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Professora do Departamento de Nutrição da UnB aponta equívocos da fiscalização no comércio de alimentos no Brasil

“A produção dos alimentos é um processo só, mas a fiscalização é fragmentada. Isso dá um prejuízo enorme, pois, em alguns momentos, não é possível encontrar o responsável por um dos processos.”

Rodolfo Borges
Da Secretaria de Comunicação da UnB

Daiane Souza/UnB Agência

A Polícia Federal (PF) prendeu, na semana passada, 27 pessoas envolvidas em um esquema de adulteração de leite em Minas Gerais. Os envolvidos adicionavam água oxigenada e soda cáustica ao alimento para aumentar seu volume. Dias depois, em um desmembramento da Operação Ouro Branco, os policiais descobriram um frigorífico clandestino que estocava 16 toneladas de queijo com prazo de validade vencido. De acordo com a PF, os donos do armazém pretendiam adulterar a data limite dos produtos para revendê-los. Os dois acontecimentos levantaram suspeitas quanto à qualidade da fiscalização de alimentos no país, e levam a crer que irregularidades semelhantes às descobertas podem ocorrer também com outros alimentos.

“Essas irregularidades existem com certa freqüência, porque a fiscalização ainda é frágil, apesar do esforço para melhorar”, considera Anelise Rizzolo, professora do Departamento de Nutrição (NUT) da Universidade de Brasília (UnB). A professora identifica a fragmentação das responsabilidades como o maior problema. “A produção dos alimentos é um processo só, mas a fiscalização é fragmentada: o Ministério da Agricultura cuida de uma parte, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de outra e a indústria tem uma parcela muito grande de responsabilidade. Isso dá um prejuízo enorme, pois, em alguns momentos, não é possível encontrar o responsável por um dos processos”, critica.

Para a pesquisadora associada do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da UnB, a indústria precisa ser mais cobrada, pois as frágeis relações que ela mantém com os produtores primários dão margem à corrupção. Na entrevista abaixo, concedida à UnB Agência, a professora ainda comenta as vantagens da rotulagem nutricional, lamenta que a comida tenha perdido valor em meio ao mercado e diz que a sociedade precisa se conscientizar que se alimentar com qualidade é um direito social. “Ao longo do tempo, a comida foi perdendo seu status enquanto alimento”, atesta. Leia a entrevista completa abaixo.

UnB AGÊNCIA – A Operação Ouro Branco, da Polícia Federal (PF), prendeu 27 pessoas envolvidas em um esquema a adulteração de leite. Os envolvidos adicionavam água oxigenada e soda cáustica ao alimento para aumentar seu volume. E eles só foram descobertos porque um dos funcionários os delatou. Sem a denúncia, provavelmente o esquema continuaria acontecendo, pois ninguém passou mal por causa do leite. Esse caso evidencia falhas no processo de fiscalização. O que está errado?
ANELISE RIZZOLO – Há uma grande fragmentação no processo de fiscalização. Cada um dá conta de uma parte, mas, entre essas partes, existem espaços importantes que ninguém se responsabiliza. A produção dos alimentos é um processo só, que envolve o modo como ele foi plantado, cultivado, processado, comercializado, adquirido e consumido. Só que, do ponto de vista do gerenciamento, isso tudo se fragmenta. O Ministério da Agricultura cuida de um pedaço, a Anvisa de outro e a indústria tem uma parcela muito grande de responsabilidade, pois ela é um dos agentes que alimenta o sistema nacional de vigilância sanitária. Isso dá um prejuízo enorme, pois, em alguns momentos, não é possível encontrar o responsável por um dos processos.

UnB AGÊNCIA – Atribuir essa responsabilidade à própria indústria não é muito perigoso?

Daiane Souza/UnB Agência
“Se o mercado tem a vocação de gerar dinheiro e lucro, o Estado tem a vocação de proteger a saúde da população, e ele tem que ser soberano.”

ANELISE – É. Por isso, é imprescindível que existam mecanismos sociais que regulem essa relação. Se o mercado tem a vocação de gerar dinheiro e lucro, o Estado tem a vocação de proteger a saúde da população, e ele tem que ser soberano. É muito mais pertinente apertar as amarras da indústria do que punir o pequeno produtor, que é a parte mais frágil e acaba sendo excluída. Acho que a Anvisa tem que melhorar sua fiscalização, mas a indústria precisa ser mais cobrada. As relações trabalhistas estabelecidas entre as indústrias e os produtores primários de leite, por exemplo, são muito precárias, e dão margem à corrupção. É um tipo de pirataria de alimentos. Dentro desse processo, a política pública é fundamental, mas as indústrias precisam assumir suas responsabilidades, estabelecendo relações mais seguras com os produtores. Para isso, elas precisam ser cobradas.

UnB AGÊNCIA – Além da denúncia, outra forma corriqueira para a descoberta de irregularidades em alimentos é a identificação de um surto. É tão difícil assim descobrir o problema antes que ele cause algum estrago?
ANELISE – Se nós rastrearmos notícias sobre o assunto nos últimos anos, vamos perceber que as informações vêm muito mais pela denúncia do que pela fiscalização sistemática. A questão é que os processos de fiscalização ficaram muito complexos. O modelo de produção de alimentos no mundo se modificou drasticamente. Há 50 anos, nosso padrão alimentar era mais in natura, pouco processado. Nos últimos anos, em decorrência das mudanças, tem crescido a preocupação em aprimorar esse processo de fiscalização. A sociedade tem que adequar-se à ele e entendê-lo, para poder criar mecanismos mais efetivos de fiscalização. Mas tudo isso não significa que a Anvisa não esteja agindo. É preciso lembrar que uma apreensão dessa agência não tem tanto apelo para os jornais quanto uma operação da PF.

UnB AGÊNCIA – É muito exagero imaginar que o que houve com o leite pode estar acontecendo com outros alimentos?
ANELISE – Geralmente quando a gente fica sabendo de uma notícia dessas, aparecem várias outras. Todos os focos se voltam para esse processo. Essas irregularidades existem com certa freqüência, porque a fiscalização ainda é frágil, apesar do esforço para melhorar.

UnB AGÊNCIA – A PF apreendeu, nesta semana, 16 toneladas de queijo tipo mussarela vencido em um depósito clandestino localizado em Uberaba (MG). O curioso do caso é que ele parece estar fora do processo de fiscalização, pois os produtores estavam comercializando alimentos que já tinham passado por certificação. Essa é mais uma das lacunas da fiscalização?
ANELISE – É uma brecha importante. Do ponto de vista legal, esse produto cumpriu todas as etapas, mas, ao reaproveitá-lo, os vendedores acharam uma lacuna na inspeção. Outra questão crucial é a capacitação dos profissionais que a realizam. O fiscal que investiga a validade (e tem uma formação voltada para a questão sanitária) é o mesmo que avalia a rotulagem nutricional. Se não houver um realinhamento na capacitação dos profissionais, cada um continuará com a sua fatia e o processo fica partido. É preciso estimular a intersetorialidade. Se isso não acontecer, esses buracos sempre vão existir.

UnB AGÊNCIA – A Unilever (dona da marca Kibon) retirou do mercado um lote do sorvete Cornetto que continha glúten apesar de indicar, na embalagem, a ausência da substância. A chegada desse produto às prateleiras é mais um indício de que a fiscalização não é tão rígida quanto deveria?
ANELISE – É muito difícil cobrar da Anvisa a investigação sobre o conteúdo de fato, porque a indústria já tinha atestado por meio de um laudo que o rótulo estava de acordo com o conteúdo. É um pacto. De qualquer forma, a rotulagem nutricional garante que a cobrança por meio da agência reguladora seja feita com mais segurança. Tanto que a própria empresa (Unilever) apressou-se em retirar o produto do mercado. E a notícia mostra outro aspecto muito positivo da rotulagem. Ela despertou o interesse em monitorar o conteúdo do produto. Claro que, por enquanto, esse tipo de informação interessa mais a grupos que têm patologias que demandam essa cultura de olhar o rótulo. Mas as pessoas em geral estão começando a prestar atenção no rótulo.

UnB AGÊNCIA – Além de melhorar a inspeção, o que mais pode ser feito?
ANELISE – É preciso reestruturar o modelo agrícola. Ele tem uma lógica totalmente desestruturada, voltada totalmente para o agronegócio, sem direitos trabalhistas e sociais para os pequenos produtores (que, por serem reféns das indústrias, acabam dando brecha para que atravessadores adulterem os produtos). Se houver um modelo de desenvolvimento no Brasil composto por pequenos produtores, o processo entre produção e consumo seria mais curto e haveria menos brechas. Além do mais, é fundamental que a sociedade tenha um entendimento mais adequado do processo de fabricação de alimentos. Precisamos nos conscientizar que ter um produto de qualidade é um direito social. Uma boa solução seria introduzir esse tipo de conteúdo no currículo escolar, para despertar na criança e no adulto a atitude de vigilância. Falta essa demanda da sociedade.

Daiane Souza/UnB Agência
“Se eu não me interesso em saber se o biscoito que eu como tem gordura trans, possivelmente também não vou me preocupar se aquele alimento foi bem higienizado.”

UnB AGÊNCIA – Um levantamento do Centro de Controle e Prevenção de Doença, nos Estados Unidos (EUA), revelou que 5 mil norte-americanos morrem por ano devido a intoxicações alimentares. De acordo com a pesquisa, são registrados 76 milhões de casos anualmente no país. No Brasil, não existe uma pesquisa tão precisa em nível nacional, mas a identificação do problema em um país como os EUA deve nos deixar em estado de alerta?
ANELISE – O conceito de alimentação saudável tem a garantia sanitária como um dos seus componentes. Essa pesquisa sinaliza que é preciso ficar atento ao lugar onde nós nos alimentamos. Mas, será que os restaurantes que nós freqüentamos têm um profissional capacitado para monitorar isso? Se eu não me interesso em saber se o biscoito que eu como tem gordura trans, possivelmente também não vou me preocupar se aquele alimento foi bem higienizado.

UnB AGÊNCIA – Os avanços científicos permitiram que o homem alcançasse um certo nível de controle em relação ao resultado da produção de alimentos. Uma pesquisa recente do Hospital do Coração de São Paulo mostrou que 35% dos homens têm colesterol alto, e esse não é o único levantamento que condena a forma como nós nos alimentamos. Comemos pior do que antigamente apesar de controlar a produção em todos seus aspectos?
ANELISE
– Nosso padrão alimentar de anos atrás nos conferia menos risco. A forma como nos alimentamos hoje tem aspecto positivos, mas os aspectos negativos são mais numerosos. Hoje, existem muito mais doenças crônicas de razão alimentar. A obesidade é uma das mazelas da globalização, porque o modo de viver da população mundial é um fator determinante do nosso padrão nutricional. Hoje é preciso comer muito rápido, há pouco tempo e espaço aberto para se exercitar.

Daiane Souza/UnB Agência
“É muito difícil optar por alimentos saudáveis quando a grande maioria que está exposto no supermercado não é.”

UnB AGÊNCIA – Mas, apesar de levar uma vida desequilibrada, nós não temos capacidade para adequar a comida às nossas necessidades?
ANELISE – Hoje, o alimento é muito mais interessante do ponto de vista econômico que nutricional. É melhor comer uma simples manga que estava pendurada na árvore em frente a sua casa do que ela processada em polpa, mas a exigência do modo de vida da sociedade fez com que isso fosse valorizado. Mais de 80% dos alimentos que nós comemos hoje são industrializados. Eles são riquíssimos em sódio, sal, açúcar e gordura – para poder ficar mais tempo nas prateleiras – e muito pobres em nutrientes e fibras. Para garantir um acesso mais fácil ao alimento – porque temos menos tempo – nós aniquilamos uma etapa importante do processo de alimentação. Se não houver políticas públicas que monitorem a qualidade da refeição ofertada em restaurantes, creches e lanchonetes, esse padrão que não é saudável vai persistir. É muito difícil optar por alimentos saudáveis quando a grande maioria do que está exposto no supermercado não é.

Daiane Souza/UnB Agência
“Ao longo do tempo, a comida foi perdendo seu status enquanto alimento”

UnB AGÊNCIA – Isso quer dizer que a forma como nós encaramos a comida mudou?
ANELISE – Sim. Hoje, a comida é muito encarada como uma mercadoria qualquer. Ela entra nessa lógica de “quanto mais, melhor”. É preciso consumir muito, ter muita variedade. Ao longo do tempo, a comida foi perdendo seu status enquanto alimento. Antigamente a gente valorizava os rituais de preparo da comida, a cozinha era um espaço privilegiado e as mães se ocupavam do preparo. Agora, a gente pega um pacote, enfia no microondas e acabou. Isso é um prejuízo muito grande, porque a alimentação envolve muita coisa. A comida tem significados. Nós lembramos de sensações que tínhamos quando éramos crianças ao comer. Tudo isso ficou muito relegado dentro desta lógica social em que vivemos.

UnB AGÊNCIA – A China proibiu, esta semana, a exportação de cinco pesticidas tóxicos que já não podiam ser usados em seu próprio território. Os químicos eram exportados para 60 países, entre eles o Brasil, e a sua proibição faz parte de uma estratégia para atribuir ao alimento chinês mais confiança. A medida é um exemplo de como o alimento orgânico ganha importância e mostra uma vontade de corrigir alguns equívocos provocados pelo avanço tecnológico. É possível voltar atrás?
ANELISE – A tendência não é voltar atrás, mas reorientar o nosso modelo de desenvolvimento humano e social. O modelo agrícola que todos os países têm hoje ainda é baseado na produção de alimentos a qualquer custo, e foi isso que criou a demanda pelos agroquímicos. Isso está se esgotando agora, 40 anos depois. O que está em jogo é a mudança dos modelos agrícolas, e o Brasil precisa muito disso. O alimento orgânico não pode ficar restrito a uma elite, produzido por aqueles que têm condição de deixar o solo sete anos esperando para plantar alface de novo, enquanto fica de fora o agricultor familiar, que sustenta a alimentação no Brasil, pois o produtor de elite exporta. Se a política é reorientar o modelo agrícola, é preciso criar uma política única.

UnB AGÊNCIA – A Grã-Bretanha aprovou, recentemente, uma norma para regular a importação de comida orgânica. Agora, além de o alimento importado ter eum seu rótulo a indicação de orgânico, o produtor deverá demonstrar que seguiu os padrões ambientais e de comércio justo. Também estava em pauta no órgão que rotula os produtos orgânicos nesse país a proibição total da importação desse tipo de alimento, defendida por ecologistas, produtores e consumidores britânicos. Essa aparente preocupação com a saúde e a ecologia é um bom mote para medidas protecionistas?
ANELISE – O argumento central dessas medidas é a reserva de mercado, que a Europa faz sem nenhum temor. Nós temos medo porque dependemos de mercados externos. Em alguma medida, essa desconfiança é correta, porque, às vezes, está mais em jogo o interesse econômico do país do que a virtude de defesa do planeta. Os critérios de proteção ambientalistas são usados para o bem e para o mal.

UnB AGÊNCIA – De qualquer forma, em um mundo cada vez mais preocupado com a saúde e a ecologia, o mercado de alimentos orgânicos parece promissor. O Brasil está preparado para se aproveitar disso?
ANELISE – Existe uma discussão bem grande em relação ao orgânico por conta da certificação. Ela é importante para assegurar a procedência do produto e garantir a sua exportação, porque alguns países, como a própria Grã-Bretanha, têm barreiras rígidas. Eles só aceitam orgânicos se os alimentos estiverem em um determinado padrão. É importante que o Brasil avance nesse aspecto, porque, até onde eu sei, isso não existe. O processo ainda é aprimorado pelos Ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde. É muito importante que ele aconteça. É preocupante, porque o Brasil ainda não tem uma segurança para padronizar o alimento orgânico equivalente a dos industrializados.

UnB AGÊNCIA – Os problemas referentes à alimentação que nós identificamos até agora parecem suficientes para percebermos que algo tem que ser feito. É possível dizer que daqui a 20, 30 anos, nos alimentaremos melhor?
ANELISE – Eu aposto muito na possibilidade de que os países vão perceber que o Estado é fundamental para dar conta disso. Mas, se seguirmos no mesmo caminho, ainda temos muito chão para percorrer. Acredito que, em 30 anos, nós não conseguiremos virar o jogo. O tempo que falta é de esgotamento completo do modelo capitalista. Não é que o dinheiro vá acabar, mas a engrenagem que alimenta essa ordem capitalista de exploração e dominação está se esgotando. Então terá que surgir uma ordem que dê conta de um novo modelo. Se não conseguirmos mudar essa lógica, as coisas vão piorar.

PERFIL
Anelise Rizzolo de Oliveira Pinheiro é professora do Departamento de Nutrição (NUT) da Universidade de Brasília (UnB). É doutoranda em Políticas Públicas pela UnB e mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Nutrição pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a nutricionista é pesquisadora associada do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição (Opsan) da UnB. Tem experiência na área de Nutrição, com ênfase em Políticas Públicas, atuando principalmente nos temas: políticas públicas de saúde e nutrição, segurança alimentar e nutricional, alimentação saudável e promoção da saúde.

entrevista da UnB Agência, publicada pelo EcoDebate.com.br