Código Florestal: Um confronto com tiros no pé, artigo de Washington Novaes
Desmatamento em área de encosta. Foto de arquivo MMA
[O Estado de S.Paulo] Há poucos dias o presidente da República, em tom quase de deboche, disse que, se houvesse exigência de licenciamento ambiental à época da construção de Brasília, Juscelino Kubitschek não teria conseguido nem abrir a pista de pouso para seu “aviãozinho”. É possível. Graças, entretanto, à visão genial de Lúcio Costa, Brasília tem algumas vantagens que nem um EIA-Rima de hoje lhe dariam – a ocupação territorial planejada, espaços verdes mantidos, a descentralização de tudo. Mas talvez – o que o presidente de hoje não disse – tivesse de repensar sua própria localização, num dos pontos mais altos do Planalto Central do País, lugar bastante escasso em recursos hídricos – o que obriga a capital a importar de outros Estados (e pagar por isso, exportando renda) quase toda a energia que consome e parte da água. Além de enfrentar problemas difíceis em sua expansão urbana.
Mas a frase do chefe do governo estava inserida em outro contexto, esse perigoso confronto de “ruralistas” e “desenvolvimentistas” com “ambientalistas” em torno da legislação, com os primeiros em plena ofensiva para reformar o Código Florestal (e abrandar ou eliminar suas exigências), descentralizar o licenciamento ambiental (repassando-o a Estados onde as exigências seriam menores ou nulas), dispensar de licenciamento ambiental a duplicação e/ou pavimentação de rodovias (principalmente na Amazônia – onde esse é o maior fator de desmatamento – e incluindo o trecho Porto Velho-Manaus), aprovar (como foi aprovada) a regularização de 400 mil posses de até 1.500 hectares na Amazônia (sem obrigação formal de recompor reservas), barrar legislação que permitiria cobrar pelo uso de água na irrigação (o setor que mais a utiliza e desperdiça). Está em tramitação no Congresso até proposta de emenda constitucional que retira os temas “ambientais” (assim como os da educação e da saúde) do texto da Constituição.
Por trás de tudo, uma interpretação muito questionável de que faltariam terras para a agropecuária no País. Quando, num debate no Senado (Estado, 30/4), foi demonstrado que “não é preciso derrubar um só metro quadrado de floresta amazônica”, existem 350 mil quilômetros quadrados disponíveis, “capazes até de triplicar a produção agropecuária” – repetindo tese que vem sendo formulada há mais de 20 anos pela Embrapa. O problema, como observa o agrônomo Ciro F. Siqueira, está em que aproveitar para a agropecuária um hectare invadido ou grilado custa entre R$ 200 e R$ 300, mas utilizar um hectare comprado e pagando todos os impostos e custos sociais fica em R$ 700. E só 4% das terras amazônicas são cadastradas.
Nesse imbróglio também vai ficando esquecida a tese para a Amazônia que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) apresentou em Manaus, há alguns anos: desmatamento zero, forte investimento em formação de cientistas na região e em projetos de estudo e aproveitamento da biodiversidade amazônica (lembrando que só o comércio mundial de medicamentos derivados de plantas está acima de US$ 200 bilhões anuais). Mas os gastos federais na Amazônia não passam de 4,05% do total, quando a população no bioma é de 12,32% da nacional. O Programa de Ciência e Tecnologia para toda a área em 2008 foi previsto em apenas R$ 20,1 milhões e nem isso foi executado, assim como o programa para biotecnologias, de R$ 36,8 bilhões. Compare-se isso com as centenas de milhões de reais em subsídios concedidos a cada ano ao consumo de energia pelos setores que dali exportam os chamados eletrointensivos (alumínio, ferro-gusa, etc.) e que são os maiores beneficiários dos bilionários projetos de novas hidrelétricas na área. Ou com a fartura de incentivos fiscais na Zona Franca de Manaus. Pelo ângulo contrário, pode-se observar a escassez de recursos para o Ministério do Meio Ambiente, que tem pouco mais de 0,5% do Orçamento federal e não conseguiu há pouco sequer emplacar os 3 mil novos fiscais que desejava, teve de contentar-se com mil, dos quais apenas 500 para a Amazônia.
Se o desmatamento na Amazônia (que já está em 18% do total, mais de 700 mil km2, segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia) chegar a 30%, “haverá um processo irreversível de degradação”, diz o Imazon. Com consequências nefastas para o volume de chuvas e para o clima na região: segundo o Inpe, a temperatura poderá subir entre 4 e 6 graus no bioma, pelas atuais tendências; e isso afetará o clima em todas as outras regiões do País, onde já estão ocorrendo perdas graves de safras, por causa do aumento da temperatura, de secas, de inundações e outros “eventos extremos”.
Não faz sentido, assim, uma campanha pelo “facilitário” na legislação, até porque ela teria entre suas maiores vítimas os próprios autores – os “ruralistas”, que neste momento dão força a 18 projetos no Congresso para mudar a legislação que se refere a licenciamentos, obrigatoriedade de preservação de áreas e serviços naturais, abertura de territórios indígenas (melhor caminho para conservação da biodiversidade) à exploração, entre outros.
Também não faz sentido ignorar o que pensa a sociedade: pesquisa recente da Folha de S.Paulo e da Amigos da Terra mostra que 94% das pessoas são a favor da suspensão do desmatamento – ainda que implique menor produção de bens -, enquanto 91% defendem leis mais rigorosas contra a devastação.
Convém lembrar a recente análise do experiente historiador Eric Hobsbawn, para quem a crise mais grave no mundo, neste momento, não é a econômica nem a financeira, é a “ambiental”. Também nunca é demais repetir o pensamento do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, já mencionado neste espaço: os problemas centrais da humanidade, hoje, estão nas mudanças climáticas e no consumo de recursos naturais, já além da capacidade de reposição do planeta; esses problemas é que “ameaçam a sobrevivência da espécie humana”.
Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br
* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
[EcoDebate, 25/05/2009]
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