Dilemas socioculturais dos povos indígenas contemporâneos. Um artigo de Gersem Baniwa
Repercutindo o tema de capa da revista IHU On-Line desta semana, “Em busca da terra sem males: os territórios indígenas”, publicamos a seguir um artigo feito com exclusividade para nossa redação por Gersem Luciano Baniwa, liderança indígena Baniwa. No texto, ele escreve que “A importância da terra, da floresta, dos rios e das montanhas para os povos indígenas se justifica por essa interdependência material e espiritual entre os seres da natureza como condição vital”. E completa: “nas culturas indígenas todo objeto existente na natureza possui corpo e espírito, razão pela qual se deve ter respeito, solidariedade e gratidão entre eles”.
Gersem é o primeiro índio com mestrado em Antropologia no país, obtido na Universidade de Brasília (UnB). Formado em colégios salesianos e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ele foi secretário municipal de Educação e Meio Ambiente de São Gabriel da Cachoeira (AM). Atualmente, é conselheiro do Conselho Nacional de Educação (CNE), diretor-presidente do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP) e doutorando em Antropologia Social na UnB. É também autor do primeiro livro da série Via dos Saberes, intitulado O índio brasileiro – O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje (Brasília, Edições MEC/UNESCO, 2006). Os subtítulos são nossos:
Se no passado colonial os povos indígenas viveram um drama cultural em função da negação e da perseguição às suas tradições e culturas, hoje vivem profundos dilemas socioculturais em função da pressão e da sedução da cultura globocêntrica do mundo moderno. O que se observa é que quanto maior o nível de interação e inserção dos povos indígenas na sociedade nacional, maiores e mais profundos são os dilemas culturais enfrentados. Os dilemas aqui referidos são essencialmente de ordem existencial, ou seja, de auto-realização individual e coletiva, enfrentados pelos povos indígenas, e dizem respeito a conflitos de princípios e valores que orientam os modos de vida de sociedades e culturas profundamente diferentes.
Deste modo, os dilemas culturais enfrentados principalmente pelos jovens indígenas de hoje são gerados a partir da concorrência conflituosa de distintas visões de mundo, que provocam angústias, incertezas, choques culturais e até mesmo um vazio existencial que tem levado jovens indígenas a atitudes extremas, como a prática de suicídios, como os que ocorreram recentemente em São Gabriel da Cachoeira no estado do Amazonas, quando 16 jovens praticaram suicídio em apenas um ano.
A importância da auto-realização coletiva
Os modos de vida dos povos indígenas são orientados por princípios filosóficos e cosmológicos transmitidos desde tempo imemoriais pelos ancestrais e são eles que indicam a garantia de auto-realização pessoal que depende fundamentalmente da auto-realização coletiva no âmbito da família e do grupo étnico. Os princípios orientadores de vida indicam os ideais de vida que os indivíduos e coletividades precisam buscar pela sua “passagem terrena”. Os dilemas culturais indígenas são resultantes desse conflito de ideais de vida e não de conflitos de identidades, uma vez que os ideais de vida são constituintes da existência humana indígena enquanto que as identidades são necessidades de auto-afirmação social.
Povos da solidariedade
Mas que princípios e ideais de vida estamos falando? Os princípios são fundamentalmente os de interdependência da vida humana com a vida planetária, ou seja, com a natureza e o de interdependência entre a vida pessoal e a vida coletiva que torna os povos indígenas como povos da solidariedade. Os ideais de vida estão estreitamente ligados a esses princípios, ou seja, tornar os membros da comunidade em exímios conhecedores da natureza para se tornarem bons pescadores e bons caçadores que os possibilitarão terem boas esposas e se tornarem bons pais de família e boas lideranças do seu povo na medida em que forem capazes de serem generosos e solidários. Os mitos e os rituais são os instrumentos próprios para a transmissão e o exercício desses modos de vida, razão pela qual a destruição das tradições e das culturas torna a vida imprevisível, perigosa, incerta e angustiante para os povos indígenas. A importância da terra, da floresta, dos rios e das montanhas para os povos indígenas se justifica por essa interdependência material e espiritual entre os seres da natureza como condição vital. É importante destacar que nas culturas indígenas todo objeto existente na natureza possui corpo e espírito, razão pela qual se deve ter respeito, solidariedade e gratidão entre eles.
Conflito de princípios e preconceito
A vida orientada por meio dos conhecimentos míticos embora não ofereça promessas de esplendor e milagre além do vivido desde os tempos imemoriais, oferecia com segurança as condições e as razões da vida a todos os indivíduos e coletividades em iguais condições, possibilidades e oportunidades. Ao contrário, a vida orientada pelas possibilidades infinitas do mundo moderno, promete maravilhas difíceis ou impossíveis de serem alcançadas pela maioria dos indivíduos e das coletividades, como riqueza, casa bonita, tecnologia para todos os problemas, mulher bonita e poder de decidir sobre a vida pessoal “autonomamente”.
Os dilemas culturais enfrentados pelos povos indígenas na atualidade apresentam dois aspectos relevantes. O primeiro diz respeito aos conflitos de princípios e horizontes de vida que é comum existir em situações interétnicas. O segundo aspecto diz respeito ao preconceito e à discriminação que os povos indígenas sofrem por serem portadores de culturas diferentes. Este segundo aspecto é ainda mais complicado no mundo contemporâneo, pois além de aprofundar os dilemas culturais, geram violências de toda ordem contra os povos indígenas, provocadas deliberadamente e na maioria das vezes de forma institucionalizada. Com a consolidação do processo de interação dos povos indígenas com a vida urbana o estranhamento e os constrangimentos resultantes de práticas preconceituosas acontecem toda hora e de modos diversos, nos espaços compartilhados, como na escola, na igreja, no ônibus, no banco, no trabalho, etc. Estes preconceitos não acontecem simplesmente pelas diferenças culturais, sociais ou econômicas, mas porque essas diferenças são reprovadas, desprezadas e às vezes odiadas, em função de um ideal homogeneizador, etnocêntrico ou globocêntrico da vida moderna, representada por padrões artificiais criados pela mídia e pelas elites econômicas das sociedades ocidentais brancas.
A dificuldade de aceitar o outro diferente
Costumo dizer que os discursos multiculturais ou pluriculturais da modernidade estimularam possibilidades de convivência democrática e respeitosa entre as diferentes culturas e sociedades apenas quando alcançaram um nível mínimo de tolerância no respeito ao outro desde que este outro não contrarie os padrões e modos de vida da maioria. Mas não avançaram quase nada no tocante a uma efetiva convivência igualitária, democrática, de respeito e valorização do outro. Essa dificuldade de aceitar o outro diferente gera toda sorte de preconceito e discriminação. No âmbito do saber acadêmico, por exemplo, como respeitar e valorizar os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, quando só se admite como conhecimento verdadeiro aqueles produzidos sob os dogmas e métodos científicos das academias a partir da qual os saberes indígenas são negados? Além disso, o conhecimento acadêmico é um conhecimento individualizado e privatizado, vendido de acordo com interesses pessoais e não de coletividades. Imaginamos o dilema que representa para um jovem indígena na academia um conflito entre a perspectiva individualista e cumulativista da academia e a perspectiva comunitarista e solidária de sua cultura de origem. Isso afeta profundamente seus comportamentos, atitudes e as escolhas que precisa fazer, de um jeito ou de outro. Ele terá que escolher entre resistir preservando sua visão de mundo e do seu povo e assim procurar apropriar-se dos conhecimentos da ciência para pôr de forma solidária a serviço de seu povo ou não resistirá e incorporará a visão de mundo do mundo branco, tomando os conhecimentos aprendidos na academia para seu proveito pessoal, para acumular prestígio pessoal, poder e riqueza cumulativa. Ë bom destacar que em sociedades coletivistas não há espaço para açulo de riquezas e de poder, na medida em que estes só tem sentido partilhado e socializado por lealdades ao grupo.
As conseqüências das contradições
Por experiência própria de anos de filiação acadêmica é muito difícil para um indígena viver com tranqüilidade com essas contradições e antagonismos de vida, pois se trata de escolhas e lealdades sensíveis, profundas e com conseqüências imprevisíveis tanto no âmbito pessoal, quanto no âmbito social, enquanto indivíduo que deve lealdade ao seu povo. A todo o momento eu preciso fazer uma escolha: guiar-me pelas “verdades” da ciência ou pelos princípios orientadores da tradição do meu povo. Concretamente falando, quando fico doente na cidade, preciso sempre escolher entre ir ao médico ou viajar urgentemente para a aldeia em busca de cura. É bom que se diga que para a medicina indígena toda cura corporal precisa de cura espiritual, uma vez que a doença é sempre uma violação da ordem e da harmonia da natureza por quem adquiriu uma doença. O conflito é real, na medida em que se por um lado sei que a doença é espiritual pela tradição milenar do meu povo, também sei por anos de academia que a doença pode ser resultado de bactérias, vírus e outros agentes nocivos no organismo que precisariam ser curados por um medicamento específico.
No âmbito das religiões ocorre o mesmo processo quando se apresenta como únicos deuses verdadeiros aquele deuses europeus ou neo-europeus, negando todas as religiões milenares dos povos nativos das Américas. Mais uma vez são religiões e deuses gananciosos, materialistas, utilitaristas, cumulativistas, autoritários que punem, castigam, perseguem e são sedentos de poder e riqueza. Ao contrário, as religiões e os deuses indígenas zelam pelo equilíbrio da natureza. Os deuses são os sábios da natureza ou os próprios espíritos dos seres da natureza, cuja missão é garantir a capacidade de harmonia e equilíbrio entre os seres do mundo. Todo esse antagonismo de realidades e perspectivas vivenciadas pelos jovens indígenas de hoje gera fortes conflitos pessoais.
Raposa Serra do Sol e a questão da terra
Nesses últimos dias vivemos no Brasil uma onda vergonhosa de preconceito e discriminação contra os povos indígenas, provocada pelo caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, prova inconteste de que a sociedade moderna, pelos menos a brasileira, está longe de deixar de ser uma sociedade racista, que gera profundos dilemas e conflitos aos jovens indígenas de hoje. A questão dos direitos indígenas é a principal fonte de discriminação e preconceito contra os povos indígenas. Ë a herança perversa do pensamento medieval e colonial, que considerava a cultura européia como a única aceitável. A comparação é contra toda e qualquer possibilidade de uma sociedade multicultural. Se o princípio da multiculturalidade é a possibilidade de convivência harmoniosa ou tolerante entre diversas culturas e etnias, então é necessário se admitir as diversas formas de vida dos povos e das culturas. Ora, os povos indígenas só podem continuar com suas culturas, tradições, suas línguas, suas mitologias, seus rituais, suas cosmologias, suas filosofias, seus sistemas econômicos, jurídicos e políticos, se continuarem tendo seus espaços territoriais e processos educativos próprios. Querer que os povos indígenas vivam em terras minúsculas ou em apartamentos aos modos dos não índios nos centros urbanos é querer que eles sejam extintos, deixem de existir como povos culturalmente distintos. Os povos indígenas, que vivem basicamente de caça e pesca, agricultura itinerante, de rituais, de cerimônias, de economia da reciprocidade e da solidariedade, precisam de territórios suficientes para esse exercício de vida coletiva. Neste caso, o tamanho do território determina as condições de sobrevivência econômica, mas principalmente a sobrevivência sociocultural. Afinal de contas, aonde irão desenvolver seus rituais, suas tradições, suas caçadas e pescarias coletivas a não ser em territórios adequados para isso?
Sem dúvida esse é o maior desafio dos povos indígenas do Brasil de hoje. Como fazer com que a sociedade brasileira, principalmente os segmentos mais conservadores, entenderem que os povos indígenas, por serem portadores de culturas e modos de vidas diferentes das sociedades não indígenas já reconhecidos pelas leis brasileiras, precisam ser vistos e tratados de formas diferentes, principalmente no quesito terra, educação e saúde. As terras indígenas precisam ser suficientes para garantir a reprodução física e cultural dos povos indígenas. A educação escolar e a saúde indígena precisam dar conta além da cidadania e direito universal de acesso à saúde e educação pública de qualidade, da educação e saúde diferenciada, o que significa produção e materiais didáticos específicos, de formação de professores e agentes de saúde indígena específicos, além do envolvimento de pajés e lideranças tradicionais nas políticas públicas, pois só eles podem orientar a qualidade dos serviços e das políticas públicas voltados aos povos indígenas.
Um olhar de experiências concretas
Neste sentido, livro “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje“, de minha autoria, tem uma característica particular pelo fato de ser um livro escrito a partir de experiências concretas de vida. Portanto, reflete um olhar do que é vivido e não de conjecturas, análises, ou teorias. Além disso, o livro é escrito para um público específico que são os jovens indígenas e não indígenas que estão iniciando seu processo de enfrentamento com o mundo de sociedades que se pretendem um dia pluriculturais e multiétnicas, mas que enfrentam dilemas culturais e civilizacionais profundos. Além disso, é um livro que privilegia a relação dos povos indígenas do Brasil com a sociedade nacional e internacional, principalmente com o Estado brasileiro, na medida em trata dos desafios históricos, presentes e futuros dos povos indígenas contemporâneos. Isso é importante ser considerado, pois o meu olhar não está focado no passado nem no que se poderia considerar como tradição, muito privilegiado pela antropologia clássica, mas focado no contexto presente e nas expectativas do futuro que os povos indígenas estão construindo e as estratégias que vão traçando para garantir seu espaço na sociedade de hoje, moderna, globalizada e tecnológica. Ou seja, procurei abordar temas, idéias, sonhos que estão sendo falados, pensados, trabalhados pelos povos indígenas, aproveitando-me do privilégio de fazer parte dessas coletividades e dos processos sócio-políticos que estão construindo.
Respeito às culturas e aos direitos de cidadania
A garantia de um futuro digno e desejável para os jovens indígenas depende fundamentalmente de dois horizontes articulados: o respeito às suas culturas próprias e o respeito aos seus direitos de cidadania universal e específica, não somente como pertencentes a culturas e identidades particulares. Neste sentido, entendo que lutar contra o preconceito é uma decisão e atitude que precisa ser assumida pela sociedade de um modo geral. Ações que valorizem as diferenças étnicas e culturais devem fazer parte do dia-a-dia de todos, como um exercício de cidadania e humanidade. É preciso que todo cidadão aprenda a repudiar todo e qualquer tipo de discriminação e preconceito contra quem quer que seja, mas principalmente contra aqueles duplamente indefesos, como são as crianças e jovens indígenas. O diálogo pode ser o único caminho capaz de produzir soluções efetivas aos muitos problemas enfrentados pelos povos indígenas no Brasil. A exclusão desses está na invisibilidade e nos rótulos errôneos e pré-conceituosos que se convencionou estabelecer no imaginário das pessoas. O sistema educacional precisa sofrer profundas mudanças. O índio precisa ser visto como um cidadão especial esteja ele vivendo na cidade ou na aldeia, pois o índio nunca deixa de ser índio. Ser índio é ter coração, alma e corpo diferente, mas nem melhor, nem pior que todos os demais. As políticas de inclusão devem garantir os direitos dos índios e preservar sua relação com os recursos naturais e de sustentabilidade de seus territórios e de suas unidades sócio-culturais.
A capacidade de luta pela sobrevivência
Apesar das muitas dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas brasileiros, existe um fator determinante e positivo que oferece esperanças para o seu futuro: sua capacidade de luta pela sobrevivência. Em meados do século passado, havia previsões políticas e científicas de extinção iminente desses povos, quando se estimava que a população houvesse atingido uma baixa recorde de 100 mil indígenas no Brasil. Em 2002 o IBGE contabilizou mais de 700 mil pessoas. Entre os recentes acontecimentos que contribuíram para essa sobrevivência e recuperação demográfica estão o crescimento e o fortalecimento de organizações indígenas autônomas durante as décadas de 1980 e 1990, o que, pela primeira vez, recuperou-os como protagonistas de sua própria luta em âmbito local, regional, nacional e internacional. Esse deve ser o maior legado da atual geração de lideranças indígenas para as futuras gerações de lideranças que hoje estão se preparando no calor e no sabor da luta que vale apena continuar e da qual ninguém está disposto a abrir mão.
A dívida histórica brasileira
Por fim, o maior desafio do Brasil continua sendo o de pagar sua dívida histórica com os povos indígenas e com as crianças e jovens indígenas de hoje, que é libertá-los do processo histórico de mais de 500 anos de confinamento territorial, cultural, político e econômico. É bom destacar também os povos indígenas que continuam contribuindo enormemente com a consolidação do Estado e da sociedade brasileira com suas diversidades e riquezas culturais na culinária, nas artes, na comunicação, na economia, e também com o valor patrimonial de seus territórios que são bens da União, portanto, do povo brasileiro com seus recursos naturais. Essas terras apresentam indiscutível importância estratégica para o país, haja vista a sua inestimável riqueza da sociobiodiversidade, ainda altamente preservada e protegida pelos seus habitantes ancestrais. Nesta perspectiva, a presença dos povos indígenas no Brasil representa em sua totalidade um fato de extraordinária importância na história do país e constitui um fenômeno social que tem características, problemas e conquistas específicas. As reivindicações dos povos indígenas por educação, por terra, por recursos naturais, por um meio ambiente saudável, pelo reconhecimento de sua organização social, por suas estruturas políticas próprias, por sistemas econômicos sustentáveis, por seus símbolos de identidade, encontram cada vez maior justificação moral e ética na sociedade brasileira e mundial.
(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line, 16/05/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
So professore no curso de Pedagogia, na Faculdade Inisul, em Colombo no Paraná, e gostaria de entrar em contato com o coordenador GERSEM LUCIANO BENIWA. OBRIGADA, Professoa Leila.