Brasil pode perder o bonde do carbono, artigo de José Eli da Veiga
“Enquanto os outros grandes emissores se empenharão na busca das inovações que poderão descarbonizar os setores secundário e terciário, mais uma vez o Brasil será estimulado a dormir em berço esplêndido”
[Valor Econômico] O sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento em países emergentes será cada vez mais dependente do aproveitamento das vantagens competitivas induzidas pelo imperativo de descarbonização das economias. Perderão esse bonde os países que descuidarem da capacitação científico-tecnológica voltada ao abatimento de emissões de gases estufa. Por isso, é imprescindível que o Brasil ao menos já conheça a distribuição espacial e setorial de seu potencial de abatimento. O que, infelizmente, está muito longe de acontecer.
Continua muito comum a afirmação de que desmatamentos e queimadas na Amazônia são responsáveis por mais de 75% das emissões brasileiras. Um puro delírio, gerado por terrível acumulação de equívocos. Pois tal disparate nada tem a ver com o único e anacrônico inventário nacional, que fez parte da “Comunicação Inicial do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima”, documento divulgado pelo MCT em novembro de 2004, com dados referentes ao período 1990-94.
O que ali está estampado com muita clareza é que 75,4% das emissões do Brasil de 1994 podiam ser atribuídas ao conjunto das “mudanças no uso da terra e florestas” (“MUTF”), no qual deviam ser creditadas aos desflorestamentos 96% das emissões líquidas. E desse subtotal, somente 59% cabiam ao bioma amazônico (26% ao Cerrado, 6% à Mata Atlântica, 5% à Caatinga e 4% ao Pantanal). O que significa que, em 1994, tão-somente 42,7% do total das emissões brasileiras totais podiam ser atribuídas a desmatamentos amazônicos.
Esse mesmo inventário constatou que de 1990 a 1994 as emissões resultantes de desflorestamentos haviam aumentado 2% no conjunto dos cinco biomas, enquanto as demais (extra-MUTF) haviam subido 16%. Uma tendência que muito se intensificou de lá para cá, como demonstra qualquer comparação entre os cálculos feitos para o MCT pela organização Economia & Energia e as imagens de satélite processadas pelo programa Prodes do INPE.
Entre 1994 e 2005, o aumento das emissões extra-MUTF foi de 45%, principalmente porque as do setor de transportes saltaram de 25,4 para 36,9 em milhões de toneladas (+45%), as do setor industrial de 19,7 para 27,8 (+41%), e as do setor energético de 7,6 para 15,3 (+101%). Enquanto isso, como se sabe, os desmatamentos só diminuíram. Principalmente no bioma amazônico, para o qual existem mais dados.
Há mesmo indicações de que a emissão bruta anual do Cerrado já possa até ter superado a da Amazônia, embora em 1994 ela não chegasse sequer à metade. Em termos de área desmatada, a do Cerrado era ligeiramente inferior no período de referência do inventário (1988-94). Hoje pode ser o dobro, segundo o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Tendo em conta que as emissões brutas do desmate de um hectare amazônico equivalem a algo como 2,2 vezes as da mesma área de cerrado, pode-se supor que os dois biomas estejam muito próximos de um empate.
Outra bobagem muito repetida é que as emissões restantes – extra-MUTF – seriam causadas “pelos automóveis que circulam pelas grandes cidades”. Os já citados cálculos feitos para o MCT mostram que todo o setor de transportes (muito mais amplo) dava origem, em 2005, a apenas metade desse tipo de emissões. Quase 40% saíam do setor industrial e 10% do setor gerador de energia.
Tais eram as informações disponíveis até meados de março, quando começaram a ser divulgados os surpreendentes resultados do estudo da McKinsey “Caminhos para uma economia de baixa emissão de carbono no Brasil”, voltado à avaliação da distribuição setorial do potencial de abatimento.
Segundo os cálculos dessa empresa de consultoria, o conjunto dos desmatamentos seria hoje responsável por 55% das emissões. As demais – extra-MUTF – teriam origem em quatro blocos setoriais básicos: a agropecuária, com 25%; a indústria, com 13%; os transportes somados à geração de energia, com mais 13%; e os tratamentos de resíduos somados às edificações, com os reles 3 a 4%.
Ainda mais significativas são as estimativas dos custos dos abatimentos potenciais até 2030. Enquanto o mundo poderia abater 50% das emissões gastando 18 euros por tonelada de carbono, no Brasil tal redução poderia chegar a 70% pela metade desse preço. Porque, ao contrário do que ocorre em outros grandes emissores, tanto países ricos quanto emergentes, apenas 14% do potencial de abatimento do Brasil estão nos setores que exigem decisivas inovações tecnológicas, como são os casos da indústria, dos transportes, da geração de energia, e das edificações.
Segundo esse estudo da McKinsey, 72% do potencial de abatimento estariam ligados ao objetivo de zerar o desmatamento, e outros 14% dependeriam da adoção de conhecidas práticas agronômicas e veterinárias. Ou seja: 86% no setor primário não-mineral.
É muito difícil saber com certeza se esses cálculos são consistentes, pois a publicação da McKinsey não esclarece como foram feitos. Todavia, se não estiverem muito equivocados, o principal risco fica óbvio: haverá poderosos incentivos para que o Brasil se acomode na exploração de vantagens comparativas em vez de se esforçar para buscar vantagens competitivas mediante prioridade às pertinentes pesquisas científico-tecnológicas.
Enquanto os outros grandes emissores se empenharão na busca das inovações que poderão descarbonizar os setores secundário e terciário, mais uma vez o Brasil será estimulado a dormir em berço esplêndido. A concentrar-se no barato abatimento de emissões por redução de desmatamentos e modernização agropecuária, para depois ficar ainda mais dependente das famosas transferências de tecnologia.
O cerne de uma verdadeira estratégia de desenvolvimento só pode ser o avesso. A arquitetura institucional para o abatimento de emissões do setor primário precisa favorecer parcerias internacionais que as vinculem desde já à capacitação científico-tecnológica do Brasil para a superação da era das energias fósseis. O que também deveria ser o objetivo central de uma regulamentação nacional do mercado de carbono.
José Eli da Veiga é professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP.
* Artigo originalmente publicado no Valor Econômico.
[EcoDebate, 12/06/2009]
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