Ameaças internacionais ao acesso a medicamentos genéricos, artigo de Cláudia Chamas
[Gazeta Mercantil] Recentemente, 500 quilos do medicamento Losartan, produzido pela empresa Dr. Reddy’s , foram embarcados na Índia com destino ao Brasil. No transbordo em aeroporto na Holanda, a carga do anti-hipertensivo foi retida pela aduana local sob a acusação de violação de patente, embora não contasse com proteção patentária na Índia ou no Brasil. Foi alegado que a existência de um regime proprietário na Holanda constituiria elemento suficiente para obstaculizar o livre trânsito da mercadoria. Vale ressaltar que a origem do fabricante era bem conhecida e não havia intenção de comercializar a droga em território europeu.
O caso Losartan é apenas um entre vários. Em nível internacional, há uma coordenação de interesses dos países desenvolvidos no sentido de usar os conceitos de falsificação e pirataria de medicamentos para além dos interesses de defesa da saúde das pessoas. A regulação desses conceitos em esfera externa às questões de saúde pública constitui medida comercial, justificando ações preventivas em supostos casos de violação de patentes. A expansão dessa abordagem para um acordo global viabilizaria apreensões de genéricos sob a justificativa de crimes de ofensa à propriedade intelectual.
Em janeiro passado, partindo-se de orientações da Força-Tarefa Internacional Anti-Contrafação de Produtos Médicos, foram realizadas tentativas de legitimar política semelhante à europeia no âmbito do Conselho Executivo da OMS. Esses movimentos não vingaram em função de forte oposição do Brasil, com apoio da Índia, de Bangladesh e de outros países em desenvolvimento. Definitivamente, a OMS não é um fórum para a discussão de normas de aplicação de propriedade intelectual. Infelizmente, essa vitória pode ser temporária, posto que não cedem às pressões por medidas de controle mais severas.
Em fevereiro, Brasil e Índia levaram o assunto ao Conselho Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). O pronunciamento do diretor da Organização, Pascal Lamy, revelou a relevância do caso para a organização, ao destacar que merecem apoio os esforços para garantir o acesso a medicamentos e que barreiras ao comércio genuíno de genéricos devem ser evitadas. Em março passado, o representante permanente brasileiro na OMC, embaixador Roberto Azevedo foi porta-voz de um vigoroso protesto naquela organização (feito também em nome da Índia), no qual chamava a atenção para o episódio, por ele classificado como “uma séria violação das regras da OMC”.
A posição do governo brasileiro, expressa pelo Itamaraty, é inequívoca: pirataria e falsificação de medicamentos têm a ver com saúde pública e sua extensão a assuntos ligados à propriedade intelectual servirá apenas para garantir novas pretensões de lucros das indústrias farmacêuticas e dificultar o acesso de populações pobres do mundo a medicamentos essenciais.
As retenções dos últimos meses parecem não levar em consideração todo o empenho dos países em desenvolvimento visando a uma leitura dos acordos Trips mais condizente com a ampliação do acesso a medicamentos essenciais. Contraria o interesse público expresso na Declaração sobre o Acordo Trips e a Saúde Pública (2001), na agenda do Desenvolvimento da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2007) e na Resolução sobre Estratégia Mundial e Plano de Ação para Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual da OMS (2008).
Sucessivas retenções de cargas de genéricos em rota para o Brasil fragilizariam a política de acesso universal a medicamentos. O País importa regularmente princípios ativos de outros países, inclusive de países em desenvolvimento. A proliferação deste tipo de norma afrontaria nossos propósitos de busca por produtos de qualidade ao menor custo possível. O segmento mais afetado negativamente seria a população de baixa renda, usuária intensiva do Sistema Único de Saúde(SUS).
No futuro próximo, tememos a construção de um cenário ainda menos generoso para os sistemas de saúde dos países do Sul. No entanto, acreditamos no bom senso dos formuladores de política dos países desenvolvidos que deveriam rever suas posições unilaterais e não criar obstáculos à produção e distribuição de genéricos, posicionando o interesse humanitário acima das ilimitadas pretensões de lucro.
(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 3)
CLÁUDIA CHAMAS* – Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz)
[EcoDebate, 21/05/2009]
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