Desafios e oportunidades de um Brasil cada vez mais urbano
A transição urbana e a transição demográfica são dois fenômenos sociais sincrônicos e que avançam de forma simultânea
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
As transições urbana e demográfica são duas conquistas fundamentais na história da humanidade.
O crescimento das cidades tem sido o principal vetor da transformação socioeconômica e demográfica do Planeta. Cidades como Babilônia, Cairo, Atenas, Alexandria, Roma, Constantinopla, Kyoto, Pequim, dentre outras, desempenharam um papel fundamental no avanço da humanidade, servindo como motores de progresso econômico, social, cultural e tecnológico.
Após os ganhos de produtividade da revolução agrícola e a geração de um excedente da área rural, as cidades passaram a atrair pessoas talentosas e criativas, formando um ambiente propício para o surgimento de novas ideias e tecnologias. A maior densidade demográfica e a proximidade das pessoas facilitam a colaboração e a troca de conhecimento. Em geral, as cidades oferecem infraestruturas complexas que possibilitam o desenvolvimento de novas tecnologias e a produção de uma ampla gama de bens e serviços, além de sistemas de transporte mais eficazes, redes de comunicação avançadas, diversidade cultural e uma governança pública mais eficiente.
Até o ano de 1800, quando a população mundial estava em torno de 1 bilhão de habitantes, o percentual de pessoas vivendo em cidades estava em torno de 5%, enquanto as taxas de mortalidade e natalidade eram muito elevadas. Este quadro mudou com a expansão dos ganhos de produtividade gerados pela Revolução Industrial e Energética.
Mas a despeito das vantagens da urbanização, a maioria da população mundial e brasileira, até meados do século passado, estava localizada no meio rural. Segundo a Divisão de População da ONU, a taxa de urbanização do mundo estava em 29,6% em 1950, chegou a 50% em 2007 e deve atingir 70% em 2050. No Brasil, segundo o IBGE, a taxa de urbanização era de 36,2% em 1950, passou de 50% na década de 1960, passou de 80% no ano 2000 e deve superar 90% até 2050.
O gráfico abaixo mostra que a população total do Brasil era de 51,9 milhões de habitantes em 1950 e passou para 203 milhões em 2022, um aumento de 3,9 vezes em 72 anos. Mas a população urbana passou de 18,8 milhões em 1950 para 177,5 milhões em 2022, um aumento de 9,5 vezes no período. Em direção contrária, a população rural que era de 33,2 milhões de habitantes em 1950, caiu para 25,6 milhões em 2022, uma redução de 20% no período. Em termos percentuais, a população rural caiu de 63,8% em 1950 para 12,6% em 2022 e a população urbana subiu de 36,2% em 1950 para 87,4% em 2022.
Este processo de urbanização do Brasil foi acompanhado por diversos avanços econômicos e sociais. A taxa de mortalidade infantil caiu de 157 por mil em 1950 para 12,3 por mil em 2022 (uma queda de quase 13 vezes). A expectativa de vida ao nascer era de 48,5 anos em 1950 e passou para 75 anos em 2022. A taxa de fecundidade total (TFT) era de 6,1 filhos por mulher em 1950 e caiu para 1,6 filho por mulher em 2022. A idade mediana da população brasileira era de 17,5 anos em 1950 e passou para 33,5 anos em 2022. A taxa de analfabetismo da população com 15 anos ou mais de idade era de 51% em 1950, e caiu para 5,6% em 2022. Segundo o projeto Maddison (2023), a renda per capita brasileira, em poder de paridade de compra, era de US$ 2.236 em 1950 e passou para US$ 14.640 em 2022.
Portanto, o Brasil era um país jovem, rural, com altas taxas de mortalidade e fecundidade, alto nível de analfabetismo e de baixa renda. Mas com as transições urbana e demográfica passou a ser um país mais envelhecido, mais urbano, com maior expectativa de vida ao nascer, com maiores índices de escolaridade e de renda média. Houve avanços sociais inegáveis, embora nem todo o potencial tenha sido aproveitado.
A transição urbana e a transição demográfica são dois fenômenos sociais sincrônicos e que avançam de forma simultânea. A urbanização ajudou a reduzir as taxas de mortalidade – uma conquista fundamental dos direitos humanos – e também a reduzir as taxas de natalidade – a maior mudança de comportamento de massa da história da humanidade.
As duas transições são, por excelência, conquistas da modernidade. Este processo é sinérgico e holístico, pois uma transição reforça a outra e ambas, adequadamente administradas, podem contribuir para a sustentabilidade social e ambiental.
Por conseguinte, a transição demográfica (processo de redução das taxas de mortalidade e de fecundidade) é o fenômeno de Se a vida é o principal direito estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a extensão do tempo de vida é uma conquista fundamental. Por outro lado, a conquista da autodeterminação reprodutiva é essencial para a liberdade de decisão, para a liberdade de iniciativa das pessoas e para superar os preconceitos, a ignorância e os fatalismos. A transição demográfica é um fenômeno e é sincrônica ao processo de desenvolvimento e ao aumento das taxas de urbanização.
No passado pré-transicional, as mulheres não tinham autonomia e nem grandes perspectivas profissionais, pois, além da alta mortalidade materna, tinham baixa extensão do tempo de sobrevivência e passavam a maior parte da vida dedicadas à maternidade, ao cuidado dos filhos e ao trabalho doméstico familiar. A urbanização e a transição demográfica possibilitaram o empoderamento das mulheres.
Menores taxas de mortalidade e fecundidade são fundamentais para a redução da pobreza e da fome. Gerações menores de crianças e adolescentes favorece os investimentos na aprendizagem ao longo da vida e a requalificação profissional que abrem novas oportunidades no mercado de trabalho. Tudo isto contribui para a geração de renda e o bem-estar das pessoas, das famílias e do meio ambiente.
O fato é que nenhum país do mundo avançou, em termos econômicos e sociais, com alta proporção da população rural e a prevalência de altas taxas de mortalidade e fecundidade. Indubitavelmente, as transições urbana e demográfica são conquistas civilizatórias essenciais.
Indubitavelmente, as oportunidades da transição urbana são incontroversas, mas isto não quer dizer que não haja lacunas e externalidades negativas. Em primeiro lugar, o crescimento urbano em muitos países em desenvolvimento ocorre de forma desigual e acelerada, muitas vezes sem o planejamento necessário para absorver grandes fluxos migratórios. Isso leva à formação de megacidades (“amontoados de gente”) com profundas disparidades sociais e econômicas.
Em segundo lugar, o rápido crescimento das cidades sem infraestrutura adequada resulta em problemas como poluição, degradação dos recursos hídricos e pressões sobre áreas ecologicamente sensíveis. Em terceiro lugar, a urbanização sem planejamento adequado perpetua a pobreza urbana, a marginalização e os déficits de habitação e serviços básicos.
Para enfrentar os desafios da urbanização é crucial adotar políticas que não apenas acomodem o crescimento populacional, mas que também promovam inclusão social e sustentabilidade ambiental, adotando uma abordagem integrada que envolva planejamento urbano, políticas de desenvolvimento sustentável e mitigação de impactos ambientais, para criar cidades mais equitativas, resilientes e menos desiguais.
Por exemplo, o censo 2022 revelou que o Brasil possui 16,4 milhões de pessoas vivendo em favelas e ao mesmo tempo indicou que havia 18,1 milhões de domicílios não ocupados. Ou seja, o paradoxo de favelas cheias e domicílios vazios.
O Brasil está em fase avançada tanto nas duas transições. A percentagem de pessoas vivendo nas cidades brasileiras já ultrapassou 87% e o número médio de filhos por mulher já está abaixo do nível de reposição. A América Latina e Caribe (ALC) é a região que apresentou as maiores taxas de urbanização e de redução da taxa de fecundidade total (TFT) desde 1950. E o Brasil é destaque na ALC. Na segunda metade do século XXI, o Brasil terá decrescimento populacional, mas com a continuidade de aumento das taxas de urbanização.
As transições urbana e demográfica foram fundamentais para a redução da pobreza, mas devido ao elevado grau de desigualdade social no país, o direito à cidade e os direitos sexuais e reprodutivos não foram universalizados, pois ainda existem parcelas da população brasileira excluídas do exercício da cidadania.
Cabe, pois, às políticas públicas, em todos os seus níveis, enfrentar os desafios da plena inclusão social e da ampla proteção ambiental.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. As oportunidades e os desafios dos bônus demográficos com os novos números do Censo 2022, Folha de São Paulo, 28/06/2023 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/as-oportunidades-e-os-desafios-dos-bonus-demograficos-com-os-novos-numeros-do-censo-2022.shtml
ALVES, JED. Brasil vive uma revolução demográfica. O Globo, 22/08/2024
https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/08/22/artigo-o-brasil-vive-uma-revolucao-demografica.ghtml
Martine, G. Alves, JED, Cavenaghi, S. Urbanização e transição da fecundidade, Ecodebate, 23/01/2014
http://www.ecodebate.com.br/2014/01/23/urbanizacao-e-transicao-da-fecundidade-por-george-martine-jose-eustaquio-alves-e-suzana-cavenaghi/
George Martine, Jose Eustaquio Alves, Suzana Cavenaghi. Urbanization and fertility decline: Cashing in on Structural Change, IIED Working Paper. IIED, London, December 2013. ISBN 978-1-84369-995-8
http://pubs.iied.org/10653IIED.html?k=Martine%20et%20al
http://pubs.iied.org/pdfs/10653IIED.pdf
Martine, George. The State of the World Report, 2007: Unleashing the potential of urban growth. UFPA: United Nations Population Fund, New York, 2007
https://www.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/695_filename_sowp2007_eng.pdf
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI (com a colaboração de GALIZA, F), ENS, maio de 2022
https://prdapi.ens.edu.br/media/downloads/Livro_Demografia_e_Economia_digital_2.pdf
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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