica em algumas localidades das regiões agrestes dos estados da Paraíba e Pernambuco, inclusive com propostas de solução através da adução das águas existentes na região.
É importante serem socializadas essas informações, tendo em vista a forma de tratamento dessas questões nos novos cenários que estão sendo postos. A utilização das águas do rio São Francisco, fora de sua bacia hidrográfica, não é proibida, principalmente quando o uso das águas for destinado ao abastecimento humano e animal, isso em caso de comprovada escassez. O Atlas Nordeste propõe que o acesso à água, nas referidas regiões agrestes dos estados de Pernambuco e da Paraíba, se dê por intermédio de adutoras, com o que estamos de pleno acordo.
Finalmente, o principal propósito da Caravana foi o de chamar atenção sobre essas inconsistências existentes no projeto de transposição do rio São Francisco e mostrar que os problemas de abastecimento do Nordeste podem e devem ser solucionados através de alternativas mais simples e mais baratas, alternativas essas que trazem resultados significativos na melhoria da qualidade de vida de toda população.
Recife, 07 de setembro de 2007.
João Suassuna- Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e articulista do EcoDebate
publicado pelo EcoDebate.com.br – 08/09/2007