Brecha na lei do programa Terra Legal pode beneficiar superposseiro em terras da União na Amazônia
Convencido de que a floresta existe para “servir ao homem”, o paulista Eucleber Vessoni ocupa 190 quilômetros quadrados de terras da União na Amazônia –7,6 vezes o limite máximo de venda de terras públicas permitido pela Constituição. Eucleber cria gado, como a maioria dos candidatos ao programa de regularização fundiária do governo na região de Marabá, com altos índices de desmatamento e recordista em conflitos fundiários no país.
O programa Terra Legal pretende dar ou vender –grande parte a preço simbólico e sem licitação– 674 mil quilômetros quadrados de terras da União nos próximos três anos e não exclui as chances de Eucleber se tornar proprietário das terras. É o tipo de situação temida por alguns ambientalistas. Matéria de Marta Salomon, enviada especial da Folha a Marabá (PA).
Embora o governo dê destaque para o grande número de pequenos posseiros a serem beneficiados, um número reduzido de posses (6,6%) reúne quase 73% das terras da região. Elas também poderão ser regularizadas mediante a divisão dos imóveis entre familiares, por exemplo, apurou a Folha.
Diferentemente dos grileiros, que ocupam terras públicas por meio de documentos forjados, os superposseiros como Vessoni não escondem que se apossaram de bem público. “Terra da União, na verdade, é do povo. Nunca pensei que fossem me tomar. Para dar para quem? Quem é melhor do que eu?”, diz o mineiro Pedro José de Campos, presidente da associação local de pecuaristas, também posseiro, junto com os filhos, de uma área de 30 quilômetros quadrados, que também deverá ser dividida e regularizada, sem licitação. “Aqui, ninguém tem título”, resume.
Vessoni e Pedro podem vir a se beneficiar de uma brecha no programa, o fracionamento dos imóveis entre membros da família, para obter os títulos de propriedade. O governo não se opõe a essa possibilidade, desde que as terras não sejam tituladas em nomes de laranjas.
Outra brecha no programa é o prazo de ocupação. A lei sancionada por Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira fixa 1º de dezembro de 2004 como data limite da ocupação. Desde a versão original da medida provisória editada pelo governo, no entanto, o texto prevê que a ocupação se dê por meio de “antecessores”. Na prática, o governo vai admitir transferência da posse em período posterior, desde que a terra tenha sido desmatada até 2004, conforme imagens dos satélites do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
É o caso de Divino Pereira da Silva, que afirma ter comprado pouco mais de 20 quilômetros quadrados de terras 15 dias antes, por cerca de R$ 471 por hectare (10 mil metros quadrados), abaixo do preço de mercado na região.
A situação dele será analisada pelo programa, assim como os imóveis com área superior ao limite da lei e que vierem a ser fracionados. Provavelmente, haverá vistorias nas áreas. “Se criarmos muitas restrições, não conseguimos trazer [os ocupantes de terras públicas] para a legalidade”, avalia o coordenador do programa Terra Legal, Carlos Guedes.
Na primeira semana de cadastramento, limitado a poucas cidades ainda, 600 candidatos já se inscreveram.
Matas
As filas do cadastramento do Terra Legal são um retrato da ocupação da Amazônia. A Folha encontrou durante a semana passada garimpeiros, ex-trabalhadores de grandes obras na região, gente atraída pelo lema da ditadura (“Integrar para não entregar”), os que pegaram carona nas carrocerias de caminhões de madeireiros e os que levaram rebanhos de outras regiões, no avanço da fronteira agrícola sobre a floresta.
Em geral, ocupantes de terras públicas têm uma visão peculiar da floresta, que conheceram, nos anos 70 e 80, bem diferente da paisagem atual, na qual pastos predominam. “O homem da Amazônia não é um monstro. Todos queremos preservar, mas não à custa da nossa vida. Entre a mata e eu, vai morrer a mata. Os atores ganham a vida beijando na televisão, nós não”, alega Divino Silva, numa referência aos atores que levaram abaixo-assinado a Lula em defesa da Amazônia.
Os homens da região medem suas terras em linhas ou alqueires, não em hectares, medida nacional. Um imóvel de um quilômetro quadrado é considerado pequeno, na visão local. Muitos acreditam que as terras só ganharam valor com o abate das árvores, objeto de preocupação mundial. O superposseiro Pedro Campos lembra ter pago entre R$ 50 e R$ 100 o hectare da posse, em 99, quando a região era quase só mata.
Almir José da Cruz Arantes, garimpeiro de Serra Pelada, não pagou nada pelos cerca de 29 quilômetros quadrados da União que ocupou em 86, no rastro da extração de mogno. Ele espera regularizar as terras, localizadas no município vizinho a Marabá, no limite do território dos índios Xicrim. “Não tivemos condições de abrir a mata, a despesa era muito grande”, disse, na expectativa de ser remunerado pelo governo para manter a floresta em pé.
Com a família na fila do cadastramento, o agricultor João Rodrigues Gomes chegou há sete anos na região, pagou pouco mais de R$ 100 por hectare da terra da União que ocupa. Pelo tamanho, Gomes deve receber o título de graça. Cria 30 cabeças de gado, quase nada perto das 18 mil cabeças do superposseiro Vessoni.
[EcoDebate, 30/06/2009]
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