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Transgênicos no governo Lula: liberdade para contaminar, por Marijane Vieira Lisboa

[EcoDebate] Entre as diversas decepções que o governo Lula reservou ao seu eleitorado, a política ambiental foi uma das mais notáveis. Capitaneado por uma figura emblemática como Marina Silva, fortemente apoiada por organizações ambientalistas e movimentos sociais como o MST, a CUT, tudo indicava que o Ministério do Meio Ambiente assumiria um papel destacado no conjunto das políticas públicas do governo Lula. Surpreendentemente, não só a atuação do MMA foi medíocre e apagada, como em algumas questões o governo Lula significou um real retrocesso frente ao governo FHC. Uma destas foi o fato de ter retirado da gaveta o projeto de transposição do Rio São Francisco, que no governo FHC contou com a forte oposição do Secretário Executivo do Ministro Sarney Filho, Dr .José Carlos de Oliveira, mais tarde ministro de Meio Ambiente. Mas o retrocesso mais notável foi na área de biossegurança, ao se editar Medidas Provisórias para “legalizar” o plantio clandestino de soja transgênica e promulgar uma nova lei de Biossegurança com o intuito explícito de retirar do IBAMA os seus poderes constitucionais para avaliar estudos de impacto ambiental e conceder licença ambiental. Em seu tempo de ministro, Sarney Filho refutara energicamente propostas nesse sentido, pois considerava que tal medida significaria um retrocesso inaceitável para a legislação ambiental do país.

O objetivo desse artigo, portanto, é analisar as razões pelas quais tal tour-de-force aconteceu e dele extrair algumas conclusões a respeito da cultura política do PT e do governo Lula. Comecemos por uma recapitulação dos fatos relativos à questão da política sobre transgênicos no Brasil, até o momento da posse de Lula após a sua primeira eleição.

As problemáticas da biotecnologia e da biossegurança já vinham merecendo atenção de setores do governo federal desde o começo dos anos 90. Em 1995 foi aprovada uma lei de Biossegurança, a lei de n. 8974, lei que estabeleceu normas para o uso de técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. Apesar de diversos problemas técnicos e passagens confusas, a lei mantinha as atribuições constitucionais do IBAMA e da ANVISA, para concederem licenciamento ambiental e registros de saúde. No entanto, o fato de que a comissão constituída para avaliar a biossegurança de transgênicos – composta por funcionários de governo e cientistas – estivesse sob a égide do Ministério da Ciência e Tecnologia mostrava que a preocupação central era de ordem tecnológica e não de biossegurança, o que se refletiria no fato de que a maioria dos cientistas escolhidos pelo sucessivos ministros de Ciência e Tecnologia fossem especialistas em biotecnologia, e pouco ou nada entendessem de biossegurança ambiental e de saúde.

O investimento do país em pesquisa com transgênicos datava do começo da década de 90, quando a EMBRAPA assinara protocolos de cooperação com a MONSANTO para desenvolver plantas transgênicas, em particular variedades de soja, que serão mais tarde as variedades de soja transgênica Roundup Ready, que serão liberadas no Brasil. As variedades de soja tinham sido desenvolvidas pela EMBRAPA, enquanto a técnica da transgenia pertencia e continuava sendo segredo industrial da MONSANTO, segundo regia o contrato entre as duas empresas.

Mas foi somente em 1998, quando a CTN-Bio decidiu liberar o cultivo e consumo da soja transgênica no Brasil, que a questão dos transgênicos veio atrair a atenção do público. O Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) e a Greenpeace entraram na justiça com uma ação cautelar e obtiveram liminar, mais tarde seguida de sentença judicial, proibindo a MONSANTO e a União de liberarem o plantio e o consumo de soja transgênica no pais antes que fossem feitos os necessários estudos de impacto ambiental e de segurança dos alimentos. A batalha jurídica que daí se seguiu ainda não terminou. Mantida a cautelar pelo TRF, em 2001, em 2002 a Monsanto e a União obtêm uma vitória no TRF, cuja relatora lhes concede razão mas cujo voto não será unânime, permitindo com que o IDEC e a Greenpeace recorram da decisão..

Enquanto se desenrolava essa batalha jurídica, outra batalha acontecia no CONAMA, o Conselho Nacional de Meio Ambiente, órgão máximo do Ministério do Meio Ambiente para políticas ambientais. Ali se tratava de elaborar uma resolução que regulamentasse a forma como se faria o licenciamento ambiental de transgênicos. Formara-se um Grupo de Trabalho aberto, com ampla participação de representantes de diversos ministérios, empresas e organizações não governamentais, cujos trabalhos se desenvolveram com lentidão, pois os representantes do Ministério da Ciência e Tecnologia, do Ministério da Agricultura e da Indústria e Comércio, bem como os representantes das empresas de biotecnologia, faziam questão de retirar do IBAMA e da ANVISA as atribuições para avaliação de impacto no meio ambiente e na saúde. Era frequente que os representantes dos diversos ministérios fossem chamados à Casa Civil de modo a pressionarem o Ministério do Meio Ambiente a apoiar as posições pró-transgênicos nas questões polêmicas do Grupo de Trabalho. Um dos inquestionáveis méritos do mandato do ex-ministro Sarney Filho foi o de ter fincado pé na defesa das atribuições do IBAMA em realizar o licenciamento ambiental. A resolução 305, aprovada já no mandato do ministro José Carlos Carvalho, que sucedeu Sarney Filho nos últimos seis meses do governo FHC, manteve, portanto, a prerrogativa do IBAMA para licenciamento, fornecendo uma regulamentação detalhada de como deveriam ser realizados os estudos de impacto ambiental para transgênicos.

O fato de que o programa político da campanha Lula à presidência insistisse explicitamente em que não se permitiria a liberação de transgênicos caso não se pudesse afastar a preocupação com possíveis danos ao meio ambiente e à saúde e o apoio amplo que recebeu sua candidatura por parte dos movimentos sociais e organizações ambientalistas, tudo fazia supor que a questão dos transgênicos mereceria agora um tratamento transparente e conscencioso por parte do Executivo. Esperava-se que em vez da insuperável luta interna entre os Ministérios do Meio Ambiente e os demais ministérios, o governo Lula fosse capaz de adotar uma posição de governo, clara e coerente com seus princípios e compromissos assumidos.

Mas ainda antes de que Lula recebesse a faixa na Praça dos Três Poderes, um fato insólito chamou a atenção das organizações que integravam a Rede Brasil Livre de Transgênicos. Vários deputados do PT haviam aceitado um convite da MONSANTO para visitar sua sede no Mississipi e plantações de transgênicos na Índia e na África do Sul. Embora convenientemente o convite tenha se transformado, mais tarde, em um convite da Embaixada dos Estados Unidos, o resultado do tour foi a mudança de opinião de vários deputados petistas que passaram a defender abertamente os transgênicos, como o deputado Paulo Pimenta do Rio Grande do Sul, e o consequente racha da bancada petista em torno ao tema.

Os fatos que se seguiram permitem entender o tal tour como a manobra inicial de uma estratégia montada para justificar uma drástica mudança de posição do PT e do governo Lula na questão dos transgênicos. A criação de uma facção pró-transgênicos no PT punha o presidente Lula na cômoda posição de respeitar o debate interno, da mesma maneira como urgia aos seus ministros chegarem a uma posição conjunta, o que matematicamente significava a sujeição do Ministério do Meio Ambiente de Marina Silva e do Ministério de Desenvolvimento Agrário, de Miguel Rossetto, à maioria dos ministérios prró-transgênicos: Ministério de Ciência e Tecnologia, Ministério da Agricultura e Ministério da Indústria Comércio. Aliados iniciais como o Ministério da Saúde e da Justiça discretamente afastaram-se do debate, deixando Marina Silva isolada. A Casa Civil, embora adotando postura aparentemente neutra, tomava todas as medidas para que o torniquete das pressões políticas dobrassem a resistência do Ministério do Meio Ambiente. Essa estratégia se manifestou claramente na publicação de uma Medida Provisória que veio a permitir a colheita e consumo de soja transgênica plantada ilegalmente no Rio Grande do Sul.

Todos os esforços para buscar uma solução que não legalizasse a posteriori o plantio ilegal se frustaram frente aos argumentos políticos do Presidente da República e do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, sobre a conveniência de não se declarar guerra aos agricultores sublevados do Estado do Rio Grande do Sul e seu governador do PMDB, partido cortejado para ingressar na base de sustentação do governo. Basta recordar o episódio chocante de que enquanto a ministra Marina Silva não pode participar das negociações finais em torno daquela Medida Provisória por se encontrar em visita ao Xingu, a Casa Civil enviou um jatinho à Porto Alegre, para buscar o governador pemedebista. Nos acontecimentos que se seguiram, como a outra Medida Provisória que vai permitir que os agricultores plantem soja transgênica, ou mais tarde a negociação e o encaminhamento pelo Executivo de um projeto de lei para uma nova lei de biossegurança, a rigor, as mesmas manobras se repetiram.

Trata-se sempre de poupar ao presidente da República e à Ministra do Meio Ambiente o constrangimento de um embate público, ao qual forçosamente deveria se seguir a renúncia da ministra ao seu cargo. Em vez disso, provoca-se uma situação em que se torna politicamente justificável e recomendável – em nome da democracia interna e da governabilidade – que Lula ceda às tendências majoritárias tanto dentro do seu ministério, como no PT e na base parlamentar do governo. Para tal, é importante cuidar da composição dos grupos de trabalho internos, de modo que a facção pró-transgênicos tenha sempre a maioria. É importante também afastar aqueles funcionários dos ministérios que resolvam levar a sério as questões de biossegurança e não os interesses partidários, para o que basta uma reclamação junto aos ministros em questão. Fundamental, sobretudo, é garantir que a relatoria das Medidas Provisórias e projetos de lei caiam em mãos de deputados e senadores pró-transgênicos, do PT, pois assim o partido, vendo-se dividido, não terá condições de fechar posição de bancada. Finalmente, enquanto os ministros da Agricultura e Ciência e Tecnologia saem a público criticando os ambientalistas “fanáticos e obscurantistas”, Marina Silva se fecha em um silêncio obsequioso, talvez acreditando que seu comportamento leal a Lula lhe seja de algum valor e contentando-se em inserir nos textos negociados dispositivos que não serão, jamais obedecidos, como foi o caso da necessidade de rotulagem de alimentos transgênicos, na primeira Medida Provisória.

A recente aprovação pelo Congresso de uma Medida Provisória que regulamentava a plantação de transgênicos nas proximidades de Unidades de Conservação, na qual a bancada ruralista inseriu duas emendas, uma permitindo a comercialização de algodão ilegalmente plantado e outra reduzindo o quorum da CTN-Bio necessário para liberação comercial de cultivos transgênicos, seguiu o mesmo roteiro bem conhecido. Primeiro a Ministra do Meio Ambiente envia ao Executivo um texto original, com a promessa de que o presidente Lula vetaria todas as emendas oriundas da bancada ruralista, caso estas fossem aprovadas pela duas casas. Como era de se esperar, a bancada ruralista introduziu as duas emendas acima comentadas e a relatoria – que surpresa! – foi dada ao deputado do PT, Paulo Pimenta, o grande defensor dos transgênicos. Levada à votação, a bancada do PT rachou, embora o líder do PT na Câmara tenha se manifestado contra a emenda. Rachada, e sem que o governo fizesse quaisquer esforços para obter apoio de outros partidos – as emendas foram aprovadas. No Senado, a farsa se repetiu. O Senador Delcídio Amaral, muito sensível ao agronegócio em seu Estado do Mato Grosso do Sul, foi designado como relator e manifestou-se favorável a apoiar as emendas. A liderança de governo instruiu os partidos da base aliada à votarem da mesma forma, e a líder do Partido no Senado, a Senador Ideli Salvati, sentiu-se “forçada” a liberar a bancada para votar como quisesse, o que resultou na folgada aprovação do texto com as emendas. Uma carta com mais de 80 entidades e movimentos da sociedade civil, com quase 80 deputados federais e 7 senadores pediu então ao presidente da República que vetasse os dois artigos emendados. No dia 22 de março, o Presidente Lula sanciona a lei, vetando apenas o artigo que legalizava o plantio ilegal de algodão. O quorum necessário para a aprovar a introdução no meio ambiente de um transgênico se reduz a 14 conselheiros.

Essa resumida descrição das estratégias adotadas pelo governo Lula para aprovar a liberação de transgênicos sem ter que publicamente renegar suas posições anteriores, nem incompatibilizar-se frontalmente com os movimentos sociais de sua base de apoio ou expor sua ministra do Meio Ambiente à humilhação política, permite-nos agora analisar as razões pelas quais o PT teve que empreender tamanha mudança de rumos.

Em primeiro lugar, é evidente que o governo Lula, mais ainda do que o governo FHC, enfrenta dificuldades para reunir e garantir uma ampla base de apoio tanto partidária, quanto social. Enquanto o apoio da bancada ruralista ao governo FHC era um fato inconteste, o governo Lula necessita cortejá-la a todo tempo, sem nunca alcançar a graça de conquistá-la definitivamente. Extremamente forte na Câmara e no Congresso, com seus representantes distribuídos entre o oscilante PMDB e todos os demais partidos de oposição, a bancada ruralista soube utilizar-se desta maior vulnerabilidade política do governo Lula para cobrar a preço de ouro o seu apoio, senão mesmo a sua neutralidade. Um exemplo extraordinário desse regateio foi o fato de que o governador recém eleito do Estado do Mato Grosso, Blairo Maggi, tenha ido negociar em troca do seu apoio a Lula no 2ªturno, “a liberação de algodão e milhos transgênicos”, como se tais liberações fossem prerrogativas da presidência da República e não atribuições da CTN-Bio, especialmente constituída para tal..

O ex-ministro do Meio Ambiente do governo FHC, Sarney Filho, encontrava-se em uma situação muito mais confortável, pois não pertencendo ao partido do presidente e sim ao PFL e sendo filho do Senador Sarney, do PMDB, desfrutava de uma liberdade e também de uma consideração muito maior por parte da Presidência. Foram muitas as ocasiões nas quais Sarney Filho recorreu e obteve de FHC apoio para as suas políticas. Talvez o mais marcante desses episódios tenha sido o momento em que uma comissão mista, de deputados e senadores, aprovou uma medida provisória que reformava o Código Florestal e reduzia a extensão de matas nativas a serem preservadas em propriedades particulares. A comissão mista era composta majoritamente por ruralistas de amplo espectro partidário, o que fez com que ela fosse aprovada com apenas dois votos contrários, o do deputado federal Fernando Gabeira e o da então Senadora Marina Silva. Sarney Filho, que fora achincalhado pelos parlamentares em visita que lhes fizera na semana anterior, pediu e obteve o apoio de FHC : logo após a votação, o líder do governo, o deputado Federal Artur Virgílio, comunicou aos seus correligionários e membros de partidos aliados que o Presidente não enviaria a medida provisória ao Congresso enquanto ela não fosse modificada. No governo Lula, não só as posições defendidas por Marina Silva em assuntos ambientais vem sendo sistematicamente desprezadas em favor daquelas advogadas por ministros de outras pastas, como são frequentes os ataques públicos à sua pessoa e ao seu ministério, sem que o presidente erga a voz em sua defesa.

Em suma, é perfeitamente lógico afirmar que a principal razão pela qual o governo Lula legalizou o cultivo comercial da soja plantada ilegalmente no país, dispensando os devidos estudos científicos sobre biossegurança, e mais tarde modificou a legislação de biossegurança de modo a facilitar liberações futuras de outros cultivos, foram razões estritamente de oportunismo político. É bem provável que a maioria dos deputados, senadores e ministros que tiveram que se manifestar ou votar a respeito não tenham despendido mais que alguns minutos para tentar entender a questão. De fato, em questões consideradas como secundárias, o colégio de líderes negocia e suas bancadas seguem a orientação do seus líderes, sem questioná-la.

Para os movimentos sociais que constituem a base do governo Lula, no entanto, foi extremamente decepcionante o fato de que o PT considerasse esse tema tão irrelevante a ponto de negociá-lo com a bancada ruralista, o PMDB e outros setores políticos como moeda de troca para outros assuntos. A defesa de uma agricultura ambientalmente sustentável está estreitamente relacionada à preservação da biodiversidade, à busca da soberania alimentar, à proteção da agricultura familiar, à geração de renda para populações rurais e a uma política de reforma agrária consequente. Somam-se a esse complexo de temas interligados a visão da segurança dos alimentos e da segurança alimentar como direitos humanos, defendidos por entidades de consumidores e movimentos ligados à área da saúde. Assim, a temática dos transgênicos tem a capacidade de aglutinar segmentos diferenciados da Sociedade Civil, o que se pode constatar facilmente no amplo espectro de movimentos e organizações reunidas na Rede Brasil Livre de Transgênicos. Tratando-se de um governo fortemente comprometido com bandeiras políticas como a luta contra a fome, a Reforma Agrária e o combate à miséria, era de se esperar que o governo Lula percebesse a extrema importância de promover uma agricultura sustentável ecologicamente e socialmente justa, apoiada nos movimentos de pequenos agricultores.

Os primeiros meses do governo Lula deixaram claro, no entanto, que suas preferências e preocupações no que tange à sua política agrária voltavam-se antes de tudo para o agronegócio de exportação: soja, carne, açúcar. Isto não deve ser atribuído apenas à necessidade de compor sua base de sustentação parlamentar e conquistar apoio político de setores influentes da sociedade, mas corresponde também à concepção de desenvolvimento predominante no governo Lula. Embora o PT e o programa político da candidatura Lula afirmassem estarem comprometidos com políticas de soberania alimentar, desenvolvimento sustentável e reforma agrária, tais questões nunca foram encaradas como elementos centrais, estruturantes de um novo paradigma de sociedade. Eram vistas, no máximo, como políticas subsidiárias a serem adotadas na medida em que não prejudicassem aquilo que se considera como essencial ao desenvolvimento: o crescimento econômico. E tratando-se de crescimento econômico, o PT abraçava o que havia de mais tradicional no país: o estímulo ao agronegócio exportador. Isso significava ignorar os impactos ambientais negativos de uma agricultura baseada na monocultura, no uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes e água, o que leva forçosamente ao empobrecimento da biodiversidade, à perda da fertilidade de solos e ao esgotamento dos recursos hídricos. Também significa optar por uma agricultura cuja mecanização crescente conduz a um aumento do desemprego rural, arruina o pequeno agricultor e consequentemente fomenta a expansão da fronteira agrícola em terras do Cerrado e da Floresta Amazônica.

Nada mais ilustrativo desta concepção desenvolvimentista do PT do que o infeliz improviso do presidente da República ao visitar o mesmo governador sojeiro de Mato Grosso, a quem nos referimos anteriormente e declarar que “índios, quilombolas e a legislação ambiental eram os maiores obstáculos ao desenvolvimento do país”. O caráter de improviso da fala presidencial é testemunha da sua sinceridade. É assim que pensa a ampla maioria dos quadros do PT e quanto mais alta é a sua posição na hierarquia, mais esses quadros interiorizaram o discurso e a prática “desenvolvimentista”, que identifica desenvolvimento social com crescimento econômico e em nome do qual se justifica sacrificar o meio ambiente e a justiça social em prol dos ganhos econômicos de curto prazo, para uma reduzida elite de brasileiros.

Dos propósitos socialistas do passado restam “as políticas compensatórias”, em que o Estado tenta corrigir os piores excessos advindos deste crescimento econômico logicamente excludente socialmente. O mérito de Lula é deixar escapar o que pensa, enquanto a liderança do PT aprendeu a esconder de suas bases o que realmente pensava. Não podendo sustentar-se sem o apoio dos movimentos sociais, o PT e o governo Lula, portanto, sustentam um discurso que não corresponde à sua prática real, tentando com isso de esquivar-se às críticas que avolumam-se em sua base social e garantindo que as lideranças de entidades e os movimentos sociais continuem prestando-lhe apoio. É óbvio que não se trata de um fenômeno recente essa mudança de mentalidade no seio da elite dirigente do PT, de que é prova o desligamento de figuras históricas desse partido já em meados dos anos 90.

Portanto, tanto o governo FHC quanto o governo Lula são muito próximos no que tange à sua concepção do que seja “desenvolvimento”: crescimento do PIB, balança comercial positiva graças às exportações, política de favorecimento de produtos de pouco valor agregado e externalização dos custos ambientais e sociais como é o caso da soja, carne, minério de ferro e outros que possam angariar divisas a curto prazo, investimento público em infra-estrutura como vetor de crescimento econômico e financiamento público do investimento privado, crença em que as benesses do crescimento econômico acabam por mitigar a miséria social, gerando emprego, renda e receita para o Estado. Não importa que a realidade desminta essas crenças, que a desigualdade social permaneça ou sofra ridículas reduções, que o desmatamento da Floresta Amazônica siga impávido- ainda que em ritmo menor, talvez devido ao momentâneo despencar do preço da soja no mercado externo – que o Cerrado esteja se tornando um mar de soja, que terras agricultáveis se tornem imprestáveis, que novas vagas de trabalhadores sem terra venham engrossar as fileiras do MST, que a miséria nas cidades aumente e junto com ela as mazelas da criminalidade e da insegurança. A força das ideologias está em sua explicação simples e confortante da realidade, e não em sua lógica ou veracidade. O PT que chegou ao poder já havia sido ganho para essa concepção desenvolvimentista, que substituiu os seus ideais socialistas insustentáveis após a Queda do Muro.

O lamentável desempenho do governo Lula na questão dos transgênicos, bem como em outros temas ligados à questão ambiental e de política agrícola se deve antes de tudo à sua vulnerabilidade política, que lhe exigiu fazer grandes concessões à bancada ruralista e a partidos da base aliada, como o PMDB. Mas, o que tentei argumentar aqui é que tais concessões não contrariam nem os princípios nem as concepções de desenvolvimento dos seus quadros dirigentes. Contrariam apenas aqueles dos movimentos populares que constituíam a sua base social mais aguerrida e que ainda lhe garantiram um segundo mandato. Até quando o governo Lula continuará enganando suas bases e estas se deixarão enganar, é uma questão a ser elucidada nos próximos anos. De definitivo para a História, fica o fato de que foi no “governo popular” de Lula e no ministério de Marina Silva que a resistência da sociedade civil foi vencida e se fez a vontade do agronegócio e das multinacionais da biotecnologia, autorizando o cultivo e consumo de soja transgênica por meio de Medidas Provisórias, e “flexibilizando-se” a legislação de biossegurança, já por si bastante permissiva, de modo a permitir que outros transgênicos como o milho e o algodão venham a ser liberados em um futuro próximo. Com isso, o governo Lula desmontou todo um arcabouço legal em biossegurança que fora sendo paulatinamente construído na última década pelo governo e movimentos sociais, sentando um perigoso precedente para que novas tecnologias modernas possam igualmente vir a se furtar do licenciamento ambiental e da adoção do Princípio da Precaução e com isso da vigilância e do controle social.

Marijane Vieira Lisboa
marijane.lisboa@terra.com.br
Doutora em ciências sociais, professora da Faculdade de Ciencias Sociais da PUC-SP e ex-Secretária de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente entre 2003 e 2004.

Este artigo foi originalmente publicado pela Revista PUCviva, ano 8, nº 29, jan/março de 2007 – e-mail