Economia sem ética, artigo de Adela Cortina
Imagem: Corbis/Charles Waller
“No documento da última cúpula do G-20, os líderes mundiais fazem uma afirmação assombrosa: ‘Reconhecemos a dimensão humana da crise’. Mas existiu alguma vez uma atividade econômica sem dimensão humana?”.
Essa é a questão levantada em artigo para o jornal El País, 05/05/2009, pela professora de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valencia, na Espanha, e diretora da Fundação Étnor, Adela Cortina. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A catastrófica crise econômica que vivemos, tão dolorosa para milhões de pessoas com nome e sobrenome, estourou quando o discurso da Responsabilidade Social Empresarial (SER) está frutífero em memórias anuais, índices de empresas responsáveis, pós-graduações e publicações. A pergunta é inevitável: era cosmética ou ética? Maquiagem para ter boa aparência ou vitaminas que fortalecem por dentro?
Há de tudo, é claro, e existem causas de gêneros muitos diferentes. Mas a crise é também uma prova de que boa parte das organizações do mundo econômico e político não assumiram esse discurso, quando, na realidade, ele pertence à própria entranha desses mundos: não vem de fora, mas é seu.
Uma empresa inteligente – diz o discurso – não opta por uma ética do desinteresse, coisa impossível para uma empresa moderna, mas sim do interesse comum. Não abandona o mundo dos incentivos, da busca do benefício e a viabilidade, mas tenta conseguir seu benefício por meio do benefício compartilhado. Por isso, tenta se converter nessa “empresa cidadã”, que as pessoas veem como coisa sua, porque gera riqueza material, trabalho e valores intangíveis no seu entorno. Aposta pela transparência que vai gerando confiança e forjando a reputação, valores sem os quais é difícil manter a viabilidade. Por isso, a empresa prudente tenta conhecer as aspirações de seus grupos de interesse e responder a elas. Responsabilidade, transparência e confiança são, então, imprescindíveis para alcançar o bem da empresa a médio e longo prazo. Sempre que exista um marco institucional capaz de assegurar razoavelmente que as regras do jogo sejam cumpridas.
Em muitos casos, não funcionou o marco institucional, encarregado de controlar as atuações financeiras, de colocar de sobreaviso os investidores e os consumidores. Os marcos falharam, e por isso o controle é necessário. Mas apesar da convicção leninista de que “a confiança é boa, mas o controle é melhor”, os dois são imprescindíveis. Sem controle, os bancos jogam no risco excessivo, no subprime em um dia e em não emprestar no dia seguinte, os governos avalizam requalificações, os consumidores se endividam além do razoável e chega um tempo em que o trem da atividade econômica dá uma freada brusca. Que parece que, pelo menos em parte, é o que aconteceu conosco. Mas, sem confiança, as transações decaem, o investimento diminui, os empréstimos escasseiam, as empresas fecham, o desemprego aumenta, e o sofrimento cresce.
O discurso da RSE, como José Ángel Moreno disse, está, na realidade, desvinculado dos sistemas de governo corporativo? Ele não se incorporou ao núcleo duro de uma grande parte das empresas, quando na realidade lhes é consubstancial?
Talvez o que ocorre é que existam dois tipos de incentivos, os bons e os maus, os que pertencem ao jogo limpo da empresa e os espúrios. Os últimos podem ser úteis em alguma ocasião, mas não podem ser os principais, como o filósofo MacIntyre mostrava com o exemplo de uma criança, cujos pais querem que ela aprenda a jogar xadrez e, como ela não gosta, prometem-lhe doces a cada vez que jogar. O incentivo das balas pode servir para que ela conheça o jogo e se interesse por ele, mas, se com o tempo, ela seguir sem gostar por si mesma, trapaceará quando puder.
Se o diretor de um banco, ao assessorar os clientes, está pensando que o seu salário ou a sua ascensão dependem de que eles invistam em determinados fundos, tentará persuadir-lhes de que é um risco admissível com o qual ganharão consideravelmente. As demais opções são “conservadoras”, adjetivo que já tem um sentido pejorativo. Claro que, diferentemente do xadrez, o diretor também conta com a ambição do cliente. Mas nem aquele que adverte dos riscos previsíveis, nem o que concede subprimes são um bom profissional, porque não é esse o sentido de sua profissãom e por isso geram desconfiança.
Se globalizarmos a partida de xadrez, ocorrerá que, além das turbulências das quais os economistas falam, houve organizações e pessoas concretas que não creram no valor de sua profissão, que arriscaram aquilo que era seu e aquilo que não era, convencidos de que iriam se dar bem. O pior de tudo é que nesse jogo, algumas vezes, os protagonistas pagam, mas em todas as ocasiões quem pagam são os pior situados. Os que ficaram sem trabalho, os que não puderam pagar a hipoteca, os que tiveram que fechar a sua pequena empresa, os imigrantes que voltaram para os seus países, e acabaram as remessas, principal fonte de ingressos para esses países.
No documento da última cúpula do G-20, os líderes mundiais fazem uma afirmação assombrosa: “Reconhecemos a dimensão humana da crise”. Mas existiu alguma vez uma atividade econômica sem dimensão humana? Não é verdade que a economia deve ajudar a se construir uma boa sociedade e, quando não consegue, fracassa rotundamente, tendo em conta que essa boa sociedade hoje deve ser mundial?
(Ecodebate, 08/05/2009) publicado pelo IHU On-line, 06/05/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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