A privatização da água, artigo de Ana Echevenguá
A memória dói e ensina: os recursos naturais não-renováveis vão sem dizer adeus e jamais voltam. Eduardo Galeano.
No nosso cotidiano, somos bombardeados com as seguintes informações, assustadoras, sobre o futuro da água:
– Acesso universal à água limpa é vital à saúde pública. Mas a oferta de água e de serviços de saneamento básico e saúde pública não mais satisfazem às necessidades da população, que cresce de forma vertiginosa.
– Mais de 1 bilhão pessoas, principalmente no mundo em desenvolvimento, não têm acesso à água.
– Aproximadamente, 2,4 bilhão de pessoas não têm acesso aos serviços de saúde pública.
– Mais de 2 milhões de crianças morrem, ao ano, pela falta de acesso à água limpa e aos serviços de saúde pública.
– O Banco Mundial predisse que, em 2025, 2/3 da população mundial sofrerá com a falta de água.
– Água pré-paga implica exclusão do consumidor de baixa renda.
– A água é um monopólio natural e seu mercado é dominado por algumas companhias multinacionais, sem competição de mercado.
– A privatização da água pode destruir mais de 6 bilhões de pessoas do mundo.
Mas há textos com boas notícias. Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, autor de “As Veias Abertas da América Latina” e “Memórias do Fogo”, escreveu um artigo estupendo “Bolívia, o país que quer existir”, cujo trecho ora reproduzo:
“Em 2000, um caso único no mundo: uma localidade “desprivatizou” a água. A chamada “guerra da água” ocorreu em Cochabamba. Os camponeses marcharam, saindo dos vales, e bloquearam a cidade, e também a cidade se rebelou. Respondendo com balas e gás lacrimogêneo, o governo decretou o estado de sítio. Mas a rebelião coletiva continuou, impossível de parar, até que, na investida final, a água foi arrancada das mãos da empresa Bechtel e as pessoas recuperaram a irrigação de seus corpos e de suas plantações. (A Bechtel, com sede na Califórnia, agora recebe o consolo do presidente George W. Bush, que a presenteia com contratos milionários no Iraque)”.
Claro que a privatização da água é uma realidade. E onera, de imediato, o acesso a este recurso vital, em especial em países do terceiro e do quarto mundo – onde a renda per capita é menos que U$2/dia.
Por isso, os efeitos da privatização são nefastos:
– devastam o mundo em desenvolvimento, forçando as pessoas a escolher entre comida e água;
– e proliferam epidemias de doenças e de morte.
Se o impacto social desta majoração mata, isto é política homicida! E qualquer política encorajadora de propagação de doença e de morte é condenável.
Paralelo a este, temos outros dois problemas relacionados ao acesso à água:
– o aumento vertiginoso da população mundial e
– a redução da provisão de água no planeta.
Este desastre proporciona, para as grandes corporações multinacionais, oportunidade de lucro certo. A revista Fortune passou a denominar a água como o “óleo do século XXI”.
Por quê? Porque quem controlar este recurso, terá, nas mãos, amplo poder econômico e político.
As regras do FMI e do Banco Mundial
A política estrutural do FMI e do Banco Mundial incentiva o controle da água. Através da “condicionalidade cruzada”, estes organismos impõem aos países pobres ou subordinados a privatização e a mercantilização da água em troca de empréstimos.
Assim, eles não autorizam empréstimos que propiciem o acesso universal à água e ao saneamento básico. Ao contrário, seus empréstimos condicionam os governos à privatização. De que forma?
– favorecendo as companhias de água multinacionais ao fomentar programas de privatização de água (o Banco Mundial prega que o setor privado é mais eficiente que o público; que é melhor capacitado para solucionar crises);
– exigindo que os governos carentes substituam o subsídio público pela cobrança integral dos custos com o saneamento básico. Com isso, os consumidores têm que pagar o preço total dos serviços d’água;
– exigindo que os governos privatizem a água sem qualquer estudo local fundamentado e sem a oitiva dos administrados.
A falácia da privatização
Quando os serviços de água são privatizados, há uma falsa percepção que o fardo financeiro passou do setor público para o privado. A empresa promete consertos, melhorias… enfim, promete o que não vai cumprir. Ela não investe em reestruturação e expansão dos meios para utilização e tratamento de água. Em geral, transfere algumas das responsabilidades que assumiu para terceiros, através de arrendamentos, administração terceirizada e contratos de serviço destituídos de quaisquer investimentos.
Ora, isso era esperado! Se a privatização já implicou assolamento econômico e socioambiental em outros setores, provavelmente, o mesmo ocorrerá com o controle de sistemas de água.
Conclusão
A água pode ser tratada como mercadoria? A teoria afirma que não. Para o diretor-geral da UNESCO, Frederico Mayor, “esta fonte rara, essencial para a vida, deve ser considerada como um tesouro natural que faz parte da herança comum da humanidade”.
O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU declarou, em Genebra, em 27 de novembro de 2002, o acesso à água como direito humano indispensável. Declarou ainda que a água é um bem público, social e cultural; ou seja, um produto fundamental para a vida e a saúde e não um produto básico de caráter econômico.
Infelizmente, esta declaração, que não tem força de lei, não foi assimilada pelos detentores do poder mundial. Eles insistem em transferir o controle dos recursos hídricos do setor público para o setor privado.
Ora, se a água é uma necessidade básica do ser humano, um direito humano fundamental, sua propriedade não pode ser entregue a ninguém. Sequer a entidades cujo único propósito é a maximização de lucros. Se isso ocorrer, cada ser vivo é diretamente prejudicado. E está sujeito à morte.
O que podemos fazer então?
1. Precisamos recusar qualquer forma de privatização, mercantilização e comercialização baseada no “valor econômico” da água. A água é um bem de domínio público. Tem gente boa abraçando esta causa. Junte-se a eles!
2. Devemos canalizar energia e recursos para proteger e conservar o manancial local existente para socorrer as populações vulneráveis, incentivar o controle de poluição e fomentar a conscientização pública sobre esta crise iminente que ameaça a vida.
3. Além disso, podemos exigir novas posturas do FMI e do Banco Mundial. Seus contratos de empréstimos não devem impor condições abusivas e ilegais que exijam a privatização de serviços de água.
Cabe a eles financiar AJUDA. Países em desenvolvimento não precisam de novos débitos. Precisam de ajuda na elaboração de projetos para reabilitação da saúde pública e para a expansão dos serviços de água e de saneamento básico. Isso é uma questão de saúde pública diretamente relacionada à sadia qualidade de vida.
Ana Echevenguá, advogada ambientalista, coordenadora do programa Eco&Ação, email: ana@ecoeacao.com.br
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publicado pelo EcoDebate.com.br – 13/09/2007