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Artigo

Feminicídio no Congo, por Eve ENSLER

Traduzido por Cristina Santos

Volto do inferno. Procuro desesperadamente uma maneira para vos contar o que vi e ouvi na República Democrática do Congo. Procuro uma maneira para vos contar as histórias e as atrocidades, e ao mesmo tempo, evitar que fiquem abatidos, chocados ou afectados mentalmente. Procuro uma maneira de vos transmitir o meu testemunho sem gritar, sem me imolar ou sem procurar uma AK 47. Não sou a primeira pessoa que denuncia as violações, as mutilações e as desfigurações das mulheres do Congo. Existem relatórios a respeito deste problema desde 2000. Não sou a primeira que conta estas histórias, mas como escritora e militante contra a violência sexual contra as mulheres, vivo no mundo da violação. Passei dez anos a ouvir as histórias de mulheres violadas, torturadas, queimadas e mutiladas na Bósnia, Kosovo, Estados Unidos, Cidade Juárez (México), Quénia, Paquistão, Haiti, Filipinas, Iraque e Afeganistão. E apesar de saber que é perigoso comparar atrocidades e sofrimentos, nada do que eu tinha ouvido até agora era tão horrível e aterrorizador como a destruição da espécie feminina no Congo.

A situação não é mais do que um feminicídio e temos que a reconhecer e analisar tal como é. É um estado de emergência. As mulheres são violadas e assassinadas a toda a hora. Os crimes contra o corpo da mulher já são horríveis por si. No entanto, há que acrescentar o seguinte: por causa de uma superstição que diz que se um homem viola mulheres muito jovens ou muito idosas obtém poderes especiais, meninas de menos de doze anos de idade e mulheres de mais de oitenta anos são vítimas de violação. Também há que acrescentar as violações das mulheres à frente dos seus maridos e filhos. Mas a maior crueldade é a seguinte: soldados seropositivos organizam comandos nas aldeias para violar as mulheres, mutilá-las… Há relatos de centenas de casos de fístulas na vagina e no recto causadas pela introdução de paus, armas ou violações colectivas. Estas mulheres já não conseguem controlar a urina ou as fezes. Depois de serem violadas as mulheres são também abandonadas pela sua família e a sua comunidade.

No entanto, o crime mais terrível é a passividade da comunidade internacional, das instituições governamentais, dos meios de comunicação… a indiferença total do mundo perante tal extermínio.

Passei duas semanas em Bukavu e Goma a entrevistar as sobreviventes. Algumas eram de Bunia. Efectuei pelo menos oito horas de entrevistas por dia. Almocei e fui a sessões de terapia com estas mulheres. Chorei com elas. O nível de atrocidades supera a imaginação. Não tinha visto em nenhuma parte este tipo de violência, de tortura sexual, de crueldade e de barbárie. No Este do Congo existe um clima de violência. Nesta zona as violações tornaram-se, tal como me disse uma sobrevivente, um “desporto nacional”. As mulheres são menos que cidadãs de segunda classe. Os animais são mais bem tratados. Parece que todas as tropas estão implicadas nas violações: as FDLR, as Interahamwe, o exercito congolês e até as forças de paz da ONU. A falta de prevenção, de protecção e a ausência de sanções são alarmantes.

Passei uma semana no Hospital de Panzi, a viver numa aldeia de mulheres violadas e torturadas. Era como uma cena de um filme de terror futurista. Ouvi histórias de mulheres que viram os seus filhos serem brutalmente e cinicamente assassinados. Mulheres que foram forçadas, debaixo da ameaça de armas, a ingerir excrementos, a beber urina ou a comer bebés mortos. Mulheres que foram testemunhas da mutilação genital dos seus maridos ou violadas durante semanas por grupos de homens. Estas mulheres faziam fila para me contar as suas histórias. Os traumas eram enormes e o sofrimento extremamente profundo. Sentei-me com mulheres que tinham sido cruelmente abandonadas pelas suas famílias, excluídas por causa do seu cheiro e pelo que tinha sofrido. Eu quero falar-vos da Noella. Mudei-lhe o nome para a proteger porque ela só tem nove anos de idade. A Noella vive dentro de mim agora, persegue-me, leva-me a tomar acções, a lembrar. Ela é magra, muito inteligente e viva. O dano está no seu corpo ligeiramente torto, envergonhado, preocupado. Ela sente a ansiedade nos seus pequenos dedos. Começa a contar a sua história como se ainda a estivesse a viver. Para ela o tempo parou. “Uma noite as Interahamwe vieram a nossa casa. Eles não deixaram nada. Pilharam a nossa casa. Levaram a minha mãe para um lado, o meu pai para outro e a mim para outro. Levaram-me para o mato. Um deles pôs qualquer coisa dentro de mim. Não sei o que foi. Um disse para o outro, não faças isso, não faças mal a uma criança. O outro bateu-me. Eu estava a sangrar. Ele bateu-me mais e eu caí. Depois abandonou-me. Passei duas semanas com os soldados. Eles violaram-me constantemente. Às vezes usavam paus. Um dia deixaram-me no mato. Tentei caminhar até à casa do meu tio. Consegui, mas estava demasiado fraca. Tinha febre. Estava muito mal. Cheguei a casa. O meu pai tinha sido morto. A minha mãe voltou, mas em muito mau estado. Comecei a perder a urina e as fezes sem controlo. Depois a minha mãe percebeu que eles me tinham violado e destruído. Eles registraram o que me tinha acontecido e trouxeram-me para aqui. Estou contente por estar aqui. Já não perco as urinas e ninguém se ri de mim. Os rapazes riem-se de mi. Já não tenho vergonha. Deus julgará aqueles homens, porque eles não sabem o que fazem. Quero restabelecer-me. Também penso em como eles mataram o meu pai. Sempre que penso no meu pai as lágrimas caiem-me pela cara abaixo.”

O Dr. Mukwege, que, tanto quanto posso dizer, é um tipo de médico “santo” no hospital, disse-me que a uretra da Noella está destruída. Sendo tão jovem, ela não tem tecido suficiente para operar. Terá de esperar oito anos. Oito anos de vergonha e humilhação. Oito anos em que será forçada a recordar todos os dias o que aqueles homens lhe fizeram na floresta antes dela ter idade suficiente para saber o que era um pénis. Ela é incontinente. O médico disse-me: “o que acontece a estas jovens é terrível. Elas têm muito medo de ser tocadas por homens. Às vezes leva semanas até eu as conseguir tratar. Dou-lhes bombons e trago-lhes bonecas.”

As mulheres sofrem imenso. Estão debilitadas pelas violações, as torturas e a brutalidade. Não têm praticamente apoio nenhum. Depois de viver estas atrocidades são incapazes de trabalhar nos campos ou de transportar coisas pesadas, por isso deixam de ter rendimento. Vi chegar pelo menos doze mulheres por dia a essa aldeia. Chegavam a coxear e apoiadas em bengalas feitas à mão. Várias mulheres contaram-me que “as florestas cheiravam a morte” e que “não se podia dar nem cinco passos sem tropeçar com um corpo”. Durante a semana que passei em Panzi, o governo cortou a água por isso o hospital, onde havia centenas de mulheres feridas, ficou sem água. O mesmo hospital pelo qual as mulheres tinham andado mais de sessenta quilómetros porque não havia outro mais perto. O mesmo hospital onde não havia nada para comer, (duas crianças morreram de má nutrição num dia), onde as mulheres tinham de ficar durante meses, às vezes anos, porque as suas aldeias eram tão perigosas ou porque eram tão rejeitadas, após terem sido violadas e desonradas, que não tinham um lugar para onde voltar, onde as mulheres não podiam apresentar queixa porque os violadores podiam facilmente comprar a sua saída da prisão, voltar e violá-las outra vez, ou matá-las.

E enquanto nós estamos aqui a escrever o nosso relatório, há mulheres que estão a ser violadas, meninas que estão a ser destroçadas para sempre, mulheres que estão a ser testemunhas do assassínio (a golpe de catana) das suas famílias e outras que estão a ser infectadas pelo o vírus da SIDA. Onde está a nossa indignação? Onde está a consciência das pessoas?

Em 1999, eu voltei aos EUA de uma viagem ao Afeganistão ainda debaixo do poder dos talibans. As condições das mulheres, a violência… era uma loucura. Dirigi-me a todas pessoas que consegui encontrar, canais de televisão, revistas, líderes, etc. Com excepção de uma revista, ninguém parecia estar interessado no problema das mulheres afegãs. Naquela altura eu sabia que se não se interviesse, se o mundo não se levantasse e ajudasse as mulheres, haveria graves consequências internacionais. Sabemos o que aconteceu depois. Não apenas o 11 de Setembro, mas a reacção ao 11 de Setembro, a profanação do Iraque, a justificação dos ataques preemptivos, o aumento da militarização e violência e o terror que ainda hoje continua a aumentar.

As mulheres são o centro de qualquer cultura e sociedade. Embora possam não ter poder ou direitos, como são tratadas, como são, ou não são, valorizadas, indica o que a sociedade sente em relação à própria vida. As mulheres do Congo são resistentes, poderosas, visionárias e solidárias. Com poucos recursos elas poderiam ser líderes do país e tirá-lo do seu actual estado de desordem, pobreza e caos; ou podem ser aniquiladas e com elas, o futuro do país. A República Democrática do Congo é o coração de África, o centro dinâmico e a promessa do futuro. Se se permitir a destruição das mulheres, mata-se a vida, não apenas do Congo, mas de todo o continente africano. Eu estou aqui, como artista e activista, mas sobre tudo estou aqui como um ser humano destroçado pelo que ouvi na República Democrática do Congo. Estou aqui para vos implorar, àqueles que têm poder, para declarar estado de emergência no Este do Congo, para dar um nome ao que está a ser feito às mulheres: feminicídio. Para se juntarem à nossa campanha internacional para parar as violações do melhor recurso do Congo e dar poder às mulheres e raparigas do Congo. Para desenvolver os mecanismos para proteger estas mulheres, para parar estes crimes horrorosos e desumanos.

Recomendações para terminar com a violência contra as mulheres e raparigas na República Democrática do Congo:

A impunidade para violência sexual tem de terminar. Apesar de centenas de milhares de mulheres e raparigas violadas, não houve praticamente nenhuma acusação. Incumbe a toda comunidade internacional fortalecer mecanismos na República Democrática do Congo para assegurar que os violadores são levados à justiça e as vítimas protegidas através de acções judiciais. (Mais mulheres juízas, assim como mais mulheres na polícia e advogadas são essenciais para que isto aconteça).

Está previsto o Conselho de Segurança ir à República Democrática do Congo na próxima semana. É importante que eles:

a) Falem com o Governo seriamente sobre o assunto da violência sexual. Devem abordar este tema com o Presidente e perguntar especificamente o que é que ele está a fazer para assegurar que os militares (que são quem mais comete estes crimes) não cometem crimes de violência sexual e que os comandantes são responsabilizados pelas acções dos seus soldados e que os soldados também são levados à justiça.

b) Ao reunir-se com o parlamento e as autoridades eleitas, o Conselho de Segurança deve insistir para que se estabeleça uma comissão parlamentária sobre a violência sexual. Deve também apelar para que sê de início a um debate público com o ministro da defesa sobre este tema.

A Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC) deveria estabelecer uma unidade de combate contra a violência sexual, incluindo pessoal militar e civil, para dar prioridade à “resposta dada às sobreviventes de violência sexual e à protecção de mulheres e crianças, sobre tudo em Goma e Bakuvu”. Os países que contribuem com tropas também têm de ter um papel mais activo enviando mulheres como soldados da paz.

Os estados membros e as Nações Unidas devem mostrar o seu compromisso para terminar com a violência contra as mulheres da República Democrática do Congo através da atribuição de recursos financeiros significantes. Existem alguns bons projectos, por exemplo o Hospital de Panzi, mas isto é muito pouco quando consideramos as enormes necessidades e a magnitude da violência. São precisos mais recursos e podiam ser usados para apoiar, por exemplo, programas de rádio/televisão por mulheres sobre os direitos das mulheres, violência contra as mulheres, e outros temas importantes que precisam de ser abordados para romper o silêncio sobre a violência sexual.

Os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas devem pedir ao Secretário-geral que providencie um relatório sobre a situação da violência sexual na República Democrática do Congo. Este relatório deve ser recebido pelo Conselho em tempo oportuno (3 meses).

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Fonte: Eve Ensler
Artigo original publicado a 15 de junho de 2007

Sobre o autor
Eve Ensler: Dramaturga, artista, activista

Eve Ensler é a autora galardoada de Monólogos da Vagina, peça que foi traduzida para mais de 45 línguas e está em exibição em teatros em todo o mundo, incluindo no Off-Broadway’s Westside Theater e no West End de Londres. Eve tem dedicado a sua vida à luta contra violência e sonha com um planeta em que as mulheres são livres para prosperar em vez de apenas se limitarem a sobreviver.

Eve fundou V-Day, um movimento global que apoia organizações anti-violência em todo o mundo, ajudando-as a continuar e expandir o seu trabalho principal em campo, e ao mesmo tempo chamando à atenção do público para a luta contra a violência mundial contra as mulheres (incluindo violação, espancamento, incesto, mutilação genital feminina, escravidão sexual).

Para mais informação sobre Eve Ensler e V-Day visite: www.vday.org

Este artigo é para português de Portugal
Cristina Santos é membro de Tlaxcala, a rede de tradutores pela diversidade lingüística. URL deste artigo em Tlaxcala: http://www.tlaxcala.es/pp.asp?reference=3924&lg=po

enviado por Márcia Martins e publicado pelo EcoDebate

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