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Artigo

Aquecimento Global, Ecologismo dos Pobres e Ecossocialismo, por João Alfredo Telles Melo

 

Adital – “Do ponto de vista de uma formação socioeconômica mais avançada, a propriedade privada dos indivíduos na Terra parecerá tão absurda como a propriedade de um homem sobre outros homens. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou mesmo todas as sociedades existentes num dado momento, em conjunto, não são donos da Terra. São simplesmente os seus possuidores, os seus beneficiários, e têm que a legar, num estado melhorado, para as gerações seguintes, como boni patri famílias (bons pais de família)” (Karl Marx, “O Capital”).

John Bellamy Foster, autor de um dos livros mais importantes para os ecossocialistas (“A Ecologia de Marx, materialismo e natureza”, Civilização Brasileira), em artigo recente, intitulado “A Ecologia da Destruição”, nos chama a atenção para o fato de que “é uma característica da nossa época que a devastação global pareça sobrepor-se a todos os outros problemas, ameaçando a sobrevivência da terra como a conhecemos”.

A grande repercussão do quarto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, da ONU, em sua sigla em inglês), em que milhares de cientistas de praticamente todo o planeta, não só constataram a relação direta entre fenômenos climáticos intensos decorrentes do aquecimento global com a emissão dos chamados gases de efeito estufa (GEE) pelas atividades industriais, energéticas e agrícolas, mas também apontaram projeções catastróficas para este século, caso não haja uma drástica mudança na matriz energética e no padrão de consumo – deu foros de cientificidade ao documentário “A Verdade Inconveniente”, do ex-vice-presidente estadunidense Al Gore, que recebeu o Oscar deste ano e também, juntamente com o próprio IPCC, o prêmio Nobel da Paz.

Portanto, com exceção da minoria dos chamados “céticos”, dentre os quais se encontram cientistas sérios, como o brasileiro Aziz Ab´Saber, e organizações bancadas pelo Governo Bush e pelas grandes indústrias de petróleo e carvão mineral no mundo, há uma ampla maioria – amplíssima, diria – de gente da comunidade científica (e aqui se perfilam brasileiros da maior respeitabilidade, como José Goldenberg, Carlos Nobre e Luis Pinguelli Rosa), dos movimentos ambientalistas, de governos e até de setores empresariais que, a partir dos dados do IPCC, procuram encontrar saídas para a crise planetária, manifestada hoje pelo aquecimento global que ameaça a vida na Terra.

Abra-se aqui parêntesis para aduzir que a aposta que os céticos – em sua versão séria e não comprometida com os interesses do capital petroleiro e mineral – é uma aposta perdida, em suas duas possibilidades. Se eles estiverem errados (quando afirmam que o fenômeno do superaquecimento é natural e que as previsões do IPCC estão equivocadas), podem, de forma involuntária, estarem contribuindo com o lobby das grandes corporações petrolíferas e mineiras, impedindo a mudança do padrão energético para as fontes renováveis e serem co-responsáveis pela catástrofe que se prenuncia. Por outro lado, se estiverem certos (o que não é muito provável, dado o amplo consenso científico alcançado depois de quase vinte anos de IPCC), estão atrasando a nossa evolução para a despoluição do planeta. Ou seja, ainda que, numa hipótese quase absurda, não esteja ocorrendo o aquecimento provocado pelas atividades humanas, o alerta do IPCC, no mínimo, questiona o modo de produção e o modo de vida humana no planeta e nos induz a mudanças profundas e necessárias.

Voltando ao tema, vou me permitir não mais ter que detalhar, mas apenas listar, em parte, o extenso e impactante elenco de fenômenos climáticos e de suas resultantes sobre a vida no planeta, já amplamente divulgada pela grande imprensa, como o acréscimo da temperatura média da terra, o derretimento das geleiras e calotas polares, a desaparição de espécies, a subida do nível do mar, a desertificação e seus profundos impactos sobre a humanidade, que poderá conviver – aliás, já está convivendo – com os chamados “refugiados ambientais” (vítimas de enchentes, tornados, secas, furacões, que, nos últimos tempos, têm atingido populações tão diversas como as asiáticas, as das pequenas ilhas do Pacífico, ou mesmo, nas terras do Império Americano, com o Katrina, em New Orleans, e o incêndio que está devastando a Califórnia, nos últimos dias).

Se voltarmos ao nosso país – que é o quarto maior emissor de GEE, em face das queimadas e desmatamentos de nossas florestas – o que se prenuncia é gravíssimo. Se, em todo o planeta, no próximo século, ultrapassarmos a linha perigosa de acréscimo de 2oC na temperatura média da terra, metade de nossa Floresta Amazônica (a mais importante cobertura vegetal tropical do planeta) se transformará em savana, causando profundos impactos não só na própria temperatura da terra, como no regime de chuvas em todo o hemisfério sul. Para o Nordeste brasileiro, as previsões não são menos sombrias. O nosso semi-árido, que, mais uma vez, convive com uma estiagem prolongada, se transformaria em região árida, num quase deserto, sem água e sem produção agrícola.

Estaríamos diante do apocalipse? Paulo Artaxo, um dos cientistas brasileiros do IPCC, tenta nos tranqüilizar: “O aquecimento global não é o fim do mundo, de jeito nenhum”, mas adverte: “um dos pontos cruciais do relatório do IPCC é a urgência da diminuição da emissão dos gases do efeito estufa. Se não fizermos isso, a temperatura vai subir de forma a trazer danos para os ecossistemas e zonas costeiras sem precedentes na história da humanidade”. Para ele – e o IPCC – esse corte deveria ser em torno de 50 a 70 por cento. (Caros Amigos, edição especial: “Aquecimento Global, a busca de soluções”).

Ora, a necessidade imperiosa da redução na emissão de GEE na escala de 50 a 70% torna o Protocolo de Kyoto (que, todos sabemos, não foi assinado nem pelos Estados Unidos, primeiro ou segundo maior emissor de CO2, nem pela Austrália, uma das maiores exploradoras de carvão mineral) absolutamente obsoleto e inócuo. Recorde-se: Kyoto propõe, apenas para os países em desenvolvimento (principais responsáveis pelo aquecimento), o corte de somente 5% (nos níveis de 1990) para até 2012. O Brasil, a Índia e a China, dentre outros, (que, dado o seu crescimento econômico vertiginoso já teria ultrapassado os EUA e que tem na base de sua matriz energética o combustível de maior poluição, que é o carvão mineral) não são obrigados a cumprir metas de redução.

Todo esse debate não se refere, por óbvio, apenas a números. Aqui se trata, em primeiro lugar, da tentativa de se compatibilizar a urgência urgentíssima na diminuição drástica de emissão de CO2 e outros GEE para a atmosfera, com o direito e a necessidade de países pobres se desenvolverem e atenderem os direitos e necessidades de sua população.

Como atender tais necessidades sem tocar no padrão de vida e consumo das classes médias e altas tanto no Hemisfério Norte (onde são majoritárias) como no Hemisfério Sul (onde são minoritárias)? (Já gastamos 25% a mais do capital natural da terra e seria preciso que tivéssemos pelo menos quatro planetas terra para que todos alcançassem o nível de vida do chamado “american way of life”.) Uma nova “utopia” (sustentabilidade ambiental, igualdade social e desenvolvimento econômico em escala planetária) seria possível na atual configuração geopolítica mundial onde o poder destrutivo da indústria armamentista, petrolífera e minerária se materializa em governos como de Bush, senhor das guerras no mundo? É possível superar a atual crise nos marcos do sistema capitalista? Nas palavras, mais uma vez, de Foster: “Como é que isto se relaciona com as causas sociais e que soluções sociais podem ser oferecidas em resposta tornaram-se as questões mais urgentes com que a humanidade se defronta”.

Esse debate se situa no campo da chamada “Ecologia Política”, que, na compreensão de Joan Martinez Alier, estuda “os conflitos ecológicos distributivos – isto é, os conflitos pelos recursos ou serviços ambientais, comercializados ou não”. Para ele, a ecologia política é “um novo campo nascido a partir dos estudos de caso locais pela geografia e antropologia rural, hoje estendidos aos níveis nacional e internacional” (“O Ecologismo dos Pobres”, Editora Contexto). É a ecologia política, juntamente com a economia ecológica, quem pode nos desvendar as causas da crise e apontar as soluções reclamadas por Foster acima.

Carlos Walter Porto-Gonçalves, um dos mais atilados ecologistas políticos da atualidade nos situa, de forma ainda mais precisa, na atual crise planetária, quando afirma que “o desafio ambiental se coloca no centro do debate geopolítico contemporâneo enquanto questão territorial, na medida em que põe em questão a própria relação da sociedade com a natureza, ou melhor, a relação da humanidade, na sua diversidade, com o planeta, nas suas diferentes qualidades” (“O Desafio Ambiental”, Editora Record).

Para ele, há contradições profundas entre a economia capitalista e a dinâmica ambiental. A separação – “a mais radical possível”, em suas palavras entre homens e mulheres, de um lado, e a natureza, de outro; a apropriação privada dos recursos ambientais, em que tudo é transformado em mercadoria; o “princípio da escassez”, pelo qual um “bem só tem valor econômico se é escasso” são absolutamente contraditórios com a visão ecológico-ambientalista de riqueza natural. Vejamos, em suas próprias palavras:

“Os economistas modernos vão fundar a economia no conceito de escassez, que, paradoxalmente, é o contrário da riqueza. Tanto é assim que os bens abundantes – idéia central da riqueza – não são considerados como bens econômicos e, sim, como naturais (…) Somente à medida que a água e o ar se tornam escassos – com a poluição, por exemplo – é que a economia passa a se interessar em incorporá-los como bens no sentido econômico moderno, isto é, mercantil”.

Essa distinção entre riqueza natural – objetivo maior de todos os movimentos ecológicos – e riqueza material – que advém da escassez e, para deleite do sistema mercantil, transforma os bens ambientais em mercadoria – também é tratada por Foster, em outro belo texto, chamado “Revolução Ecológica”, onde se vale do filósofo grego Epicuro, que declarava: “”Quando medido pelo propósito natural da vida, a pobreza é grande riqueza, riqueza ilimitada é grande pobreza”.

Portanto, para Foster, “o livre desenvolvimento humano, surgindo num clima de limitação e sustentabilidade naturais, é a verdadeira base da riqueza, de uma riqueza para a existência multilateral; a busca sem limites de riqueza é a fonte primária do empobrecimento e sofrimento humanos. É desnecessário dizer que tal preocupação com o bem estar natural, em oposição a necessidades e estímulos artificiais, é a antítese da sociedade capitalista e a pré-condição de uma comunidade humana sustentável”.

Assim, é plenamente justificável que se afirme que, sob o capitalismo, não há possibilidade de superação da atual crise planetária, o que nos permitiria atualizar, como quer Michel Löwy, outro grande expoente atual do ecossocialismo, a consigna de Rosa Luxemburgo para “Ecossocialismo ou Barbárie”.

Ora, afirmar isto – a contradição fundamental entre o sistema capitalista e uma nova forma de organização sócio-político-econômica fundada na sustentabilidade e justiça ambiental, na igualdade social e, também, por óbvio, na democracia política em suas formas mais avançadas de participação popular – por si só, não é suficiente para os ecossocialistas. Nas palavras de Löwy: “É preciso começar a construir esse futuro desde já. É necessário participar de todas as lutas, inclusive das mais modestas; como, por exemplo, a de uma comunidade que se defende contra uma empresa poluidora; ou a defesa de uma parte da natureza que esteja ameaçada por um projeto comercial destrutivo. É importante ir construindo a relação entre as lutas sociais e as ambientais, pois elas tendem a concordar, unidas ao redor de objetivos comuns” (“Ecologia e Socialismo”).

É esse campo – os das lutas sócio-ambientais – que reclama a presença dos ecossocialistas. Aqui, poderíamos listar as lutas das comunidades costeiras contra o turismo predatório e a criação de camarões em cativeiros; a resistência dos atingidos por barragens contra os grandes projetos hidrelétricos; o movimento que reúne sem terra, agroecologistas, defensores de consumidores e ambientalistas contra a adoção de sementes transgênicas; a luta de populações locais contra a ampliação das usinas nucleares; a resistência de índios e pequenos agricultores no embate contra a transposição das águas do Rio São Francisco; a articulação dos povos da floresta – índios, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos – contra ao avanço do agronegócio do gado e da soja na Amazônia Brasileira; a luta das mulheres camponesas contra o exército verde da monocultura do eucalipto; o enfrentamento dos ecologistas e urbanistas contra a especulação imobiliária nas grandes metrópoles etc.

Aqui, estamos diante do que Martinez Alier denomina de “ecologismo dos pobres” ou “ecologismo popular”, que, nas palavras do autor, tem como eixo fundamental o interesse pelo meio ambiente como “fonte de condição para a subsistência” e como fundamento ético “a demanda por justiça social (e ambiental, acrescentaria) contemporânea entre os humanos”. Essa corrente do movimento ambientalista, por lutar “contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres, que constituem a ampla maioria da população em muitos países” tem uma presença muito forte nos países do Hemisfério Sul (no antigamente denominado terceiro mundo).

As lutas com tais características – sócio-ambientais, do ecologismo popular – têm uma importância fundamental, não só para os ecossocialistas, mas para o próprio futuro do planeta. Ali, há uma resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e, também, ao ambiente saudável, questiona os fundamentos não só do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capitalista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente planetário. Nessas comunidades, se contrapõem não só interesses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas.

Portanto, neste momento (mesmo que ainda de forma não articulada) podem se estar forjando não só as alianças sociais fundamentais para esse processo de transformação urgente e necessário – a Revolução Ecológica – mas, também, as bases sócio-econômico-ecológico-cultural-ético-políticas de uma nova sociedade, que possa superar a atual crise ambiental global para se tornar, a um só tempo, ecologicamente sustentável, socialmente justa e igualitária, cultural e etnicamente diversa, e política e radicalmente democrática: a sociedade ecossocialista. Estaremos à altura desse imenso desafio?

João Alfredo Telles Melo Advogado, professor de Direito Ambiental e consultor do Greenpeace

(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – ADITAL