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Artigo

Biopirataria e a apropriação do conhecimento tradicional: entre o legado colonial e a resistência

 

A biopirataria não é um fenômeno recente, mas sim uma continuidade do projeto colonial que historicamente explorou territórios e conhecimentos tradicionais

Reinaldo Dias

Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp

Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK

Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil

http://lattes.cnpq.br/5937396816014363

reinaldias@gmail.com

A biopirataria reforça o neocolonialismo, ao concentrar o controle e os lucros do conhecimento nas mãos de países desenvolvidos

A biopirataria é uma das expressões mais visíveis do neocolonialismo, e traduz o processo de expropriação de recursos naturais e conhecimentos tradicionais das comunidades indígenas e locais por grandes corporações e instituições do Norte Global. Enraizada em séculos de saque colonial, essa prática continua a expropriar saberes ancestrais e patrimônios biológicos sem consentimento ou compensação justa, resultando no enriquecimento de multinacionais às custas dos povos que há gerações preservam e utilizam esses recursos de maneira sustentável. Mais do que uma questão de propriedade intelectual, a biopirataria reflete relações assimétricas de poder que subordinam o Sul Global ao domínio econômico e tecnológico de nações desenvolvidas.

Ao longo da história, o conhecimento indígena sobre a biodiversidade tem sido sistematicamente apropriado e transformado em mercadoria, beneficiando empresas farmacêuticas, de biotecnologia, cosméticos e agroindústria. A biopirataria não apenas ameaça a soberania dos povos indígenas sobre seus próprios territórios e saberes, mas também intensifica desigualdades socioeconômicas ao privá-los dos benefícios gerados pelo uso de seus recursos. Além disso, essa prática compromete a conservação da biodiversidade, já que a exploração comercial desenfreada pode levar à sobrecarga dos ecossistemas e à erosão do conhecimento tradicional.

Diante desse cenário, este artigo busca examinar a biopirataria sob uma perspectiva multidimensional, abordando suas raízes históricas, impactos socioeconômicos e ambientais, além das limitações dos mecanismos legais existentes para proteger os direitos dos povos indígenas e garantir a repartição justa de benefícios. Para isso, serão apresentados casos emblemáticos e propostas alternativas para promover um modelo de governança mais equitativo e sustentável.

  1. O legado colonial e a biopirataria

A biopirataria não é um fenômeno recente, mas sim uma continuidade do projeto colonial que historicamente explorou territórios e conhecimentos tradicionais para atender aos interesses econômicos das potências coloniais. Desde a extração de recursos naturais na era colonial até a apropriação contemporânea de saberes indígenas por grandes corporações, o padrão de exploração se mantém (Nazem et al., 2024).

Durante a colonização, a coleta de plantas, sementes e substâncias medicinais foi uma prática comum para abastecer os mercados europeus com novas espécies exóticas de valor comercial. Esse processo de saqueio de recursos e conhecimentos não reconhecia a propriedade intelectual coletiva dos povos originários. No século XXI, essa prática continua por meio da biotecnologia e do sistema de patentes, que legitimam a apropriação de saberes tradicionais sem considerar os direitos das comunidades detentoras (Leon, 2022; Scott, 2024).

A biopirataria contemporânea reflete a desigualdade estrutural entre o Norte e o Sul Global. Empresas de biotecnologia frequentemente patentearam produtos derivados do conhecimento tradicional, como ocorre nos casos da Stevia, do Cacto Hoodia e da secreção do sapo Kambô, sem qualquer repartição de benefícios para as comunidades que preservaram esses conhecimentos ao longo de séculos (Rotzin, 2024; Reep et al., 2024). Essa dinâmica reforça o neocolonialismo, ao concentrar o controle e os lucros do conhecimento nas mãos de países desenvolvidos, enquanto as comunidades locais permanecem marginalizadas economicamente e politicamente.

A falta de regulamentação e a dificuldade de aplicação dos tratados internacionais existentes, intensificam esse desequilíbrio. Muitos países desenvolvidos evitam aderir a esses acordos ou encontram brechas para contorná-los, perpetuando a exploração do patrimônio biocultural dos povos indígenas sem contrapartidas justas (Cardoso, 2023).

Portanto, compreender a biopirataria dentro do contexto do legado colonial é essencial para analisar suas implicações contemporâneas e propor soluções que garantam equidade na distribuição dos benefícios derivados do uso do conhecimento tradicional.

  1. Estruturas legais e a proteção do conhecimento tradicional

A proteção do conhecimento tradicional e dos recursos biológicos das comunidades indígenas é um desafio global, que depende de uma legislação internacional eficiente e da aplicação efetiva dos tratados já existentes. As principais normativas que buscam garantir essa proteção são a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e o Protocolo de Nagoya, além de iniciativas mais recentes como o Tratado Histórico sobre Patentes e Biopirataria (MJSP, 2024).

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), estabelecida em 1993, é um marco na governança ambiental internacional. Seu principal objetivo é garantir a conservação da biodiversidade, o uso sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios advindos dos recursos genéticos. No entanto, sua implementação enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito ao cumprimento pelas nações mais desenvolvidas, que frequentemente exploram recursos biológicos sem retribuir adequadamente as comunidades originárias (Cardoso, 2023).

Complementando a CDB, o Protocolo de Nagoya, em vigor desde 2014, estabelece diretrizes mais específicas para a repartição justa e equitativa dos benefícios oriundos do uso dos recursos genéticos. Exige que o acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais esteja sujeito ao consentimento prévio informado e que os benefícios resultantes sejam compartilhados com as comunidades detentoras desse conhecimento (Nazem et al., 2024). No entanto, a falta de adesão de países desenvolvidos, como os Estados Unidos, limita sua eficácia global (Rotzin, 2024).

Em 2024, o Tratado Histórico sobre Patentes e Biopirataria, assinado durante a Conferência Diplomática da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), estabeleceu regras inovadoras para impedir a exploração indevida de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Entre suas principais diretrizes, está a obrigatoriedade de transparência nos registros de patentes, exigindo a declaração explícita da origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais utilizados (MJSP, 2024). Isso representa um avanço significativo na luta contra a biopirataria, pois reduz a possibilidade de patentes baseadas em apropriação indevida e fortalece a soberania dos países megadiversos sobre seus recursos naturais (Reep et al., 2024).

Apesar dessas iniciativas, persistem desafios estruturais, como a aplicação ineficaz dos tratados existentes, a fragmentação das regulamentações nacionais e a dificuldade em monitorar a bioprospecção e a exploração indevida dos recursos biológicos. Para que esses mecanismos sejam realmente eficazes, é necessário fortalecer a cooperação internacional, melhorar a fiscalização das patentes e garantir que as comunidades indígenas tenham voz ativa nas decisões sobre a proteção e o uso sustentável de seus conhecimentos e recursos naturais (Scott, 2024).

3. Casos ilustrativos de biopirataria

3.1 O Caso da Stevia e dos Guaranis

A Stevia rebaudiana é uma planta originária da América do Sul, tradicionalmente utilizada pelo povo Guarani por suas propriedades adoçantes e medicinais. Empresas multinacionais, como Coca-Cola e PepsiCo, patentearam produtos derivados da Stevia sem reconhecer ou compensar as comunidades indígenas que preservaram e transmitiram esse conhecimento por séculos. A ausência de repartição de benefícios destaca as falhas nas legislações internacionais que deveriam proteger esses direitos (Scott, 2024).

3.2 O cacto Hoodia e o povo San

Os San, habitantes do deserto do Kalahari, utilizam o cacto Hoodia há gerações como supressor natural do apetite. Cientistas identificaram o composto P57 e empresas farmacêuticas patentearam sua extração e comercialização sem consultar ou compensar os San. Após mobilização e disputas legais, foi estabelecido um acordo para garantir parte dos lucros à comunidade, mas os benefícios ainda são desproporcionais em relação ao lucro obtido pelas empresas (Rotzin, 2024).

3.3 A secreção do sapo Kambô e patentes internacionais

A secreção do sapo Kambô (Phyllomedusa bicolor) é utilizada por povos indígenas da Amazônia em rituais medicinais devido às suas propriedades analgésicas e purificadoras. Empresas farmacêuticas registraram diversas patentes baseadas em seus compostos bioativos, sem consentimento das comunidades indígenas. A fragilidade dos mecanismos de proteção do conhecimento tradicional permitiu essa exploração indevida (Leon, 2022).

3.4 O caso da Nigella Sativa e a Nestlé

A Nigella sativa, também conhecida como cominho preto, é usada há séculos na medicina tradicional de diversas culturas. A gigante alimentícia Nestlé tentou patentear seu uso para tratar alergias alimentares, ignorando sua longa história de aplicação medicinal. O pedido de patente foi contestado por ativistas e pesquisadores, resultando em sua não concessão (Cardoso, 2023).

3.5 O Neem e a patente revogada

A árvore Neem (Azadirachta indica), usada há séculos na Índia para fins medicinais e agrícolas, foi alvo de uma patente concedida à empresa WR Grace. Após um longo processo judicial, a patente foi revogada, consolidando um dos poucos exemplos de vitória contra a biopirataria (Ruckstuhl et al., 2023).

Esses casos demonstram a necessidade de fortalecer as regulamentações e garantir que comunidades tradicionais sejam devidamente reconhecidas e compensadas pelo conhecimento tradicional que preservam e compartilham.

  1. O papel da biotecnologia e do sequenciamento digital de DNA

A biotecnologia tem desempenhado um papel central na exploração de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais. Avanços científicos em engenharia genética, biologia sintética e bioinformática têm permitido a apropriação de informações genéticas sem a necessidade de acesso físico aos territórios de origem desses recursos, configurando uma nova forma de biopirataria (Rotzin, 2024).

O uso de informações de sequência digital de DNA (DSI) é uma das tecnologias mais controversas nesse contexto. Através dessa técnica, informações genéticas de plantas, microrganismos e outros organismos podem ser armazenadas e compartilhadas digitalmente em bancos de dados internacionais, permitindo que empresas e institutos de pesquisa desenvolvam novos produtos sem precisar coletar fisicamente os recursos biológicos. Esse processo dificulta a rastreabilidade da origem do material genético, permitindo que empresas utilizem esses dados sem necessidade de consentimento ou repartição de benefícios com as comunidades detentoras do conhecimento tradicional (Reep et al., 2024).

A ausência de regulamentação eficaz sobre o uso do DSI levanta preocupações éticas e legais. Muitas das informações genéticas digitalizadas foram extraídas de ecossistemas ricos em biodiversidade, como a Amazônia, os Andes e as florestas tropicais da Ásia e da África, locais onde populações indígenas e comunidades tradicionais desenvolveram um conhecimento profundo sobre o uso de plantas medicinais e outros recursos naturais. Entretanto, esse conhecimento, que deveria ser protegido e valorizado, muitas vezes é apropriado sem qualquer reconhecimento (Nazem et al., 2024).

  1. Impactos da Biotecnologia na Biopirataria

A biotecnologia tem ampliado significativamente a exploração de recursos genéticos, permitindo que empresas isolem compostos bioativos e desenvolvam versões sintéticas de substâncias naturais sem precisar depender diretamente da biodiversidade. Essa prática pode resultar no monopólio de determinados princípios ativos, dificultando que comunidades tradicionais continuem usufruindo dos recursos que cultivam há séculos, limitando seu acesso e autonomia sobre seu próprio conhecimento (Scott, 2024).

Além do DSI que apresenta desafios para o rastreamento e a fiscalização da origem dos recursos genéticos, outro impacto significativo da biotecnologia na biopirataria é a monopolização do conhecimento tradicional. Muitas empresas patenteiam produtos derivados de recursos genéticos sem considerar ou compensar as comunidades que preservaram e desenvolveram esse saber ao longo de gerações. Esse processo não apenas impede que essas comunidades utilizem ou comercializem seus próprios conhecimentos, mas também reforça desigualdades históricas, consolidando a exploração de sua herança biocultural e transferindo os benefícios econômicos para grandes corporações, frequentemente sediadas no Norte Global (Rotzin, 2024).

  1. Casos relevantes

O desenvolvimento de vacinas durante a pandemia da COVID-19 ilustra um dos impactos mais evidentes do uso de DSI na biopirataria. Empresas farmacêuticas recorreram a bancos de dados genéticos contendo informações sobre vírus coletados em diversas partes do mundo para acelerar suas pesquisas e a produção de imunizantes. No entanto, apesar da importância dessas informações para o avanço científico, os países e comunidades que forneceram os dados genéticos não receberam compensações financeiras ou acesso prioritário às vacinas, evidenciando um desequilíbrio na repartição dos benefícios da biotecnologia (Reep et al., 2024).

Outro exemplo relevante ocorre na produção de sementes resistentes a pragas. Muitas corporações agrícolas vêm utilizando sequências genéticas de plantas nativas, que há séculos são cultivadas e aprimoradas por comunidades indígenas, para desenvolver variedades comerciais patenteadas. Essa prática impõe novas barreiras à soberania alimentar, uma vez que os agricultores locais podem ser impedidos de utilizar suas próprias sementes sem pagar royalties às empresas que registraram a patente. Dessa forma, a biopirataria não apenas desconsidera o papel das comunidades tradicionais na conservação da agrobiodiversidade, como também impõe dependência econômica sobre aqueles que historicamente garantiram a preservação dessas espécies (Nazem et al., 2024).

A biotecnologia também tem sido amplamente utilizada na apropriação do conhecimento tradicional da medicina indígena. Muitos dos fármacos modernos são baseados em substâncias extraídas de plantas conhecidas por suas propriedades medicinais em diferentes culturas. Entretanto, com os avanços da engenharia genética, essas substâncias podem ser sintetizadas em laboratório sem qualquer reconhecimento das populações indígenas que, ao longo de gerações, desenvolveram e compartilharam esse conhecimento. Esse tipo de biopirataria reforça a marginalização dos saberes tradicionais e perpetua a lógica de exploração em que os benefícios da biodiversidade são concentrados nas mãos de empresas que lucram sem qualquer redistribuição justa dos ganhos (Cardoso, 2023).

  1. Necessidade de regulamentação

Para enfrentar os desafios impostos pela biotecnologia e pelo sequenciamento digital de DNA, é fundamental que os marcos regulatórios internacionais sejam revisados e fortalecidos. A transparência e a rastreabilidade dos recursos genéticos devem ser priorizados, garantindo que empresas sejam obrigadas a declarar a origem dos dados genéticos utilizados no desenvolvimento de seus produtos. Essa medida permitiria um maior controle sobre a apropriação de informações biológicas, reduzindo os casos de exploração indevida.

Além disso, o consentimento prévio informado deve ser uma exigência obrigatória, assegurando que as comunidades locais tenham o poder de decidir sobre o uso de seus recursos genéticos. Essa abordagem reforçaria a autodeterminação dos povos indígenas e tradicionais, garantindo que suas contribuições para a ciência e a indústria sejam respeitadas e valorizadas.

A repartição justa de benefícios também se mostra essencial, pois os lucros gerados pela biotecnologia frequentemente não são compartilhados de maneira equitativa com os países e povos detentores dos recursos biológicos. A criação de mecanismos que assegurem essa redistribuição ajudaria a corrigir desigualdades históricas e permitiria que comunidades tradicionais fossem diretamente beneficiadas pelo uso comercial de seu conhecimento e patrimônio genético.

Por fim, o fortalecimento de bancos de dados comunitários surge como uma estratégia fundamental para proteger o conhecimento tradicional contra reivindicações indevidas de patentes. O registro formal de saberes ancestrais e práticas culturais pode impedir que empresas tentem patentear informações que já pertencem a comunidades há séculos, preservando assim a integridade do conhecimento indígena e garantindo sua valorização nos debates sobre inovação e biotecnologia.

A biotecnologia pode trazer grandes avanços científicos e econômicos, mas sem regulamentação adequada, pode se tornar um instrumento de exploração e exclusão. A proteção dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional precisa ser uma prioridade para a governança global, garantindo que o desenvolvimento científico respeite os direitos das comunidades que historicamente preservaram e cultivaram esses saberes (Scott, 2024).

  1. Alternativas e propostas para um modelo justo

A biopirataria continua sendo um desafio global, exigindo soluções abrangentes e eficazes para garantir a proteção do conhecimento tradicional e a justa repartição de benefícios. Para isso, diversas abordagens têm sido propostas, envolvendo mudanças em marcos regulatórios, implementação de mecanismos de governança internacional e fortalecimento das comunidades detentoras desse conhecimento. A seguir, são apresentadas algumas alternativas que podem contribuir para um modelo mais justo e equitativo.

5.1. O Fundo Cali e a repartição de benefícios

Uma das iniciativas mais promissoras no combate à biopirataria é o Fundo Cali, criado na COP16 da Convenção sobre Diversidade Biológica. Esse fundo voluntário visa garantir que empresas que utilizam DSI paguem uma porcentagem de seus lucros para comunidades indígenas e locais. A implementação eficaz desse mecanismo pode estabelecer um novo padrão para a repartição justa de benefícios e incentivar uma economia mais equitativa (Reep et al., 2024).

A retomada dos trabalhos da COP16 em fevereiro de 2025 foi marcada pela ampliação dessa iniciativa, com a mobilização de recursos do setor privado para remunerar países e comunidades locais. Apresentado como um divisor de águas para o financiamento da biodiversidade, o Fundo Cali surge como resposta a um desafio imposto pela tecnologia, uma vez que o Protocolo de Nagoya já previa a compensação pelo uso da biodiversidade, mas não contemplava a realidade dos bancos de dados digitais. Como as empresas podem acessar informações genéticas online, sem utilizar fisicamente os recursos naturais, muitos países ficaram sem compensação pelos recursos genéticos sob sua proteção (Miranda, 2025).

Uma inovação importante do Fundo Cali, segundo Miranda (2025), é a destinação de pelo menos 50% dos valores arrecadados diretamente aos povos indígenas e comunidades locais, reconhecendo seu papel fundamental na preservação da biodiversidade. O fundo se concentra principalmente em grandes indústrias que dependem significativamente do uso de DSI, como as farmacêuticas, de cosméticos e de biotecnologia. A proposta sugere que as empresas contribuam com 1% de seus lucros ou 0,1% de suas receitas, um modelo inspirado em princípios de justiça ambiental e financeira.

Embora ambientalistas elogiem o potencial do Fundo Cali para garantir uma compensação mais justa, sua implementação exigirá monitoramento contínuo e compromissos concretos entre governos, sociedade civil e setor privado. Somente assim essa iniciativa poderá consolidar-se como um modelo global de financiamento da biodiversidade e proteção dos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.

5.2. Bancos de dados de conhecimento tradicional

A criação de bancos de dados comunitários pode atuar como uma ferramenta de proteção contra a apropriação indevida do conhecimento tradicional. Esses bancos podem registrar e documentar saberes ancestrais, dificultando o registro de patentes por empresas sobre informações já existentes e amplamente conhecidas pelas comunidades detentoras (Nazem et al., 2024). Exemplos como a Biblioteca Digital de Conhecimento Tradicional da Índia (Tradicional Knowledge Digital Libraty – TKDL) demonstram o potencial dessas iniciativas para proteger os direitos das comunidades indígenas. Segundo o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial da Índia (CSIR, 2023) o TKDL é o primeiro banco de dados de conhecimento tradicional do gênero globalmente, e provou ser um impedimento eficaz contra a biopirataria. Embora seja reconhecido internacionalmente como um esforço único, o TKDL estabeleceu uma referência na proteção de conhecimento tradicional em todo o mundo, ao demonstrar as vantagens da ação proativa e o poder da forte dissuasão. O foco está na dissuasão e na prevenção da concessão errônea de patentes.

5.3. Farmacologia reversa e bioprospecção ética

A farmacologia reversa propõe um modelo de pesquisa que parte do conhecimento tradicional para validar e aprimorar substâncias naturais de forma colaborativa, garantindo o envolvimento direto das comunidades indígenas no processo científico e nos lucros obtidos (Alum, 2024). A bioprospecção ética, por sua vez, exige que qualquer acesso a recursos genéticos e conhecimentos associados ocorra apenas mediante consentimento prévio informado e a formalização de acordos de repartição de benefícios.

5.4. Fortalecimento dos marcos regulatórios e aplicação das normas existentes

Apesar da existência de tratados como a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e o Protocolo de Nagoya, muitos países ainda não implementam plenamente essas normas. O fortalecimento da aplicação dessas regulamentações e a criação de mecanismos de monitoramento mais rigorosos são fundamentais para garantir que empresas e pesquisadores cumpram com suas obrigações legais e éticas (Cardoso, 2023).

5.5. Modelos de parceria entre comunidades e empresas

Um modelo alternativo para evitar a biopirataria é o estabelecimento de parcerias equitativas entre empresas e comunidades locais. Iniciativas como a certificação de produtos desenvolvidos com base no conhecimento indígena podem assegurar que as comunidades sejam beneficiadas financeiramente e tenham controle sobre o uso de seus saberes. A certificação FairWild, por exemplo, busca garantir a sustentabilidade da exploração de plantas medicinais e promover relações comerciais mais justas (Ruckstuhl et al., 2023). A certificação FairWild garante que os compradores, desde fornecedores de ingredientes até consumidores finais, possam confiar que os produtos adquiridos são coletados de maneira legal, ética e sustentável. Além disso, a comercialização desses produtos ocorre de forma justa, assegurando que os benefícios sejam distribuídos equitativamente entre todos os envolvidos, incluindo as comunidades locais responsáveis pela colheita das plantas selvagens (Fairwild, 2023).

5.6. Educação e Capacitação das Comunidades Indígenas

Fortalecer a capacidade das comunidades indígenas para negociar e proteger seus direitos é essencial para combater a biopirataria. Programas de capacitação podem incluir treinamentos sobre propriedade intelectual, acesso a ferramentas jurídicas e desenvolvimento de modelos econômicos baseados na valorização do conhecimento tradicional. Esse empoderamento pode contribuir para que as comunidades possam atuar como protagonistas na governança de seus recursos e conhecimentos (Scott, 2024).

5.7. Transparência e Rastreabilidade na Cadeia de Uso dos Recursos Biológicos

A exigência de maior transparência na origem dos recursos biológicos utilizados pela indústria é outra medida essencial. Empresas deveriam ser obrigadas a declarar a fonte dos recursos genéticos e comprovar o cumprimento das regras de repartição de benefícios. A adoção de tecnologias de marcação e rastreamento genético pode ser uma alternativa para garantir a rastreabilidade do uso desses recursos e impedir práticas ilegais (Rotzin, 2024).

Em resumo, a biopirataria é um problema multifacetado que exige soluções abrangentes e coordenadas entre governos, comunidades indígenas, instituições acadêmicas e setor privado. A adoção de medidas como a repartição justa de benefícios, a implementação de bancos de dados de conhecimento tradicional, o fortalecimento das regulamentações e a criação de parcerias equitativas são passos fundamentais para construir um modelo de governança mais justo e sustentável. Somente com uma abordagem integrada e colaborativa será possível garantir a preservação do conhecimento tradicional e a valorização das comunidades detentoras desses saberes.

  1. Conclusão

A biopirataria representa um dos desafios mais complexos no campo da proteção da biodiversidade e dos direitos das comunidades indígenas e tradicionais.

Como discutido ao longo deste artigo, a apropriação indevida de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais perpetua dinâmicas coloniais de exploração, reforçando desigualdades estruturais entre o Norte e o Sul Global. A falta de regulamentação eficaz e a dificuldade de rastrear o uso de informações genéticas tornam esse fenômeno ainda mais preocupante na era da biotecnologia e do sequenciamento digital de DNA.

Os casos ilustrativos apresentados demonstram como grandes corporações se apropriaram do conhecimento tradicional sem consentimento ou compensação justa, prejudicando diretamente as comunidades que há séculos preservam e utilizam esses recursos de maneira sustentável. O monopólio das patentes sobre produtos derivados de recursos biológicos ameaça não apenas a soberania dos países megadiversos, mas também a autonomia cultural e econômica das populações locais.

As iniciativas voltadas para a mitigação da biopirataria, como o Fundo Cali, os bancos de dados de conhecimento tradicional e os modelos de bioprospecção ética, apontam caminhos viáveis para garantir uma repartição justa dos benefícios. No entanto, sua eficácia depende da adoção de marcos regulatórios mais rigorosos e da cooperação internacional para garantir a aplicação dessas normas. A implementação de medidas como maior transparência na cadeia produtiva, exigência de consentimento prévio informado e fortalecimento das legislações nacionais são passos fundamentais para evitar novas formas de exploração.

Além disso, é essencial que as comunidades indígenas e tradicionais tenham voz ativa nas decisões sobre seus conhecimentos e recursos, garantindo que suas práticas tradicionais sejam reconhecidas e valorizadas. O fortalecimento de mecanismos jurídicos e de governança participativa pode permitir que esses grupos assumam um papel central na proteção de sua herança biocultural, garantindo seu desenvolvimento sustentável e sua autonomia frente às ameaças do mercado global.

Portanto, a luta contra a biopirataria exige um esforço coletivo entre governos, organizações internacionais, cientistas, empresas e, principalmente, as próprias comunidades detentoras do conhecimento tradicional. Somente através de políticas eficazes, maior conscientização e práticas éticas será possível construir um modelo mais justo, no qual a biodiversidade e o saber ancestral sejam protegidos e devidamente reconhecidos. A preservação do conhecimento indígena e da diversidade biológica não deve ser vista apenas como um desafio jurídico ou econômico, mas como uma questão de justiça social e ambiental que impacta diretamente o futuro do planeta.

Referências

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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