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Como fica uma árvore quando morre alguém muito bom?

 

Raízes de árvore. Foto: MyriRoet / Pixabay
Foto: MyriRoet / Pixabay

Ao Papa Francisco por amor aos pobres e pela grandeza de ser humano

A árvore não precisa compreender a perda com a lógica. Ela compreende com raízes. E raízes não raciocinam — elas sentem

Ensaio de Rosângela Trajano

Há perguntas que não nascem para ter resposta exata. Nascem como brotos frágeis, apenas para crescer em silêncio dentro da gente. Uma dessas perguntas é: como fica uma árvore quando morre alguém muito bom?

Poderíamos dizer que nada muda. A árvore continua ali, enraizada no mesmo lugar, alheia às dores humanas, seguindo o curso da fotossíntese e das estações. Mas quem já sentiu uma perda grande demais sabe que o mundo muda sutilmente. O vento sopra diferente. A luz do sol, mesmo dourada, parece atravessar as folhas com uma tristeza que não se explica.

Talvez uma árvore, com sua sabedoria vegetal e paciência milenar, perceba o que nós ainda não conseguimos entender: que a presença de uma pessoa boa deixa marcas invisíveis. Não é difícil imaginar que, ao cair da tarde, os galhos se inclinem num gesto quase imperceptível. Não por dor, mas por reverência.

Se a pessoa que partiu era daquelas que caminhava ao lado da árvore todos os dias, talvez ela sinta a falta daquele peso leve do olhar carinhoso. Pode ser que os pássaros que costumavam cantar nos seus ramos se calem por um instante, como se fizessem luto em forma de silêncio.

Há árvores que florescem mais quando morre alguém muito bom. Como se quisessem, em um último esforço de beleza, agradecer aquela vida com o que têm de mais puro: suas flores, seus perfumes, sua sombra generosa.

A árvore não chora como a gente. Ela não se desespera. Mas talvez sinta. De um jeito que não sabemos medir.

E é possível que, à sua maneira, uma árvore guarde em seus anéis de crescimento a memória de cada pessoa boa que passou por ela. Porque, no fundo, toda bondade deixa raízes.

A árvore, em sua imobilidade viva, é talvez o ser mais próximo da eternidade que temos ao alcance dos olhos. Ela não corre, não grita, não reclama. Apenas é. E por isso mesmo, quando alguém muito bom se vai, talvez seja nela que o mundo confie o segredo do luto.

Quem escuta com atenção o sussurro das folhas pode perceber que há uma linguagem antiga circulando entre as ramagens. Uma linguagem que não fala em palavras, mas em vibrações suaves, em pausas, em respiros longos que a humanidade esqueceu como respirar.

Quando morre alguém muito bom, uma árvore talvez recue um pouco para dentro de si. Como quem se lembra de todas as vezes em que aquela presença gentil passou por ali — não só fisicamente, mas com o espírito: o gesto de cuidar, o silêncio respeitoso, a mão que plantava, o olhar que compreendia.

A filosofia nos ensinou a pensar o tempo como algo que corre. Mas as árvores não têm pressa. Elas vivem no tempo profundo. Sabem que a morte não é o contrário da vida — é parte dela. Talvez por isso, quando uma grande alma se despede, a árvore não se desespera. Ela absorve.

Absorve o vazio. Absorve o nome. Absorve a lembrança e a transforma em folha nova, em seiva, em madeira que estala à luz do meio-dia. Como se dissesse: — Nada se perde. Tudo se transforma em sombra fresca para os que ainda virão.

Porque alguém muito bom, ao morrer, não desaparece. Vira parte do chão, do vento, do cheiro de terra molhada. Vira brisa que embala o sono dos galhos. Vira auréola invisível de luz em torno do tronco.

E talvez um dia, quando uma criança se deitar à sombra dessa árvore e sentir uma paz que não sabe explicar, será porque ali, naquele lugar, repousa a memória viva de alguém que soube ser bom.

E a árvore, com toda a sua quietude, continuará contando essa história. Sem palavras. Mas com poesia.

Em A Poética do Espaço, Gaston Bachelard nos fala sobre a casa como lugar de abrigo das memórias mais íntimas. Mas talvez seja a árvore quem guarda as memórias do mundo. Porque ela é a casa que não fecha portas, o abrigo que não exige paredes, a morada aberta a todos os ventos — e a todos os silêncios.

A árvore não precisa compreender a perda com a lógica. Ela compreende com raízes. E raízes não raciocinam — elas sentem. Sentem a ausência como uma mudança no gosto da terra, como uma falta de passos na manhã, como uma saudade que se infiltra junto com a água da chuva.

Rubem Alves escreveu que as árvores são preces vegetais. Que estão ali, com os braços levantados para o céu, rezando sem palavras. E talvez seja essa a oração mais pura quando morre alguém muito bom: o silêncio vertical de um tronco erguido, o rumor suave de uma esperança que se recusa a morrer junto.

A filosofia também nos ensina — com Heráclito — que tudo flui. Nada permanece. Mas e as árvores? Elas fluem por dentro. Por fora, parecem firmes, mas por dentro se movem em lentas marés de seiva e tempo. É por isso que são capazes de guardar. De lembrar. De transformar luto em flor.

Clarice Lispector diria que a árvore é sem saber que é. E por isso toca num mistério maior do que nós: o de continuar mesmo sem entender. De ser presença mesmo sem fazer barulho. Quando alguém muito bom se vai, a árvore talvez continue por ele. Crescendo em seu lugar. Esticando galhos onde antes havia abraço. Abrindo flores onde antes havia riso.

E há ainda a mitologia. Diziam os antigos que nas árvores moravam ninfas, espíritos antigos da natureza. Talvez essas figuras fossem apenas formas de tentar dizer o que já se sabia, sem saber que se sabia: que toda árvore carrega algo de sagrado. E quando morre alguém bom, é como se essa sacralidade se intensificasse.

Porque a verdadeira bondade é assim: não desaparece, apenas muda de forma. Às vezes vira vento. Às vezes vira árvore. E às vezes, quem sabe, vira o próprio tempo. Bom descanso, Vossa Santidade Papa Francisco!

Rosângela Trajano, Colunista do EcoDebate, é poetisa, escritora, ilustradora, revisora, diagramadora, programadora de computadores e fotógrafa. Licenciada e bacharel em filosofia pela UFRN e mestra em literatura comparada também pela UFRN. É pesquisadora do CIMEEP – Centro Internacional e Multidisciplinar de Estudos Épicos. Com mais de 50 (cinquenta) livros publicados para crianças, ministra aulas de Filosofia para crianças na varanda da sua casa, de forma voluntária. Além disso, mora pertinho de um mangue aonde vai todas as manhãs receber inspiração para poetizar.

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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