Nova safra da cana, mais exploração, por Maria Luisa Mendonça
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
(“Morte e Vida Severina”, João Cabral de Melo Neto)
Adital – Setembro de 2007. Uma nova safra da cana começa em Pernambuco. Nesta safra, a produção de cana-de-açúcar deve ser 15% maior do que no ano passado, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Essa expansão deve-se principalmente ao aumento da produção de etanol, que deve chegar a 21 bilhões de litros, enquanto em 2006 o Brasil produziu 17 bilhões de litros do produto.
No município de Aliança, Severino acorda às três da manhã. Antes das cinco, já está cortando cana. É trabalhador clandestino na usina São José. Já teve a carteira assinada, mas depois de duas safras só consegue trabalho por dia. Sua tarefa diária é cortar trinta “braças”, o equivalente a setenta metros quadrados. O feitor diz que isso soma três toneladas de cana, mas Severino sabe que corta de sete a oito toneladas por dia.
Em terreno íngreme, ele sobe e desce a colina, entre as fileiras de cana. Seus movimentos são precisos: primeiro se abaixa para cortar rente ao chão e depois corta a folhagem em cima. Em ritmo constante, só pára pra comer quando o sol está alto. Já passa das onze horas. Na marmita ainda tem um pouco de cuscuz. A comida pouca quase não faz “efeito”. E Severino volta pro corte da cana. Sobe e desce ladeira, se abaixa e levanta tantas vezes que nem sente mais o corpo. As mãos nem se fala! O patrão não dá luva nem bota. O salário não dá nem pro sabão de lavar a roupa encardida de vinhoto e cinza da cana queimada.
Cinco da tarde, já quase anoitecendo, Severino volta pra casa. Na janela seus sete meninos esperam. No fogo ainda tem brasa, mas a panela está vazia. Severino recebeu $120 reais na semana passada, o salário de duas semanas. Mas a feira só deu pra seis dias. A outra metade do salário só vem na próxima semana. Na casa de Severino tem duas cadeiras. Não tem mesa nem cama. Quando não está chovendo, dá pra pegar água no rio. Mas hoje não. Escorrega muito e é longe. Severino deita no chão e espera por outros dias.
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Severina Maria mora no engenho Meia Légua há quarenta anos, no município de Cortes, Mata Sul de Pernambuco. Chegou com seu pai quando tinha oito anos. A gente chama essa região de Zona da Mata, porque antes era tudo mata Atlântica. Agora as usinas plantam cana até na beira dos rios. O riacho de Meia Légua está coberto de cana.
O trabalho no canavial Severina conhece bem: semear, botar adubo, veneno, limpar mato, cortar cana… Já fez de tudo um pouco. Só parava de trabalhar quando sentia as dores do parto, mas voltava logo depois de poucos dias de resguardo. Nunca recebeu atestado quando estava grávida. Teve quatorze filhos, mas hoje são dez.
Agora o engenho está falido, mas o Incra nunca veio fazer inspeção. Severina não tem pra onde ir, tem medo de ser despejada. O senhor de engenho não deixa plantar roça. Claro! Se Severina tivesse um pedacinho de terra pra plantar macaxeira, inhame, milho… nunca teria ido pro corte da cana. Nem ela nem ninguém.
Depois de tantos anos de espera, Severina quase perdeu a esperança. Sempre diz a seus filhos pra não deixar de estudar, apesar de que mesmo quem sabe ler só encontra trabalho na cana, e é só por cinco meses, na época da safra. Não tem outro emprego na região. A gente passa fome.
Mas Severina está orgulhosa porque quer aprender a ler. Já sabe escrever metade do nome e está aprendendo a outra metade. Quarenta anos de trabalho no canavial e o que ganhou foi doença. O sonho de Severina era ter uma máquina de costura. Ela sabe costurar muito bem. Sempre fez as roupas dos meninos à mão, com saco de estopa, como dava. Mas se tivesse uma máquina de costura a vida poderia ser melhor.
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Maria Severina trabalhou nos canaviais quase toda a vida. Como outras severinas, começou a trabalhar cedo, com apenas doze anos. Um dia ela se acidentou, cortou a perna e não tinha como ir pro hospital. O trabalho no canavial causa doença nos pulmões por causa da queimada e do veneno. Aos 41 anos, Severina ainda é forte, mas sabe que quem trabalha na cana morre mais cedo.
É por isso que Severina nunca mais quer voltar pro corte da cana. Depois de ser expulsa dos engenhos, se recusa a ir para a favela. Hoje ela coordena um acampamento dos sem terra no município de Palmares. Esse engenho está falido, como tantos outros aqui em Pernambuco.
Mesmo na beira da estrada, a roça do acampamento tem de tudo: macaxeira, milho, tomate, melancia. O feijão já foi colhido e durou todo o inverno. O maior problema é alimentar os bebês porque o preço do leite está pela hora da morte. Futuro? Severina não vê futuro para ela, só pros filhos. É por isso que luta pela terra.
O Incra não vem e a polícia já ameaçou dar despejo. Mas Severina tem esperança. O que ela acha do acampamento? Ótimo! Os barracos têm que ser bem limpos e organizados. Aqui é bem melhor que morar na rua, porque um ajuda o outro. E a gente não passa fome, porque no corte da cana, você trabalha, trabalha, e não dá o que comer.
Maria Luisa Mendonça Jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina
Sei bem que sofrimento é esse, me refiro a todos cidados.
Poís, já fui um deles.
Hoje moro em são paulo, e trabalho em uma indústria de alimentos.
Pretendo voltar a pernambuco para ganhar dinheiro como patrão, irei comprar um caminhão para transportar cana para usina com meu pai.
Obrigado