Recarga de aquíferos versus vazões do Velho Chico, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] O rio São Francisco, nosso Velho Chico, como qualquer outro rio, é formado da união de córregos e ribeirões, produzindo crescimento de vazões ao longo de sua calha principal e à medida que ele avança da Serra da Canastra até a foz. Este conhecimento é meio intuitivo, até, e normalmente não passa por uma análise mais detalhada do desenvolvimento do fenômeno. Daí são originadas interpretações e conclusões muitas vezes equivocadas sobre as variações de vazões que ocorrem ao longo de cada ano hidrológico e de um ano hidrológico para outro. Há um trabalho sendo divulgado recentemente, onde pesquisadores do National Center for Atmospheric Research debitam a queda de 35% da vazão do rio São Francisco, nos últimos 50 anos, aos efeitos do aquecimento global. Não quero ir ao extremo, dizendo que não. Poço até aceitar que pequena parte da referida queda possa ser assim explicada, mas fenômenos naturais dificilmente são produzidos por um único fator. Aliás, isso é até perigoso, pois acaba desviando as atenções de outros comportamentos importantes.
Toda a pujança do Velho Chico começa em milhares de pontos de emergência de aquíferos, as nascentes, distribuídas pelas cabeceiras das pequenas bacias que dão origem aos córregos. A Figura mostra a parte do ciclo hidrológico responsável pela origem e manutenção das vazões dos cursos d’água (córregos, ribeirões e rios).
Durante uma chuva forte, ou logo após, a vazão do córrego, na sua origem, é formada pela quantidade de água que chega até ele pela enxurrada e pela nascente. Já na ausência da chuva, o córrego é inicialmente sustentado apenas pelo volume de água emergido da nascente. O fluxograma da Figura mostra, ainda, que tanto os volumes da enxurrada (Qex) quanto os provenientes da nascente (Qn) são constituídos por parte dos volumes de água de chuva (Qc) que atingem a superfície da bacia drenada pelo córrego. Mas é importante notar que os volumes de chuva, ao atingirem a superfície da bacia, podem, numa visão rápida e simplificada, tomar três opções de caminhos: a) serem retidos por molhamento de superfícies de objetos, de vegetação e de construções e daí evaporados, voltando à atmosfera; b) escoarem pela superfície do solo, em forma de enxurradas, indo diretamente para o córrego; e c) penetrarem no solo (infiltrarem). Do volume que infiltra, um pouco fica retido nas primeiras camadas de solo, onde atuam as raízes das plantas, e acaba sendo retirado por elas e transpirado (volume evaporado + volume transpirado = volume evapotranspirado). O restante desce pelo perfil do solo até encontrar uma rocha impermeável e passa a saturar a camada de solo logo acima, formando um depósito que é o aquífero, também conhecido como lençol freático. Sobre os processos discutidos neste parágrafo, vale a pena o leitor ver também o que escrevi no EcoDebate em 15/07/2009 (Hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas: Conservação de nascentes).
Se a origem é sempre a chuva, é fácil ver que quanto maior o volume de enxurrada produzido por um evento, menor será o volume a ser recebido pelo aquífero. Outro problema causado pela predominância de enxurradas é o aumento rápido de vazões dos córregos, durante chuvas fortes, e a queda acentuada nos períodos de estiagens, podendo chegar à intermitência, nos casos mais graves. Pode ser até que a vazão média anual na foz do rio, dependendo da metodologia de cálculo, não tenha mudado muito ao longo dos anos, pois quer por enxurradas ou por nascentes, uma boa parte das águas de chuva vai acabar chegando lá. Mas a vazão de estiagem, importante para a manutenção do rio e para as necessidades de consumo, será muito influenciada pela predominância da enxurrada em relação à infiltração e ao abastecimento do aquífero. No caso do Velho Chico, a análise hidrológica do comportamento natural do rio fica prejudicada pela interferência das barragens e, em breve, será afetada pelos efeitos da transposição.
A Figura mostra que parte da água de chuva que atinge a superfície da bacia volta à atmosfera por evapotranspiração (evaporação + transpiração), variando de 65 a 75% em regiões tropicais, o que é o nosso caso. Por outro lado, em pelo menos 60% da área da bacia do Velho Chico, as chuvas têm totais anuais superiores a 1.200 mm. Daí poder sobrar valores entre 300 e 420 mm para abastecimento dos aquíferos. Valores de chuvas muito baixos (entre 500 e 700 mm) só ocorrem, na realidade, em menos de 10% da área da bacia. No estudo mencionado no início deste artigo, os pesquisadores reconhecem que houve apenas uma leve queda nos níveis de chuvas no período de 50 anos, mas que houve um aumento sensível de temperatura, sugerindo acréscimo dos valores evapotranspirados. Vamos, a seguir, discutir um pouco mais este fenômeno.
As quantidades evapotranspiradas dependem de duas condições básicas: de água e de energia. Qualquer uma dessas condições é capaz de regular os montantes devolvidos à atmosfera. Quando as duas são abundantes, as perdas são máximas. No caso da bacia do Velho Chico, e na maior parte do tempo, existe energia para evaporar até 1400 – 1600 mm de água por ano. Mas isso acaba não ocorrendo, pois as chuvas estão concentradas em períodos curtos do ano e no restante do tempo a umidade passa a ser fator limitante. Daí ser possível afirmar que a evapotranspiração, nas partes da bacia que são mais responsáveis pelas vazões (Minas e Bahia perfazem 94%), deve estar com média em torno de 70 % dos totais de chuvas recebidos por elas, o que daria algo como 840 mm, restando 360 mm (de uma chuva total de 1200 mm) para abastecimento dos aquíferos. Mesmo que o aquecimento global faça com que as temperaturas médias subam 2 a 30 C, isso pouco irá alterar as taxas de evapotranspiração, pois tais aumentos não encontrarão umidade suficiente para provocar maiores estragos. Mas tudo isso será verdade se a bacia for eficiente em colocar os 360 mm, por exemplo, nos reservatórios subterrâneos, como no importante aquífero Urucuia, que ocupa o oeste da Bahia e avança um pouco pelo noroeste de Minas Gerais, com excelente contribuição para a vazão do São Francisco. E os volumes nele armazenados estão a profundidades suficientes para colocá-los a salvo da ação da energia de evaporação existente na superfície nos meses secos e quentes, como agosto/setembro/outubro. Se assim for, o Urucuia e outros aquíferos poderão manter boas vazões de nascentes, mesmo nos períodos de estiagens, garantindo valores mínimos suficientes para manterem a pujança do Velho Chico e os volumes de água necessários para os diversos usos demandados.
Um problema que traz preocupações em relação ao Urucuia é a possível compactação do solo pela intensa atividade agropecuária que está se desenvolvendo no oeste da Bahia, com culturas de grãos, café, soja e criação de gado. O solo é naturalmente poroso, o que tem garantido boas recargas do aquífero, mas o seu uso intensivo precisa ser acompanhado por práticas complementares de conservação, com fundamentos hidrológicos, visando compensar prováveis perdas de capacidade de infiltração. Práticas complementares porque não será viável manter um bom comportamento hidrológico das pequenas bacias que se desenvolvem sobre o Urucuia apenas com áreas de preservação permanente e de reserva legal. As áreas de culturas e de pastagens também precisam manter suas capacidades de absorção de águas de chuvas, produzindo o mínimo de enxurradas. Usos intensivos já estão provocando deficiências de infiltração em outras regiões da bacia e há muito tempo, empobrecendo outros aquíferos, enquanto aumenta a demanda de água e o risco de escassez.
Outro problema que também traz preocupações é a construção de represas com a formação de grandes lagos como o de Sobradinho (4.214 Km2), de 1.979. Aí não há limitação de umidade. Há, sim, uma enorme superfície líquida, possibilitando altas taxas de evaporação durante os meses quentes e secos e que podem chegar a 6,5 mm/dia, o que seria suficiente para uma queda de vazão em torno de 130 m3/s, a jusante da barragem. Mas ainda assim o aumento de 2 a 30 C na temperatura não teria causado aumentos significativos nas quedas de vazões do lago, de 1.979 até hoje.
Para as últimas considerações, convido o leitor a rever o fluxograma da Figura e a acompanhar os caminhos que levam a conclusões bastante óbvias, tais como:
a) Se as águas de chuva forem quase todas transformadas em enxurradas, os córregos e depois os rios terão aumentos bruscos de vazões, com a chegada rápida de grandes volumes de água aos seus leitos. Os cursos d’água serão torrenciais e poderão provocar cheias e inundações a jusante. Cessadas as chuvas, as vazões serão mínimas, podendo, em casos extremos, produzir cursos d’água intermitentes. As enxurradas são aumentadas pelas impermeabilizações produzidas nas superfícies das bacias hidrográficas, quer por pavimentações de ruas e de outros espaços urbanos, quer pelo uso intensivo de áreas rurais para fins agropecuários. O pisoteio de pastagens localizadas em encostas, por exemplo, diminui a porosidade superficial do solo, dificultando a infiltração e aumentando as enxurradas. O problema é que no estágio atual de consumo não dá mais para reduzir tais práticas intensivas. Há de se encontrar alternativas às florestas nativas para conciliar produção e infiltração. Participo de um grupo que tem feito experiências com sistemas artificiais de recarga e que estão apresentando bons resultados para situações específicas. A bacia do Velho Chico está necessitando, urgentemente, desse tipo de trabalhos experimentais para avaliação de alternativas viáveis de recarga de aquíferos para os seus diferentes ecossistemas, evitando o uso de tecnologias que são apresentadas como salvadoras da pátria para quaisquer condições. Os ecossistemas hidrológicos de pequenas bacias são muito sensíveis e exigem tratamentos diferenciados;
b) Se boa parte de Qc for transformada em Qa, os valores de Vc serão mais bem distribuídos ao longo do ano, pois os tempos de transferência das águas dos aquíferos para as nascentes são bem mais longos, dada a menor velocidade de deslocamento da água no interior do solo, em relação à da superfície. Mesmo que as quantidades totais de água saídas das bacias sejam praticamente as mesmas, pois a diminuição de Qn se dá pelo aumento de Qex, este último provoca concentrações de vazão nas épocas chuvosas, o que não é de interesse para o bom comportamento hidrológico do curso d’água. Até são bem-vindas as quedas de vazão, mas das máximas ou das cheias, possibilitando o aumento da mínimas. O aumento da amplitude de vazão que vem ocorrendo entre máximas e mínimas, consideradas inevitáveis por muitos hidrologistas de grandes bacias, podem ser corrigidos com conhecimentos de hidrologia aplicada a pequenas bacias e com práticas apropriadas de manejo;
c) Se as águas dos aquíferos (Qa) não emergirem, formando nascentes (Qn), há sempre a possibilidade de serem extraídas por poços furados ou perfurados (Qp);
d) Se for possível, através do manejo da vegetação, fazer com que a evapotranspiração fique próxima do seu nível potencial mais baixo, 65%, por exemplo, isso poderá ter reflexos positivos no aumento das vazões, desde que os valores economizados sejam conduzidos aos aquíferos e neles armazenados.
Ao reler o artigo tive uma ligeira sensação de que andei pulando de galho em galho e até voltando ao mesmo galho. Se o leitor tiver a mesma sensação, desculpe-me, pois isso terá ocorrido pela minha ansiedade em transmitir conhecimentos pouco discutidos no formato de divulgação científica. Primeiro porque tem caráter multidisciplinar, dificultando a abordagem, e segundo porque fica dominado por duas vertentes, a dos hidrologistas, que se refugiam atrás de suas fórmulas e equações matemáticas, e a de muitos ambientalistas que propagam ideias confusas ou são fãs de receitas milagrosas. Por isso eu acredito que o exame do assunto, sob os seus diversos ângulos, seja fundamental para levá-lo aos vários segmentos da sociedade que tenham um mínimo de interesse por questões tecnológicas. Popularizar, sim, mas sem abrir mão de conceitos científicos e de procedimentos adequados de aplicação de técnicas de conservação.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate ovalente{at}tdnet.com.br
EcoDebate, 03/08/2009
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