Belo Monte e o ‘W’ do desmatamento, artigo de Rodolfo Salm
Rio Xingu
“A usina Belo Monte deve ser mesmo licitada em setembro ou outubro”, anunciou a Agência Brasil, órgão de comunicação do governo federal, no dia 10 de maio. Segundo o secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, o licenciamento ambiental para a obra “está bem encaminhado e tramita normalmente”. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, ainda definiu como “estapafúrdias” as notícias com informações contra as previsões de Zimmermann.
Na verdade, estapafúrdio mesmo é o ministro “ambientalista”, o grande licenciador de obras e barrageiro Carlos Minc falar em leilão se o estudo de impacto ambiental de Belo Monte ainda não está concluído. Falta justamente o componente antropológico, que aborda um dos aspectos mais delicados deste projeto megalomaníaco, ainda em desenvolvimento. Aliás, neste momento, a equipe de pesquisadores contratada para executá-lo está em uma expedição de campo investigando fortes indícios da presença de índios não contatados (que ainda vivem sem contato direto com a nossa civilização) a meros 60 km em linha reta do local onde se pretende construir a barragem da terceira maior hidrelétrica do mundo!
Além disso, os membros da equipe já localizaram diversas populações de índios de várias etnias vivendo no perímetro urbano de Altamira, em quantidades muito superiores ao inicialmente previsto. Os estudos mostraram também que essas populações concentram-se justamente nas áreas que seriam mais afetadas com os alagamentos. E ninguém tem a mínima idéia do que será feito dessa gente. Quando o secretário de Minas e Energia diz que o licenciamento ambiental “tramita normalmente”, na verdade ele pretende passar aos investidores a idéia de que isso tudo não interessa, pois neste e em outros casos gravíssimos na Amazônia brasileira os licenciamentos ambientais são uma mera formalidade burocrática.
O biólogo Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, publicou, em março de 2007, um interessante artigo justamente sobre este problema, na revista norte-americana Environmental Management (Brazil’s Cuiabá- Santarém Highway: The Environmental Cost of Paving a Soybean Corridor Through the Amazon), com foco na pavimentação da BR-163 (disponível em http://philip.inpa.gov.br/). Antes que o criticassem por ser um norte-americano (mesmo que residente e atuante no Brasil) dando opiniões sobre os rumos do desenvolvimento do nosso país, ele destacou que os desmatamentos na Amazônia brasileira têm impactos globais e que, portanto, são, justificadamente, uma preocupação internacional, no que concordo totalmente. Observou então que o papel fundamental da infra-estrutura como força condutora dos desmatamentos faz do aprimoramento dos processos de tomada de decisão para os grandes projetos uma questão de interesse central para o manejo ambiental, citando o caso concreto da pavimentação do “corredor da soja” através da Floresta Amazônica.
A pavimentação da rodovia tornou-se uma prioridade para o governo do Mato Grosso e para vários setores do governo federal, por representar uma rota de escoamento da soja cultivada no norte daquele estado até a calha do Amazonas, de onde os grãos seriam exportados de navio. A BR-163 foi aberta em 1973. Mas o seu estado precário, especialmente na estação chuvosa, é um impedimento significante para o influxo de imigrantes e investimentos (e, conseqüentemente, de degradação ambiental). Por isto, hoje, quando observadas nas imagens de satélite, as margens da rodovia ainda representam uma faixa relativamente estreita de algumas dezenas de quilômetros de desmatamentos, em contraste com a imensa região devastada ao longo da rodovia Belém-Brasília, aberta mais ou menos na mesma época, mas asfaltada já em meados da década de 1970 pelo então presidente Médici.
Fearnside observou que a história recente da BR-163 é um bom exemplo das atuais deficiências do sistema de licenciamento ambiental no Brasil. Um problema fundamental são os procedimentos de licenciamentos e estudos de impacto ambiental estarem sujeitos a pressões de forças poderosas interessadas em acelerar os processos a qualquer custo e remover obstáculos para a construção da infra-estrutura. Em 2004, poucos dias depois da criação de um Grupo de Trabalho especial para o controle do desmatamento, o presidente Lula reuniu seus ministros para exigir formas de contornar impedimentos de qualquer natureza, incluindo ambientais, para a instalação das obras.
Para Fearnside, um aspecto chave do debate acerca da BR-163 foi o esforço em suprimir da discussão a possibilidade de não pavimentar a estrada como planejado, permitindo apenas sugestões sobre como mitigar ou minimizar os impactos do projeto. Exatamente como acontece hoje no debate sobre Belo Monte.
A discussão sobre os impactos invariavelmente começa com o pressuposto de que a pavimentação da rodovia (ou a construção da barragem, no nosso caso) é inevitável, restando apenas a possibilidade de discussão dos detalhes sobre as formas com que será efetivada. As audiências públicas e outros encontros oficiais são geralmente explícitos em permitir apenas comentários “positivos”, no sentido de que seus participantes devem aceitar a realização das obras como pressuposto da participação. Desta forma, as discussões são limitadas a como minimizar os impactos negativos o tanto quanto possível, sem fazer qualquer menção à discussão de se pavimentar ou não a rodovia.
Fearnside ainda observou que o problema fundamental de mega-obras de infra-estrutura (como a barragem de Belo Monte e a pavimentação da BR-163) é que suas áreas de impacto são um território praticamente sem lei e de impunidade generalizada, especialmente no que se refere ao meio ambiente, e que estas obras também funcionam como fortes estímulos à devastação. E, para que sejam tomadas decisões racionais, estes impactos sobre a maior floresta tropical do planeta devem ser considerados em oposição aos possíveis benefícios das obras. O simples anúncio da pavimentação da BR-163 já fez crescer a especulação de terras e os desmatamentos não só ao longo da rodovia, mas também em áreas fisicamente distantes dela. A expectativa da pavimentação fez com que, por exemplo, em 2004, houvesse uma explosão nas atividades de grileiros no município de Apuí, no estado do Amazonas, a mais de 1.000 km da estrada!
Com o anúncio da retomada das obras de pavimentação da rodovia, foram feitas promessas de aumento da governabilidade e estímulo à “florestania” (floresta + cidadania), nas palavras da então ministra Marina Silva. O prefeito de Garantã do Norte, município cortado pela rodovia no norte do Mato Grosso, chegou a se declarar um “prefeito verde” e anunciar planos que levaram alguns observadores precipitados a tomá-lo como evidência de que conteria os desmatamentos ao longo da rodovia.
Ironicamente, poucos meses depois, a chefe do Fundo Nacional do Meio ambiente foi tomada como refém por madeireiros nesta cidade até o prefeito concordar em cancelar a criação de duas novas reservas em Garantã do Norte. Em um outro exemplo da governabilidade precária da região, para controlar o transporte de madeira, em 2004 o IBAMA estabeleceu um ponto de fiscalização na junção da rodovia Transamazônica com a Cuiabá-Santarém, mas, pouco tempo depois, por pressão dos madeireiros locais, este controle foi removido. Estes são casos dentre vários outros que ilustram como a tal governabilidade, apesar das notícias em contrário, ainda é uma promessa, e não realidade. E que seria prudente investir numa real governabilidade e se assegurar de sua prevalência, através da interrupção dos desmatamentos por um número mínimo de anos, antes que se decida efetivamente pela pavimentação da rodovia.
Um aspecto importante da BR-163 é que sua rota cai justamente em um faixa de clima mais seco que é a maior parte da Amazônia. Desta “língua” de clima relativamente seco, paralela ao curso do rio Tapajós, a pluviosidade aumenta à medida que nos deslocamos tanto para o leste (em direção a Belém) quanto para o oeste (em direção a Manaus). Mas o fundamental é que este clima mais seco é benéfico sob o ponto de vista da agricultura e da criação de gado, aumentando assim a lucratividade dos desmatamentos, que se multiplicarão através de uma infinidade de estradas secundárias para os dois lados – que já existem, mas que se multiplicarão absurdamente com a pavimentação da rodovia.
Os desmatamentos na Amazônia estiveram até aqui confinados principalmente em um “arco de desmatamento”, que se estende como um crescente da rodovia Belém-Brasília para o leste, através dos limites da Floresta Amazônica com o Cerrado no norte do Mato Grosso, e continua ao longo da BR-364, através do estado de Rondônia e do leste do Acre. A pavimentação da BR-163 deve mudar este padrão, com a região sendo cortada ao meio de norte a sul, até a calha do rio Amazonas, estendendo o arco do desmatamento e fazendo dele um “W do desmatamento”, ferindo a floresta em seu ponto central.
Por cima de tudo isso, barrageiros como os ministros Carlos Minc e Dilma Roussef, com a aprovação do presidente Lula, querem botar, com um leilão já marcado para os próximos meses, a hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no centro desta figura sinistra como um propulsor extra da devastação.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.
* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[EcoDebate, 20/05/2009]
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